Numa manhã de outubro de 2018, numa cidade nos arredores de Moscou, a investigadora sênior da polícia Evgeniya Shishkina estava saindo de casa quando foi emboscada por um atirador. A tenente-coronel Shishkina conseguiu dar um soco no agressor. Ele escorregou, mas a atingiu na barriga. Enquanto ela estava caída no chão ele, deu outro tiro nela no pescoço.
O assassinato de Shishkina é considerado o primeiro caso de um ataque letal encomendado na dark web. A polícia russa e uma investigação da BBC alegam que o atirador foi contratado por uma plataforma de tráfico de drogas conhecida como Hydra, por um hacker russo que comandava uma de suas lojas de drogas online.
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Enquanto a polícia russa continua investigando o assassinato da colega, o tamanho e alcance da Hydra, que vende drogas na Rússia e em repúblicas pós-soviéticas, tomou os holofotes. Com origem no submundo de hackers da Rússia, o site emergiu para se tornar o maior bazar de drogas online do planeta. Mas também é um empreendimento de drogas da dark web como nenhum outro.
A Hydra tem impressionantes 2,5 milhões de contas registradas e 400 mil clientes regulares, segundo uma análise do ano passado do meio de comunicação investigativo Project. O maior mercado ocidental da dark web, AlphaBay, que fechou em 2017, tinha cerca de 400 mil usuários registrados no auge.
Segundo a pesquisa do Project, entre 2016 e 2019 as 5 mil lojas da Hydra contribuíram com 64,7 bilhões de rublos (US$ 1 bilhão) para a plataforma através de comissões de vendas, venda de perfis premium e aluguéis de lojas. É algo muito maior que as plataformas do tipo no Ocidente. O volume total de vendas passando por todos os mercados ocidentais da dark web entre 2011 e 2015 foi de US$ 191 milhões (12 bilhões de rublos).
A Hydra não só é maior. Ela representa um novo tipo de mercado da dark web. A configuração da Hydra vai parecer familiar para os compradores da dark web: logando através do navegador Tor, passando por um catálogo estilo e-Bay de químicos, fóruns e avaliações de consumidores, pagando com criptomoedas, uma pequena comissão saindo de cada venda. Mas há inovações.
A Hydra tem um jeito estrito de fazer negócios e um código de conduta supervisionado por uma central. Enquanto nos outros mercados os vendedores pagar apenas para abrir uma conta, na Hydra cada uma das cerca de 5 mil lojas pagam um aluguel mensal. Isso começa em US$ 100 por mês e sobe para US$ 1 mil por uma conta premium, conhecida como Trusted Seller, e seus anúncios aparecem no banner no topo do site. Trusted Sellers precisam ter pelo menos mil transações e as reclamações de clientes não podem exceder 7% do número total de encomendas por mês.
Os administradores da Hydra aprenderam com os mercados de drogas da dark web anteriores e sabem que confiança é a chave, então o mercado tem um sofisticado controle de qualidade. A Hydra é tem sua própria equipe de químicos e cobaias humanas para testar cada produto, e médicos de prontidão para dar conselhos de segurança. Tem um subfórum onde os resultados dos testes são postados, com gráficos, análises e fotos. Se o produto não for bom, os administradores podem dar punições. Qualquer um tentando vender orégano como maconha de primeira será expulso do site. Fentanila é proibida, assim como armas, assassinos de aluguel, vírus ou pornô, embora eles vendam drogas, passaportes falsos, cartões SIM duvidosos e dinheiro falso. No geral, essas regras pareciam ser obedecidas, apesar da investigação sobre a morte de Shishkina provar o contrário.
Mas o maior trunfo da Hydra é como ela cruza do reino digital para o mundo real.
Com ajuda de um exército invisível de entregadores, a Hydra monopolizou o tradicional tráfico de drogas nas ruas da Rússia. Como num videogame da vida real, as lojas online da Hydra usam traficantes conhecidos como kladmen (“tesoureiros” ou “conta-gotas”), cujo trabalho é esconder drogas em locais tagueados por GPS para serem buscadas pelos compradores online. É uma solução alternativa num país onde o correio é lento e pouco confiável, e comprar drogas nas ruas é altamente arriscado. É basicamente um Pokémon Go pra drogas.
Esse tipo de entrega nos mercados de drogas da dark web russa começou a ser relatado em 2014, mas sob os auspícios da Hydra o sistema proliferou. Em qualquer hora nas cidades da Rússia, há dezenas, até centenas de personagens suspeitos andando por parques e centros das cidades escondendo drogas como mefedrona, cocaína, MDMA e maconha, prontas para serem buscadas pelos compradores. Essas entregas podem acontecer em árvores ocas, arbustos nas ruas, no fundo de blocos de apartamentos ou em caixas de transformadores elétricos, em locais públicos movimentados, perto de estações do metrô e nas florestas locais.
