Uma entrevista com Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector

Todo grande artista vive para além da vida e para além da sua obra. E no século XXI, uma ótima régua para se medir a estatura inspiracional de uma figura pública é ficar esperto nas montagens com aforismas e citações supostamente escritas/ditas/psicografadas por esses grandes pensadores. De Platão à Steve Jobs, de Pondé à Dalai Lama. No Brasil, há décadas que a Clarice Lispector (1920-1977) é talvez a principal vítima dessa criatividade um tanto quanto sacana, tanto que a sua mais famosa frase nos dias de hoje é pura e serelepe invenção da era Orkut.

Clarice (quem é fã fala dela usa essa intimidade cordial mesmo) é a maior escritora da história do Brasil, certo? Certo. Mas, ao contrário de Paulo Coelho, Sepultura e Ronaldinho(s), durante décadas sua obra recebeu pouco ou nenhum reconhecimento internacional. Porém a saudade de algo o qual eu mal vivi ou evitava viver começou a ganhar o mundão graças à biografia Why This World (2009), escrita pelo norte-americano Benjamin Moser (publicada por aqui com o título Clarice,).

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Neste ano, Moser trouxe para o público leitor do inglês a coletânea de contos The Complete Stories (2015), traduzidos por Katrina Dodson, para introduzir ao mundo a literatura da autora modernista e seu pioneirismo ao tratar com um olhar singular questões femininas. A compilação entrou na lista de melhores publicações do ano do New York Times. A crítica internacional a coloca ao nível dos russos Chekhov e Nabokov, enquanto Lispector, com seu misticismo e olhar peculiar, está mostrando uma face mais complexa do Brasil – além dos estereótipos propagados tanto pela mídia internacional quanto pelos veículos brasileiros.

As percepções da vida de Clarice Lispector vão do mundano ao metafísico, capazes de prender seus leitores como feitiços. Pela primeira vez, a visão da mulher numa sociedade patriarcal flui nas páginas, algo muito raro até nos dias contemporâneos; a coerência é mutilada, bifurcando-se em desordem guiada por palavras de um português diferente. Moser e os fãs falam dela com tanta intimidade que a chamam apenas de Clarice, uma figura ao mesmo tempo complexa e cativante. Nascida de uma família judia e russa na Ucrânia, a autora migrou com um ano para o Brasil após a Guerra Civil Russa. Sua mãe sofreu um estupro coletivo por soldados russos, estudou Direito num período em que não era comum ver mulheres na sala de aula (quanto mais judias), casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente. O biógrafo conversou conosco sobre seu objeto de pesquisa e afeto, explicando por que a vê como uma pioneira e sua relevância para o mundo, além de apontar que seu próximo trabalho será sobre a crítica de arte e ativista Susan Sontag (1933-2004).

VICE: Como entrou em contato com a obra de Clarice Lispector?
Benjamin Moser
: Fiz o ensino médio na França. Voltei aos EUA para a faculdade, onde comecei a estudar chinês, pois acreditava ter ficado muito tempo na Europa e queria algo que fosse o oposto daquilo linguística e culturalmente – mas fracassei. Porém queria outro idioma naquele horário, e o único disponível era português; entrei nas aulas só para aprender outro idioma, e foi naquele curso que descobri A Hora da Estrela. Depois disso, fiquei tão marcado pelo livro que queria fazer algo por aquela senhora, mas não imaginava como: tinha apenas 19 anos e via ali uma obra de nível mundial – e, se as pessoas não sabiam disso, era culpa delas [risos]…

Quando você adora um livro, quer compartilhá-lo, porém as traduções eram tão ruins que eu não falava dele e até avisava: “Não leia, pelo amor de Deus, a tradução é tão ruim que você vai achar uma merda essa autora e não entenderá seu tamanho e importância” [risos]. Fiquei anos trabalhando em como fazê-la chegar a essas pessoas: fiz a biografia, que foi um grande risco porque era uma desconhecida para este público (estrangeiro), porém falei a mim mesmo: “Se fizer isso e virem quem é, vão querer lançar os livros também” – e foi o que aconteceu. Realmente, foi muito bom e tem dado certo com ela, embora pudesse não ter acontecido, e eu teria quase quarenta anos e feito tudo isso para nada.

Todos me chamavam de louco porque ninguém conhecia Clarice – verdade que, no Brasil, é difícil dizer que ninguém sabe quem é –, mas imagine um autor japonês: você fala dele em Cuiabá, e ninguém pode ler. Você se sente esquisito, até meio louco, e as pessoas não têm como ler essa pessoa tão maravilhosa. Então, quando olho para trás, eu realmente acho que estava louco, mas amor é isto: uma paixão que você quer e quer.

O meu [livro sobre] Clarice [Why This World] publicado em 2009 levou cinco anos. Comecei em 2004, ou seja, ao todo, são 12 anos e pouco trabalhando para construir um público para ela em inglês, o que não foi fácil, e, por isso, estou louco de felicidade: afinal, todo mundo tem sonhos como [seria] quando você lança algo assim que encontra seu público-alvo – digamos, “sua gente”. Entretanto, muitos livros, discos e outras obras não encontram seu público mesmo merecendo, mas ela, sim.

