Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.
No mês passado, o gabinete de Rodrigo Duterte – o presidente filipino que ordenou o massacre de milhares de alegados consumidores de drogas e traficantes e cita Hitler como o seu modelo – disse que, durante uma conversa telefónica, o presidente Trump lhe terá expressado apoio em relação à sua política de guerra contra as drogas.
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A Casa Branca não negou que o presidente teve uma “muito amigável” conversa com Duterte, a 29 de Abril. Ainda assim, mantive uma pequena esperança de que o homem mais poderoso do Planeta não teria na verdade enaltecido Duterte por ter dado luz verde ao assassinato de pessoas nas ruas, enquanto política oficial contra as drogas.
Claro que fui demasiado optimista.
De acordo com uma transcrição da chamada, publicada na última terça-feira, 23, pelo Intercept, Trump começou a conversa a louvar explicitamente a insana campanha sangrenta de Duterte. “Queria felicitá-lo, porque tenho conhecimento do incrível trabalho que está a fazer relativamente ao problema da droga”, disse Trump. “Muitos países têm esse problema, mas você está a fazer um excelente trabalho e quis ligar-lhe para lhe dizer isto”, acrescentou, ao mesmo tempo que salientou que enquanto o presidente Obama não tinha compreendido o valor desta abordagem, ele, Trump, compreende.
Tendo em conta o contexto da recente declaração do Procurador Geral, Jeff Sessions, em que defendia que os procuradores deveriam voltar a aplicar as sentenças mais longas possíevis a infractores – até em casos em que seja claro que se tratam de traficantes de pequena dimensão e não violentos -, esta situação assume uma dimensão aterrorizadora. Aparentemente, estamos a ser governados por pessoas que acreditam que consumir qualquer droga ilegal (ou até ser suspeito de consumir) pode mesmo valer uma execução sumária.
Escrevi anteriormente sobre como o massacre levado a cabo por Duterte é o fim lógico de um sistema que desumaniza os consumidores de drogas, pintando-os como sendo algo abaixo de qualquer grau de humanidade.
Por exemplo, um consumidor ocasional de marijuana pode ver-lhe negado um transplante; o New York Times pode alegremente escrever sobre como salvar vítimas de overdose pode ter “consequências” negativas; e há décadas que iniciativas comprovadamente eficazes, como a troca de seringas, têm sido aproveitadas pela oposição para capitalizar na ideia (comprovadamente falsa) de que podem encorajar os jovens a consumir drogas. Ainda em 2009, algo tão simples como afirmar a ideia indesmentivelmente verdadeira de que “pessoas boas consomem drogas”, causou uma controvérsia gigantesca no relativamente são Reino Unido.
A estrada para a brutalidade começa com este género de desumanização. Cada momento de genocídio na história da humanidade envolveu elementos de propaganda a retratar o grupo alvo como “vermes”, ou “baratas”, ou “indignos de viver”. Curiosamente, isto também pode ser acompanhado por retratos de minorias odiadas (ou consumidores de drogas) enquanto seres sobre-humanos, capazes de truques engenhosos, ou donos de capacidades não naturais, como serem à prova de bala e incapazes de sentir dor. Seja qual for a formulação, o resultado final é a ideia de que é normal maltratar ou até matar tais pessoas porque, na verdade, não são seres humanos.
Por outras palavras, a lógica é que matar consumidores de drogas não é a mesma coisa que um homicídio “normal”.
Vê este segmento do programa VICE News Tonight sobre o caos na Líbia e o que isso significa para o ISIS.
Recentemente, o neurocientista Carl Hart foi obrigado a fugir das Filipinas por ameaças à sua vida, depois de tentar confrontar as mentiras espalhadas por Duterte – especificamente a que garantia que as metanfetaminas encolhiam o cérebro – e que são utilizadas para justificar as mortes extrajudiciais.
Hart, professor de psicologia na Universidade de Columbia (revelação: trabalhei com ele num projecto de um livro) tinha dado uma palestra numa conferência, em que discutia a sua investigação sobre metanfetaminas, uma droga localmente conhecida como “shabu”, e que tem sido apontada como a responsável por transformar os consumidores em monstros.
Duterte reagiu com fúria, apelidando Hart de “aquele gajo preto” e dizendo coisas como “esse filho da puta enlouqueceu”
Os dados são claros: reivindicações de que a metanfetamina causa danos cognitivos significativos e irreversíveis e torna os consumidores incontrolavelmente violentos, são falsas. Se altas dosagens e a falta de sono que produzem podem, certamente, levar a paranoia e dependência, a droga por si não induz automaticamente violência, danos cerebrais, dependência ou imoralidade. Se fosse esse o caso, os medicamentos que contêm exactamente o mesmo ingrediente, não seriam comercializados para utilização no tratamento de crianças e adultos com problemas de hiperactividade ou défice de atenção.
Tal como Hart me conta, “a situação nas Filipinas é particularmente triste, porque parte do apelo de Duterte é que ele prometeu restabelecer a honra e o orgulho filipinos, que é algo importante para uma nação que foi colonizada e subjugada por outras nações durante muito tempo. A sua ignorância permite-lhe desumanizar s pessoas que consomem drogas, o que, na sua cabeça, justifica que estes actos doentios sejam perpetrados contra consumidores e/ou traficantes.
As pessoas que se preocupam com a justiça e os direitos humanos não podem simplesmente ignorar os abusos quando estes são rotulados como parte de uma “guerra às drogas”, ou tenham como alvo pessoas cujo único crime é ingerir uma substância que as autoridades decidem que deve ser ilegal. Não podemos ignorar as raízes racistas destas políticas – e os seus resultados racistas.
O meu pai, que foi um sobrevivente do Holocausto, perguntou-me uma vez porque é que eu continuava a ser tão obcecado com as políticas de drogas. Na altura, já tinha passado anos a lutar por mudanças e há muito que estava recuperado, pelo que dificilmente poderia voltar a ser afectado pelo problema directamente. Não lhe consegui dar uma boa resposta, mas agora consigo: é que se desumanizamos alguém, desumanizamos toda a gente.
Ninguém com consciência pode ser a favor de uma guerra às drogas continuada.
Segue Maia Szalavitz no Twitter.
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