Depois de completar a transação online, os vendedores mandam aos clientes coordenadas, fotos e direções para encontrar o tesouro escondido. Por exemplo: “vá para a entrada norte do parque e procure embaixo da terceira árvore à esquerda”. Depois dessa pequena aventura, os compradores têm 24 horas para confirmar que estão com o produto e deixar uma avaliação. E com os negócios a pleno vapor, a Hydra criou uma nova profissão para os jovens russos.
Galina* começou a fazer entregas “por desespero” em Moscou cinco anos atrás, quando tinha 20 e poucos anos. Entrei em contato com ela com ajuda de um intermediário com experiência nas ruas e no mundo das drogas online. (*Galina é um pseudônimo e nem ela nem o intermediário quiseram ser identificados.)
“Eu tinha um empréstimo, muitas dívidas, e do nada perdi meu emprego. Eu precisava urgentemente encontrar uma saída”, ela me disse por um chat criptografado. “Eu já tinha experiência como usuária de drogas, e já comprava em sites, então decidi que era hora de entrar para o negócio.”
Antes de começar a trabalhar, os entregadores pagam um depósito de cerca de 6 mil rublos (US$ 80) para a loja com bitcoin ou uma carteira Qiwi. Eles são pagou pelos mesmos meios anônimos. Quando escondem o equivalente a 6 mil rublos em tesouros, eles podem começar a lucrar.
Galina recebia uma comissão dependendo do peso e tipo de droga em cada entrega. As mais baratas são haxixe e maconha, 300 e 400 rublos (US$ 4 e US$ 5) por grama, enquanto cocaína e mefedrona pagam as maiores comissões, 600 e 1 mil rublos (US$ 8 e US$ 14) por grama. Ela disse que escondia de 10 a 20 “tesouros” por dia. Algumas vezes ela chegou a esconder de 30 a 40. No começo ela trabalhava com haxixe, MDMA e anfetaminas, depois quase exclusivamente com mefedrona, uma droga que ganhou popularidade na Rússia na última década.
Ela pegava as drogas do que ela chama de um “esconderijo mestre”, um estoque de entre 20 a 500 gramas, escondido numa floresta bem longe de Moscou.
“Às vezes as coisas já vinha embaladas, mas às vezes tínhamos que dividir nós mesmos”, ela disse. “Por exemplo, você pega 200 gramas de mefedrona. Leva pra casa e embala lá. Esse é um exercício muito demorado e chato, mas eu podia decidir quantas entregas de que peso queria fazer, o que é muito conveniente. Geralmente eu fazia 10 entregas de uma grama, 10 de duas, e ia escondê-las, deixando o resto para a próxima vez.” Anotando onde os pacotes estão escondidos, ela mandava as coordenadas para o chefe da loja. Assim que alguém fazia um pedido, ela recebia as coordenadas de GPS.
A segunda tarefa do entregador é tirar uma foto e escrever uma descrição do local, postando os bens no site da loja. Para entregar dez pacotes ela levava uns 30 minutos. Ela disse que às vezes as postagens davam problema: “O Tor pode, a internet cair… aí você tem que começar tudo de novo.”
Acompanhando a nova profissão altamente ilegal russa, há um guia prático. Os procedimentos são revelados na Bíblia do Kladman, um guia passo a passo de 26 páginas para entregadores da Hydra, que pode ser visto em vários fóruns da Hydra. Uma versão anterior da bíblia circulava entre entregadores no RAMP, um antecessor menor da Hydra, o primeiro site a usar esse modo de tráfico numa escala significativa. Mas desde então o guia foi atualizado e revisado.
A bíblia aconselha os entregadores a usar celulares criptografados (para que a polícia não possa rastrear entregas anteriores) e ferramentas para baixar mapas (para marcar os esconderijos sem ter que estar conectado a internet). Sem surpresa, o guia diz para os entregadores iniciantes evitarem chamar atenção. “Você precisa parecer normal, comum, mas limpo, e mais importante, ande com confiança e calmamente. Você não precisa ficar virando a cabeça pra todo lado como um idiota, foque num objeto específico”, ele diz. “Não aja de maneira suspeita ou tenha pressa; não saia por aí vestido como um punk ou um mendigo; e também não use terno e gravata. Seria estranho ver um gerente de escritório saindo do mato.”