Clarice teve uma vivência muito sofrida por ter vindo de uma família imigrante vítima de guerra. Pode-se perceber esse “eu” dela nos seus textos? Qual sua relação com as protagonistas de seus livros?
Realmente muito sofrida. Quando posto algo no meu Facebook, alguém vai lá e escreve: “Mas, na verdade, ela não era daqui, ela era da Ucrânia”. Sim, nascida na Ucrânia, porém chegou a Alagoas com um ano de idade – e quer lugar mais brasileiro que Alagoas? Eu acho difícil. Sempre pensavam que ela tinha algo esquisito, e de fato era sua condição por não ser uma “brasileira normal”. Encontramos muitas vezes na literatura brasileira o personagem pobre e triste de origem nordestina, como Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela: há toda uma literatura de nordestinos migrantes em São Paulo baseada em histórias reais, mas uma pessoa nas condições dela era mais inusitada. Nos EUA, há toda uma narrativa de imigrantes e refugiados judaicos, enquanto no Brasil não havia, e as pessoas captaram algo diferente nela. Não era o fato de nascer em uma aldeia ou em outra, ela nunca viu nada disso; entretanto, ela não tinha uma origem mais comum aos brasileiros, embora o país também seja isso. Por exemplo, fosse ela de uma família japonesa do interior paulista, não teria a mesma experiência de uma indígena do Pará, o que não quer dizer que ambas as personagens não sejam brasileiras, e sim que todos possuem sua vivência e que o Brasil não é homogêneo.

Considero o olhar dela estrangeiro, mas não é tão “estrangeiro” – está mais para uma pessoa que chega a uma festa sem conhecer ninguém e fica sem jeito, não sabendo se bebe vinho ou fica de canto na parede… a pessoa sente uma certa estranheza, uma sensação que considero a tornar universal. Se ela fosse uma italiana do Bixiga (bairro na capital de São Paulo com forte comunidade italiana), então seria ainda outra experiência, um pouco diferente, porém todo mundo é diferente e, por isso, todos gostam dela.

Fica muito claro que ela é as personagens das histórias, não que seja igual em todos os detalhes. Ela captou toda a vida de uma mulher nos 85 contos deste livro (The Complete Stories), iniciando-o aos seus 19 anos e indo até sua morte, pois deixou manuscritos incompletos. Descreveu as fases de uma vida desde uma menina pequena, passando a adolescente atraente e curiosa por sua sensualidade, a esposa, a mãe cujos filhos vão embora, até terminar sozinha, velha, sem jeito – e, por fim, morrer, ou seja, toda uma vida. E ela está ali, porque quem lê percebe sempre a voz de Clarice. É como [a cantora portuguesa de fado] Amália Rodrigues, que pode interpretar qualquer música que será sempre ela, inclusive as canções nas quais é homem, mas ali estará Amália – e Clarice é assim. Isso, nós vemos em poucos artistas que conseguem ser ao mesmo tempo eles próprios e também as personagens que habitam sem que um se perca no outro, ou seja, ali estão os dois, e vemos isso também nas grandes divas da ópera como Maria Callas, estivesse ela interpretando Norma ou Carmen. Esse processo é muito empolgante. Percebemos também em grandes violinistas tocando Mozart mantendo traços de suas personalidades. Essas coisas em um artista me deixam muito empolgado.

Como uma pessoa com origem e vivência tão inusitada compreendeu o Brasil?
Porque ela era do Brasil! Às vezes, me dizem: “Você sabe mais do Brasil do que outras pessoas daqui”. No entanto, não é verdade que eu conheça mais que outros. O estrangeiro quando chega fica observando e tem de trabalhar mais para compreender. Uma pessoa daqui que vai aos EUA não sabe tanto de lá quanto eu, que teria uma visão muito imediatista se comparada à do nativo que é natural de lá. Para quem é de São Paulo, Minnesota é a coisa mais exótica do mundo, a pessoa fica olhando e olhando… portanto, considero Clarice um pouco disso, ela tinha de ver um pouco do Brasil e de sua língua. Quando se lê Clarice, se nota um português-brasileiro totalmente diferente do literário, mas não era algo que ela tentava impor, e sim porque pouco se falava português na casa em que foi criada. O Brasil tem milhões de imigrantes e não é aquela coisa de Gilberto Freyre de negro, índio e português apenas – não é e nunca foi. O Brasil sempre foi mais diverso que essa caricatura, e acho que agora estamos o entendendo mais.

Qual a maior barreira para autores brasileiros ganharem reconhecimento no exterior: a língua ou a localidade?
Nenhuma das duas. Uma autora estrangeira precisa de uma “embaixada”, seja de onde for, um acesso à língua local. Por exemplo, aqui na França é difícil até mesmo para autores norte-americanos. São necessários tradutores e editores compondo toda uma infraestrutura que Clarice não tinha. Essa é a primeira dificuldade; depois, tem a ver com a relativa invisibilidade do Brasil na cultura literária. E vejo problemas no próprio país, pois o brasileiro tem tendência de não valorizar muito a literatura. Se falarmos de música, filmes e televisão, seus profissionais têm mais apoio, enquanto os escritores ficam meio de lado, e o que quero dizer é que não é por ela ser ótima que dará certo. É algo que precisa ser construído em um trabalho diário para atrair esse público; às vezes, se encontram pessoas que são muito inteligentes, embora não se saiba se gostarão de Clarice. No Brasil, é a mesma coisa: nem todos gostam.

