A turnê de Jay-Z e Beyoncé é o ápice do voyeurismo pop

Os últimos tempos tem sido doidos para a família Carter. Antes mesmo de Beyoncé e Jay-Z darem as caras no London Stadium na última sexta, começou uma gritaria na multidão. “Blue Ivy está aqui!”. Dedos eram apontados e o público delirava, já eu não conseguia ver porra nenhuma. Eu estava isolado numa espécie de área VIP a poucos metros do palco, um local cujo ingresso pode custar até £480, com todo o público do estádio delirando atrás de mim. Conseguir distinguir a primeira filha do casal ali na muvuca é por si só um ato digno de aplausos. A internet eventualmente descobriu uma das fotos de Blue daquele dia, que acabou virando um meme do tipo “nada impressionada”. Passadas 24 horas de Blue ter acenado para completos desconhecidos 20 anos mais velhos que ela empolgados com sua presença, seus pais então lançaram seu primeiro disco conjunto, Everything Is Love.

Mas eu estou aqui para falar do show: é quase como que um exercício de voyeurismo, ainda mais quando o casal deu aos bisbilhoteiros de plantão horários bastante restritos para que pudessem dar uma olhada no que rola ao longo da jornada. Ver Beyoncé e Jay-Z fazerem seu primeiro show em Londres nesta turnê de quatro meses é uma fascinante combinação de assistir a um show de slides das férias de um casal hétero, uma viagem sem pausas pelos sucessos de dois artistas absurdamente ambiciosos e, nos momentos em que Beyoncé se apresenta sozinha, vemos o set da maior artista viva da música ocidental. Ela tem o público em suas mãos; já Jay-Z precisa se esforçar um pouco mais pra conseguir a atenção da galera. Passagens da história dos dois enquanto casal — boa moça acaba conhecendo bad boy; casamento e uma filha; o caso do elevador; Lemonade; 4:44 — se juntam para criar uma imagem de felicidade inebriante, caso você aceite de cara o clima deixado pelo show no ar. Caso queira ir mais fundo, não dá pra negar a habilidade dos Carters em vender uma certa proximidade de seu relacionamento para um público já pronto para comprar a história toda.

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Parte da dinâmica Bey-Jay sempre se baseou na ideia de que eles não parecem um casal que faça lá muito sentido, com cada artista mantendo em segredo quaisquer detalhes sobre a relação. Talvez você se lembre de uma entrevista com Beyoncé de 2003, onde Oprah lhe deu a dica pra “ficar calada” com relação a estar com Jay-Z. “Eu não falo sobre com quem estou saindo ou não”, Bey disse na época, “porque acho importante focar na música. E quando você começa a falar sobre esse tipo de coisa, então isso acaba se tornando maior do que a arte”. Oprah então apertou a mão de Beyoncé e disse “não é problema de ninguém fora seu e dele”. Em 2018, isso soa risível. Agora, o relacionamento dos dois é a arte. Esta turnê funciona como uma espécie de concessão para um público que sempre quis conhecer Beyoncé na intimidade, e também saber mais sobre seu casamento.

Ao vivo, é como se pudéssemos vislumbrar alguns trechos de interações entre Bey e Jay, em vídeos exibidos em dois telões enormes ao fundo do palco e também ao longo de duetos em faixas como “Deja Vu” e “Drunk in Love”. Nesta última, Bey aparece primeiro, em uma das duas plataformas que descem rumo ao público, localizadas à direita e esquerda no palco. Sozinha, ela carrega a música, bem como boa parte do set de hoje. Não tenho os dados para traçar um diagrama de Venn e verificar como ficaria a proporção entre “gente que veio ver Beyoncé” e “fãs que não odeiam Jay-Z por aparentemente ter traído Beyoncé”, mas considerando o quão queer o público aparentava ser, diria que poucos estão aqui pra ver o rapper. Esta demografia se traduzia em gritos agudíssimos aos primeiros acordes de canções como “Formation”, “***Flawless Remix” e “Baby Boy”, considerando ainda que 90% da ala-quase-VIP ali não conhecia o refrão de “Big Pimpin” . Só me resta torcer que nas arquibancadas as coisas tenham sido um pouco melhores pro Jay.

Sua agora infame frase com referências a violência doméstica, “eat the cake, Anna Mae” leva o público a acompanhar aos gritos, impressionantemente, durante a execução “Drunk In Love”, mas seus versos não chegam nem perto da emoção gerada por Beyoncé. Em momentos como este, fica claro como cada show desta turnê será diferente de cidade a cidade. Aqui, para minha surpresa, boa parte dos singles de Jay-Z soam desconhecidos aos presentes. “Dirt Off Your Shoulder” não gerou reação nenhuma no estádio — presumo que será bem diferente quando o casal tocar em Brooklyn, Atlanta e provavelmente Vancouver também. Vejo um outro cara ali e meneio com a cabeça, aliviado, ao ver que outra pessoa ali sabia a letra de “Show Me What You Got”.