Bons esconderijos são lugares “onde o cliente precisa esticar a mão para pegar”, como arbustos altos e caixas de transformadores. Lugares ruins são perto de escolas, cemitérios e delegacias (onde os entregadores podem chamar atenção), pátios de blocos de apartamentos (porque os portões podem estar trancados quando o cliente chegar lá) e calhas (a menos que a embalagem seja impermeável).
“Tem dois jeitos de fazer suas entregas. Você pode sair para dar uma volta, procurando lugares para esconder coisas, fazendo as entregas e tirando fotos. Isso é mais rápido, mas mais arriscado, porque você está andando por aí com uma mochila cheia de drogas”, disse Galina. “Outro jeito é dar uma volta sem a mercadoria e anotar possíveis esconderijos, aí voltar com as drogas para esconder. Leva mais tempo, mas dá pra descobrir mais esconderijos e é menos perigoso. A velocidade com que você faz o trabalho é menos importante que a eficiência.”
Então quem forma o novo exército de entregadores de drogas da Rússia? O advogado Arseny Levinson comanda o serviço de ajuda legal Hand-Help.ru, que oferece assistência para pessoas presas por acusações de drogas. Ele diz que todo tipo de gente se torna entregador, mas geralmente são jovens. Segundo sua análise das estatísticas do Ministério da Justiça russo, mais da metade dos condenados por tráfico de droga em 2018 eram pessoas de 18 a 25 anos e estudantes. Ele diz que isso tem muito a ver com os entregadores da Hydra.
“É o mesmo tipo de pessoa que trabalha na Yandex Pizza Club”, disse Levinson. (Yandex é um aplicativo de entrega de comida na Rússia.) “Na verdade, os anúncios para entregadores na Hydra são quase exatamente iguais: horas de trabalho flexíveis que se encaixam no seu tempo de estudo.” Enquanto o Yandex promete pelo menos mil rublos (US$ 16) por dia, um entregador da Hydra pode ganhar três vezes isso.
“Provavelmente metade deles têm algum problema com uso de drogas, ficam sem dinheiro para comprar mais e se voltar para entregas para financiar a própria dependência”, continuou Levinson. “A outra metade são estudantes de áreas rurais da Rússia sem outros meios de ganhar dinheiro. Em Moscou você consegue um emprego entregando pizza, mas nas províncias não há oportunidades assim.”
Eduard* foi entrevistado na prisão Altai na Sibéria ano passado por um site de notícias local, enquanto cumpria sete anos por tráfico de drogas. Ele decidiu se tornar um entregador depois de sair do exército e ver um anúncio para ser kladman enquanto comprava drogas na internet. Em certo ponto, ele disse que estava fazendo 70 entregas por dia, usando o dinheiro para comprar novos móveis para seu apartamento. Eduard disse que se tornou entregador não só pelo dinheiro: “Tem outra coisa envolvida nesse trabalho. Adrenalina. A sensação de que você consegue se safar quando está prestes a ser pego”.
Outro ex-entregador, George*, disse a BBC Rússia que começou com 24 anos em Nizhny Novgorod, ganhando três vezes mais que o salário médio da cidade. Como ele adorava florestas e parques, ele costumava enterrar drogas à noite quando esses lugares estavam mais calmos.
É difícil dizer exatamente quanto do tráfico de drogas na Rússia acontece na dark web. Mas todas as evidências apontam para algo como uma tomada das vendas online.
“Agora essa é uma maneira muito comum de conseguir drogas na Rússia e na Comunidade dos Estados Independentes”, disse Patrick Shortis, especialista em criptomercados da Universidade de Manchester. “A Hydra é imensamente significativa na Rússia, e de longe o mercado em russo mais popular para esse tipo de atividade.”
Shortis disse que a Hydra é mais multifacetada e difícil de conter que outros sites de mercado de drogas. “Vendedores recrutam entregadores de várias áreas geográficas para expandir seus negócios”, ele disse. “Eles também podem contratar gerentes de relações com o consumidor para lidar com os clientes pedindo informação sobre suas entregas. Isso significa que, enquanto vendedores no Ocidente geralmente são pensados como uma pessoa ou um pequeno grupo, vendedores que vemos na Hydra provavelmente representam uma rede maior de envolvidos.”
Shortis disse que a Hydra é muito mais visível para a polícia, mas isso não a torna mais fácil de investigar. “Quem trabalha no final da cadeia, que faz a maior parte das entregas, tem uma chance muito mais alta de ser preso. Mas quando são, eles sabem pouco sobre as outras pessoas na rede do vendedor, e consequentemente as autoridades ficam sem pistas”, ele acrescentou.
A plataforma também está muito mais na cara do público. “Como entregadores e clientes estão andando por Moscou e São Petersburgo entregado e pegando pacotes, o mercado de drogas online da Rússia é muito mais visível que no Ocidente. Isso é muito diferente dos criptomercados ocidentais, onde a privacidade e o método de entrega deixa o público menos consciente desses mercados de drogas online.”
Com cada mudança no mundo criminal, vem uma nova onda de parasitas. Fora a polícia, os inimigos naturais dos entregadores é um grupo de ladrões de drogas conhecidos como “buscadores”, que caçam as drogas escondidas pelos entregadores. Para os entregadores que acabam chamando a atenção de buscadores quando fazem entregas, ou cujos esconderijos são facilmente encontrados por alguém procurando os tesouros, os buscadores são uma baita dor de cabeça. Se os compradores vão para um lugar de entrega vazio, eles vão reclamar com os administradores da Hydra, que vai banir entregadores que têm seus esconderijos roubados com frequência.
A Bíblia do Kladman diz que os entregadores precisam ter cuidado extra quando escondendo uma entrega perto de estações de metrô, “mesmo que isso seja mais conveniente para os clientes, também é mais conveniente para os buscadores”.
Os buscadores adoram os longos invernos russo, quando a neve revela uma variedade de esconderijos pelas cidades, parques e florestas. É só seguir uma trilha de pegadas na neve para um lugar onde ninguém iria normalmente, e os buscadores sabem que no fim da trilha haverá um tesouro.
Os entregadores da Hydra não estão apenas preocupados com a polícia e os buscadores. Também tem os violentos ativistas antidrogas da Rússia.
O Movimento Cidade Sem Drogas (CSD) começou em Ecaterimburgo no começo dos anos 2000 por Evgeny Roizman, que mais tarde se tornou prefeito da cidade. Com os anos, o grupo já foi acusado de sequestrar viciados, os acorrentar e os fazer passar pela síndrome de abstinência, laços com a máfia, e racismo e xenofobia contra imigrantes. Roizman insiste que não é contra imigrantes, só aqueles que cometem crimes. Mas agora o CSD está refocando sua mira.
Conheci Alexander Shumilov, que comanda o ramo do Cidade Sem Drogas em Irkutsk, no QG do grupo em Ecaterimburgo. “Não tentamos salvar o mundo, fazemos o que podemos”, ele me disse. Ele diz que a Hydra mudou a natureza do tráfico de drogas, então os alvos de Shumilov agora são muito diferentes. “Temos uma base de dados de entregadores e damos uma sacudida neles. Antes, quando estávamos lidando com heroína, claro que eram principalmente ciganos e tadjiques, e todo usuário também era vendedor. Agora podem ser russos, qualquer um. Não são apenas viciados fazendo entregas, são garotos recrutados nas redes sociais. Eles não são profissionais, eles não querem ir pra cadeia, então acabam falando.”
Mas como os entregadores não sabem quem está pagando a eles, não fica claro o que a polícia e grupos de justiceiros como o CSD vão alcançar pegando alguns entregadores de rua e seus estoques. Uma operação da polícia em novembro, que apreendeu quase meia tonelada de várias substâncias, não prendeu nem um vendedor – apenas sete entregadores.
Isso traz outra pergunta interessante. Em muitas parte do mundo, a atitude das autoridades para com drogas tem sido “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. A antiga divisão de drogas da Rússia, o FSKN (Serviço Federal de Controle de Narcóticos), era tão corrupta que ganhou o apelido Gosnarkokartel (“agência cartel de drogas”) antes de finalmente ser dissolvida em 2016. Considerando o que sabemos sobre hackers russos e a máfia russa, sem falar da corrupção dentro do DEA no caso do Silk Road, será que a Hydra não tem amigos importantes?
“A colaboração entre as lojas e autoridades é um mito, talvez pensado pelas próprias autoridades”, disse Galina. “Como seria possível? Às vezes eles acabam pegando um administrador de loja que obrigam a trabalhar pra eles, ou trazem alguém que foi pego numa loja. Mas esses casos são raros. Não tem uma proteção oficial da polícia para as lojas, porque graças ao Tor, os administradores continuam anônimos e elusivos.”
Mesmo assim, enquanto os barões das drogas da dark Web continuam intocáveis, isso não significa que oficiais empreendedores não podem entrar no jogo.
“O narconegócio na Rússia é conhecido por nunca estar muito longe dos siloviki [oficiais de segurança]”, explicou Levinson. “Se antes armar para usuários era a principal armadilha, agora a polícia está abrindo suas próprias lojas e arranjando seus próprios traficantes. Sempre ouvimos casos disso, por exemplo em Khakassia. O jeito como você pode fazer dinheiro e maximizar suas estatísticas descobrindo mais ‘grupos criminosos’.”