Bem, mas falando de Jay-Z mesmo, a maior parte do público veio por “Niggas in Paris” — tocada na íntegra, com direito a rebobinada e tudo, um caos sem tamanho — e “99 Problems”. Retratos de diferentes artistas são reproduzidos nos telões enquanto Jay canta esta última e me pego pensando quantos entre os presentes reconhecem figuras importantes na luta pelos direitos dos negros como Angela Davis enfiada entre nomes do pop mainstream como David Bowie e Lisa “Left Eye” Lopez do TLC. No geral, os momentos mais melancólicos de Jay — como na áspera “Song Cry” ou em “The Story of OJ”, acompanhada de seu poderoso clipe — são recebidos com aplausos que mais parecem educados do que envolvidos. As pessoas talvez simplesmente não estariam familiarizadas com seu material em 4:44, que aborda temas como raça e masculinidade, se não fosse pelo fato de terem se inscrito no Tidal para ouvir o disco.

No final das contas, diante de um público britânico predominantemente branco, este é um show da Beyoncé com participação de Jay-Z e ele sabe bem disso. Jay manda um salve para ela algumas vezes ao longo da apresentação, pedindo ao público já escandaloso que faça barulho para sua esposa. Eles passam boa parte do set se alternando, participando em versos um na música do outro, antes de desaparecerem nas escadarias escondidas nas extremidades do palco e trocarem de roupa. Nos momentos em que o palco é compartilhado, é quase possível ouvir os maldizeres do fandom de Beyoncé que não perdoou Jay-Z pela traição. Fica claro que o casal quer apresentar uma história de amor rejuvenescido a este público. No começo do show, as telas pulsam com a mensagem “ISTO É A VIDA REAL”. Mas não é, né? Como foi o caso com o documentário de Beyoncé na HBO, Life Is but a Dream, de 2013, você só está vendo uma versão daquela “vida real” que contou com um excelente serviço de curadoria.

Estou perto do palco o bastante para conseguir vê-los sem auxílio dos telões e noto que, no começo de “03 Bonnie & Clyde” eles parecem relaxados, felizes. Mas isso não me parece um grande gesto de amor e sim uma apresentação belamente coreografada e intensa, que demanda muito esforço físico. Pode parecer que são duas pessoas lidando com seus problemas, ou duas pessoas cumprindo as suas funções de trabalho. Não consigo ver o amor grudento que Beyoncé demonstrava ao desviar das perguntas de Oprah, sorrindo e rindo como uma criança sem deixar escapar muito. Agora, vemos os dois no palco agindo como profissionais. Não chega a ser clínico, mas me sinto mais tocado pela precisão e esforço envolvidos ali — os vocais de Beyoncé, os movimentos de Jay-Z, os dançarinos se contorcendo, uma versão simplificada da banda de Beychella — do que pela História de Amor e Redenção™ vendida pela tour.

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Geralmente Beyoncé é criticada por ser encarada como uma máquina sem emoções e não é isso que quero dizer sobre o show conjunto com seu marido. Muito pelo contrário, esta turnê é fruto do que ela disse pra Oprah há anos: sua vida privada segue privada e eles talvez tenham tido que criar uma mítica em cima da coisa pra poder compartilhar algo conosco. Em 2003, Beyoncé acreditava que poderia fazer canções que não faziam referência direta à sua vida amorosa. Em 2018, tudo que os fãs querem é que Lemonade e 4:44 sejam obras estritamente autobiográficas, expondo as entranhas do casamento dos Carters em som e vídeo.

Assim sendo, esta tour parece uma forma de lidar com as coisas, em que Beyoncé e Jay-Z dão aos fãs o que querem — mais de si mesmos — enquanto transformam detalhes em performance. Ao fazê-lo, são capazes de subir ao palco noite após noite para cantar e rimar sobre amor, traições e pranchas de surfe sem se desgastarem. Em 2006, na frente de Oprah mais uma vez, Beyoncé falou o seguinte: “É importante manter o que é puro e real pra mim em perspectiva e que essas coisas fiquem separadas de meus shows”. Sabe deus o quê a Beyoncé de 2006 acharia de Everything Is Love. De qualquer forma, o último final de semana é algo que os Carters não esquecerão tão cedo.

Resenha originalmente na publicada no Noisey UK.

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