Em novembro, um ex-policial em Khakassi, no leste da Sibéria, acusou seus superiores e o chefe do esquadrão antinarcóticos da região de controlar o mercado de drogas e um esquema de proteção centrado na loja online “Killer Dealer”, especializada em drogas sintéticas. Depois de supostamente revelar o esquema, Yuri Zaitsev, 36 anos, foi acusado de aceitar subornos de traficantes. Zaitsev postou um vídeo no YouTube dizendo que os oficiais de narcóticos, trabalhando com o FSB, usaram sua posição para ganhar inteligência sobre traficantes dispensáveis e os prenderem, dando a impressão que eles estão realmente lutando contra o crime. Quando os traficantes deles eram pegos, eles interviam pessoalmente para que as queixas fossem arquivadas. Depois de postar o vídeo, Zatsev foi acusado de revelar segredos de estado, e sua esposa Elena disse a repórteres que teme pela vida dele e que ele possa sofrer um “acidente” na prisão.
Claro, essa não é só uma turma de policiais cowboys das remotas fronteiras da Sibéria. Por exemplo, em julho passado saiu a notícia que dois chefes de polícia foram presos por comandar um cartel de drogas online em Moscou. E esses são apenas alguns dos casos de que ficamos sabendo.
“É possível que muitos entregadores sofram armações”, disse Levinson. “Se alguém diz: ‘Chega, essa é minha última vez’, ele não significa mais lucro para a loja e acaba vendido para a polícia.”
A Rússia agora tem mais pessoas cumprindo pena por tráfico de drogas que qualquer outro crime, uma posição antes ocupada por assassinato.
“Isso é parcialmente por causa do aumento no número de entregadores, mas também por causa do endurecimento das políticas de drogas nos últimos dez anos, com sentenças cada vez mais pesadas”, explicou Levinson. “Presos por drogas são o maior grupo porque há muitos deles e eles ficam presos mais tempo. É muito difícil sair antes com acusações de drogas, como com terroristas e pedófilos. Mas não são apenas aqueles escondendo as drogas que são presos, mas aqueles que as buscam: os entregadores e seus clientes.”
Com tantos tesouros para serem encontrados, Moscou está cheia de pessoas suspeitas entregando e buscando drogas. Enquanto a dark web tornou isso mais seguro em certos aspectos, você ainda encara uma pena por andar pelas ruas com alguns gramas no bolso.
As raízes da Hydra estão nos fóruns de hackers que surgiram na internet russa no final dos anos 90, começo dos 2000. Naquela época, eu estava cumprindo pena no Reino Unido, e dividia uma cela com Misha de Moscou. Misha estava cumprindo cinco anos por conspiração de fraude, depois de usar um vírus para canalizar £3 milhões (então por volta de $4,5 milhões) de contas bancárias comprometidas para contas controladas por ele e outro cara do Cazaquistão. Ele foi pego, como de costume, por um erro idiota: um dia, ele esqueceu de ligar o equivalente ao VPN ou Tor em seu computador, então eles rastrearam seu IP e o algemaram quando ele estava embarcando num voo para o Cazaquistão. Ainda assim, um baita empreendimento para um cara de 20 e poucos anos.
Tem duas razões para a Rússia continuar gerando cibergolpistas como Misha. A primeira é que a Rússia tem muitas pessoas inteligentes que estudaram. Universidades russas produzem grandes cientistas, engenheiros, programadores e matemáticos. Infelizmente, o país não produz muitos empregos bons para eles. A segunda é que o governo realmente usa hackers como piratas para fazer seu trabalho sujo, é por isso que os mesmos nomes sempre aparecem em investigações de cibercrimes e segurança nacional. Desde que você não prejudique negócios russos, é temporada aberta no Ocidente. Vá, roube para a Mãe Rússia!
Alguns desses sites foram de lugares para compartilhar informações de cartão de crédito para sites onde você podia conseguir drogas, e dessa comunidade de psiconautas hackers surgiu o RAMP, a versão russa do Silk Road. O RAMP (Russian Anonymous Marketplace) entrou em cena em 2012, construindo uma plataforma onde em vez de troca de mensagens entre os usuários, você podia simplesmente ver um anúncio e clicar em comprar. Diferente da retórica libertária cercando o Silk Road, o RAMP se recusava a apoiar qualquer agenda, sabendo muito bem o que acontece com quem faz isso na Rússia. E diferente do Silk Road, em vez de cobrar comissões de cada venda, eles cobravam uma taxa fixa para fazer negócios na plataforma.
A Hydra nasceu em 2015 da junção de dois fóruns menores, Legal RC e Way Away, ambos especializados em drogas sintéticas. Segundo uma investigação ano passado do jornal online de Moscou Lenta.ur, o RAMP estava lançando campanhas hostis, mobilizando seus hacker para lançar ataques DDoS em sites rivais. O Legal RC e o WayAway foram os últimos que não caíram, e tiveram que se unir se queriam sobreviver.
Mas o RAMP tinha grandes fraquezas desde o início. Primeiro, sua recusa em se comprometer com qualquer coisa política se estendia a uma proibição de publicidade. Dois, ele não permitia a venda de mefedrona ou canabinoides sintéticos (spice). É um daqueles estranhos preconceitos que usuários de drogas têm entre si: não importa quanto a sociedade desdenhe de seu intoxicante preferido, sempre tem alguém pior. A Hydra, enquanto isso, tinha químicos trabalhando em suas lojas fabricando essas novas substâncias, e uma linha de fornecimento direito com a China, permitindo que eles monopolizassem o mercado em áreas mais pobres onde os sintéticos são mais populares. O RAMP ignorar essa demografia deu uma vantagem a Hydra.
Eventualmente, o RAMP tentou fechar esse ponto cego, tentando cooptar os químicos e fornecedores da Hydra. A Hydra contra-atacou, fechando o site com uma série de ataques DDoS. Uma clássica guerra por território começou no ciberespaço, só que em vez de carros bombas e tiroteios, era um bando de nerds jogando bots uns nos outros.
O site caindo constantemente estava custando caro para os traficantes do RAMP, então eles começaram a sair da plataforma aos montes. Os admins começaram a perder o controle, então entraram no modo full Stalin, lendo as mensagens privadas dos membros para saber quem ainda estava do lado deles. Eles denunciaram uma loja desleal para a polícia como exemplo para os outros. A Hydra descobriu os códigos do RAMP e fez doxxing com os admins. O golpe final veio quando um operador de troca de bitcoin e suposto lavador de dinheiro foi preso na Grécia e $170 milhões desapareceram, incluindo grande parte do fundo do RAMP para contratar hackers mercenários.
No verão de 2017, o RAMP estava morto e o Ministério do Interior russo (MVD) deu uma declaração triunfante tentando levar o crédito por derrubar o maior mercado online de drogas da Rússia. Na verdade, apesar de a polícia ter descoberto alguns fornecedores do RAMP, foi a Hydra que matou o site. De qualquer maneira, com seu maior competidor fora do caminho, a Hydra começou a consolidar suas vitórias. A plataforma embarcou numa agressiva campanha publicitária, postando vídeos no YouTube, comprando bases de dados de números de telefone e spameando mensagens, e absorvendo os cartéis já existentes, os convidando para participar da festa.
Ano passado saiu a notícia de que o fundador e administrador chefe do RAMP, Darkside, que usava um avatar do Ed Norton em Clube da Luta, morreu de overdose de heroína em Nizhny Novgorod em 2015.
Agora a Hydra tem milhares de lojas de drogas online atendendo cada canto da Federação Russa, de Vladivostok ao Extremo oriente até a Crimeia anexada recentemente. Há até alguns ramos e lojas operando na Ucrânia, Bielorrússia, Cazaquistão e ex-territórios soviéticos. O modo como a Hydra conseguiu tomar e monopolizar os negócios parece coisa do Narcos.
Antigamente, você precisava de laços com políticos e no submundo para entrar no narconegócio russo. Cocaína entrava por São Petersburgo, supostamente sob proteção de figuras poderosas, desde pelo menos os anos 90, apesar de o preço alto colocar a droga fora do alcance para a maioria dos russos. Enquanto isso, havia uma rota de heroína entre os campos de papoulas no Afeganistão e passando pela ex-república soviética do Tajiquistão: quilos de heroína eram escondidos em aviões militares, depois distribuídos pela diáspora tadjique.
Agora, a ascensão de novas drogas sintéticas e mercados de drogas online como a Hydra significa que qualquer um pode montar uma loja como traficante. Na Hydra, a maioria dos donos de loja são ex-pequenos participantes do mundo Hydra. Três anos atrás, Galina decidiu progredir de entregadora para dona de loja.
“Quando você entende como tudo funciona e decide que não aguenta mais só ter as migalhas do que cai da mesa do mestre, você só precisa economizar algum dinheiro”, ela disse. Galina me disse que quem quer ser dono de uma loja só precisa de cerca de 60 mil a 100 mil rublos (US$ 800 a US$ 1.300) – para começar a comprar drogas e pagar o aluguel – para montar uma loja na Hydra.
Mas quem fornece para as lojas? Se você não é amigo de nenhum barão do ópio, nada tema: tudo que um dono de loja precisa, no estilo atacado e armazém, fica por conta da Hydra. Catinonas e outras drogas sintéticas agora são incrivelmente populares na Rússia, e a Hydra vende kits DIY de spice e mefedrona, além de ingredientes brutos importados da China. Os químicos de Galina cozinham essas substâncias, mas ela fica fora do lado Heisenberg do negócio.
“Tenho minha própria cadeia de produção agora. Não toco no processo, então não sei dizer se as coisas são muito complicadas. Os químicos têm seus próprios canais de fornecimento; só forneço os fundos pra eles.”
Segundo Galina, os vendedores na Hydra geralmente mais colaboram que competem uns com os outros. “Compramos produtos uns dos outros; nos avisamos de empregados que não são de confiança e ameaças da polícia”, ela disse. “Sim, às vezes alguém traz produtos muito mais baratos pra sua cidade; o que pode prejudicar suas vendas. Mas as pessoas escolhem não só por preço, elas levam em conta lugares convenientes para entregas, a reputação da loja e seus produtos específicos. As lojas tentam ocupar nichos próprios. Em Moscou, por exemplo, algumas lojas lidam com cocaína e mefedrona cara, e tem lojas que basicamente só vendem maconha. Não tenho nada pra dividir com esses caras, por exemplo.”
Como com qualquer negócio, as lojas têm uma divisão de trabalho: alguém coordena o estoque, alguém faz a contabilidade, alguém cuida das plantas de ganja, e assim por diante. Galina tem um ajudante que faz a administração quando ela não pode. Mas a vida de uma vendedora da dark web é muito ocupada, e ela raramente pode relaxar.
Agora ela emprega uma equipe de seis entregadores. “Um bom entregador precisa ser honesto e responsável”, ela disse. “Nem todo mundo resiste à tentação de usar o produto ou revender. Esse é o principal problema para encontrar trabalhadores. Você pode ensinar qualquer como fazer uma boa entrega com o tempo. Mas não dá pra ensinar princípios morais.” Alguns entregadores trabalhando pra ela perdiam uma entrega aqui e ali, então ela teve que demiti-los.
Pergunto a Galina sobre sua vida fora da Hydra. Ela diz que tem pouco tempo livre. “Na maior parte do tempo estou comandando a loja. Sou uma pessoa muito cuidadosa e gosto de ter tudo sob controle. Acho difícil imaginar o dia em que vou poder delegar autoridade para outra pessoa e parar de lidar com o negócio diretamente. Mas claro, preciso relaxar. Vou a bares e café, assisto TV e documentários. Às vezes visito amigos em outras cidades. Eu gostaria de fazer uma viagem de carro pela Rússia um dia, mas agora isso não é possível.”
Ela diz que tem pouco tempo livre, mas Galina pelo menos conseguiu não ser presa, diferente dos outros entregadores parte das 19 mil pessoas condenadas por tráfico de drogas na Rússia em 2018.
Um dono de loja na Hydra, entrevistado ano passado, disse que às vezes consegue evitar que seus entregadores sejam presos subornando policiais com 500 mil rublos ($6.800). Mas outros não têm tanta sorte.
“Essa é uma imagem bonita”, digo, olhando para um desenho do Pikachu.
“Sim, ele se esforçou pela irmã”, diz Oxana Orlova, sorrindo. Ela mora em Kirov, uma cidade na região de Volga ao leste de Moscou. “Ele é um menino muito criativo. Ele adora escrever poesia e música. A mais nova ainda não sabe de nada. Ela acha que ele viajou para estudar.”
Em 2017, Sergey, filho de Oxana, foi preso e condenado por tráfico enquanto fazia uma entrega para uma loja online chamada Don Diego quando ele tinha 18 anos.
Tudo começou quando Sergey quis um novo iPhone. Os outros garotos da escola tinham, ele não. “Ele tinha um celular normal mas quebrou, e por volta dessa época notamos que ele estava relaxando com os estudos”, continuou Oxana. “Punimos ele e demos o celular velho do avó até que ele melhorasse as notas.”
Acontece que Sergey estava fazendo algo mais que apenas não prestar atenção nas aulas de biologia. No dia 26 de junho de 2017, ele foi pego com dois amigos tentando fazer uma entrega. Foi apenas um dia antes de sua formatura no ensino médio, e Sergey conseguiu ligar para o pai pra dizer que ele não poderia ir.
“Nos sentimos tão idiotas. Não entendemos anda. Fui assustador”, lembra Oxana. “Éramos como gatinhos cegos. Não sabíamos o que fazer e pra onde correr.”
Entregadores são processados pelo artigo 228 do código criminal russo (tráfico de drogas) e podem pegar até 20 anos de cadeia, mesmo por quantidades relativamente pequenas. Sergey pegou inicialmente sete anos, depois outro tribunal aumentou a pena para 13. Seu amigo de 18 anos também pegou 13 anos, e o terceiro adolescente, de 17, pegou cinco anos. Finalmente, em janeiro deste ano, depois de quase quatro anos apelando e mostrando seu caso na mídia, Oxana e sua família conseguiram reduzir a pena para seis anos.
“Sim, todo mundo está nos parabenizando – parabéns, seu filho pegou seis anos!”, ela disse, com a voz cheia de sarcasmo.
A vida na “Zona” (gíria para prisão) não é fácil para os jovens detentos. Como nos EUA, os condenados são usados como mão de obra barata. Celas superlotadas e cuidado médico inexistente são um ótimo jeito de pegar tuberculose. Tortura é comum. Para os jovens detentos, passar tempo na Zona vai aproximá-los da subcultura da prisão, o que não quer só dizer cantar o hit favorito das cadeias “Vladimirsky Central” de Mikhail Krug. Os recém-chegados com carinha de bebê podem encarar bandidos tatuados conhecidos como vory-v-vakone (“bandidos da lei”), ou panelinhas menores de neonazistas e jihadistas. Em companhia tão ilustre e com poucas opções lá fora, não é surpresa que a taxa de reincidência na Rússia seja tão alta: mais de quatro de cinco detentos são hóspedes frequentes das prisões.
Oxana me mostrou uma foto recente onde Sergey parece magro e pálido. “Ele perdeu muito peso; pegou dermatite e a visão dele não está boa. Ele trabalha seis dias por semana costurando mochilas. O regime é muito estrito mas ele não está envolvido em nada. Tanta perda e tantas lágrimas!”, Oxana chorou. “Quantas meninas e meninos! Eles não tiveram tempo de terminar a escola e já estão presos!”
Os entregadores podem ser aqueles que acabam na cadeia, mas são dispensáveis. É muito fácil encontrar novos recrutas.
O RAMP e a Hydra revolucionaram o jogo das drogas na Rússia. Se antes você tinha que ir até um vilarejo de romas, todo mundo agora trabalha online. O sistema de avaliação dos clientes e serviços de testes tiram golpistas e vendedor de óleo de cobra da imagem – e é mais fácil evitar a polícia.
Em janeiro, o MVD anunciou que uma unidade especial seria formada para combater o tráfico de drogas online. Se eles têm novos truques na manga ou vão continuar fazendo mais do mesmo, não se sabe. Ano passado, o governo também aprovou uma lei de “soberania da internet” para (teoricamente) cortar a Rússia da internet no caso de uma ciberataque global. Não está claro que efeito isso terá no Tor e nas atividades da dark web, mas é possível que a ameaça das drogas seja usada como desculpa para trancar a internet.
No final das contas, quando chegar o dia de derrubar a Hydra (e esse dia vai chegar), não vai levar muito tempo para outros sites aparecerem e a vida continuar. Nesse sentido, isso não é diferente de nenhum outro cartel no mundo. Matar Pablo Escobar levou a uma Colômbia livre das drogas? Não, né. A questão sobre a Hydra é: corte uma cabeça e duas vão crescer no lugar.
A Hydra pode ser o futuro do tráfico de drogas? “O que está acontecendo na Hydra mostra que os mercados de drogas online vão evoluir segundo a necessidade de sua demografia e a qualidade de sua infraestrutura”, disse Shortis. “O processo de fazer uma compra não é tão confortável quanto sentar em casa e esperar o carteiro. Clientes podem ir para uma cidade ou campo e procurar sua compra enquanto evitam suspeitas da polícia e outros membros do público. Alguns clientes também podem ter que viajar grandes distâncias só pra descobrir que sua compra foi roubada por alguém que viu onde o entregador escondeu a mercadoria, ou que a polícia está patrulhando a área na hora. Enquanto a Hydra é muito popular na Rússia, o site raramente é discutido em fóruns de criptomercados ocidentais.”
Antes de desligar, Galina me deixou com um último pensamento: “Sou só outra pessoa levada a fazer isso por preços altos, salários baixos e falta de esperança no futuro. Na Idade Média na Rússia, pessoas comuns acabavam se desesperando, fugindo para as florestas e se tornando foras da lei. Agora, elas estão se escondendo na dark web e se tornando traficantes”.
*Alguns nomes foram mudados para proteger a identidade dos entrevistados.
Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido.
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