Por que acha que essas pessoas não vão gostar de Clarice?
Porque, às vezes, a gente sente. Por exemplo, minha mãe não gosta de Clarice, não a entende, assim como muitos; logo, quando encontra com uma pessoa que gosta, ela é atraída. Soube que o autor irlandês Colm Tóibín adora Clarice e o convidei para fazer o prefácio, e soube também que o cineasta espanhol Pedro Almodóvar também a adora e escreveu outro prefácio. Aos poucos se constrói algo ecoante, um trabalho que não ocorre de um dia para outro, mas que, na verdade, é sutil e exige muita paciência. Chega a um ponto em que esse público já está aí, e o que vemos agora é fruto de um trabalho missionário para incentivar e empolgar as pessoas. É engraçado como isso acontece e é um mistério, pois, para muitos, não acontece – só que, para ela, aconteceu.

A imprensa internacional traça paralelos entre ela e Anton Chekhov e Vladimir Nabokov. Você consegue ver essas semelhanças?
Nabokov e Chekov são russos, ou seja, da mesma terra onde ela nasceu. Nabokov também foi migrado, exilado, assim como Clarice, embora ele fosse da alta aristocracia, enquanto ela era uma menina pobre de uma aldeia, o que é totalmente diferente. Ainda assim, quando alguém não conhece a literatura brasileira e pega Clarice, vem rapidamente a origem da Europa Oriental, o que para mim é difícil de explicar, mas o explico na minha biografia, pois ela foi criada por essas pessoas. Entretanto, principalmente digo: ambos são grandes nomes da literatura e ela também o é. Ela não é algo pitoresco, exótico ou local, como muitas vezes latino-americanos são apresentados como quem diz “Pra quem vai à Colômbia, leia este e aquele autor”. Clarice não é isso; de fato, ela é para Mongólia, Finlândia, Argélia, ou seja, é universal. Por isso, é um motivo de orgulho para o Brasil ter um fenômeno cultural mundial. Apenas os melhores artistas conseguem chegar nesse patamar.

A biografia escrita por você irá para os cinemas? Existem negociações para Meryl Streep interpretar Clarice?
Sim, irá, e estou trabalhando nisso agora. [Quanto a Meryl,] Isso é uma mentira, e já a desmenti umas 50 mil vezes. Adoraria que fosse verdade, porém a Meryl Streep passou da idade para esse papel. Clarice morreu com 56 anos; assim, teria de ser uma atriz entre 30 e 40 anos, porque ela precisa envelhecer na tela. Ainda não temos uma atriz definida, estamos em fase de pré-produção, mas logo vou ao Brasil para falarmos mais sobre isso.

Com quem você se reunirá aqui no Brasil?
Não é nenhum segredo, porém não temos contrato – e, por isso, não posso falar.

Você mencionou Almodóvar. Ele poderia ser o diretor?
Adoraria que fosse, mas ele sempre escreve os próprios roteiros; portanto, não será ele, embora tenha feito o prefácio de Um Sopro de Vida, minha série.

O que representa a eminência dela para o mundo dentro da literatura brasileira?
Direi algo que considero muito importante. O Brasil há cem anos tem Machado de Assis como porta-estandarte – o adoro –, mas isso é algo mais relacionado ao passado, enquanto Clarice, uma mulher de origem judaica, representa a diversidade e foge do estereótipo pelo qual o Brasil é visto, podendo mostrar que a literatura do país é mais rica e diversa do que se espera. Seria uma alegria imensa para mim se o Brasil fosse mais traduzido. Há muito material bacana que não chega por vários motivos. E esperam mais música do Brasil – como quando surge um novo trabalho de Caetano Veloso e todos entendem –, porém, quando apresentamos uma mística como Clarice Lispector, as pessoas não esperam isso.

Crê que para o público estrangeiro é difícil compreendê-la?
Você está acompanhando a repercussão; então, creio que estão entendendo mesmo, principalmente quanto ao nível, à importância e à glória representados por Clarice, enfim, a riqueza disso tudo. Isso não irá parar, já que fizemos traduções muito boas, e as resenhas apontam isso. Quando chega o Pelé, todos sabem que o Brasil tem futebol; entretanto, quando vem a Clarice, percebem que [o país] vai além disso. Clarice era de uma cultura literária muito rica. (Este trabalho) é minha ambição, só que, para colocar o Brasil como uma cultura literária, é necessário que seja visto também no Brasil. No país, há o costume de se dizer “Brasileiro não lê”, porém, quando vou a qualquer lugar do país, tem milhões de pessoas que leem e adoram Clarice – e que estão superempolgadas. Por isso, não creio que seja verdade que não leem, mas é preciso estimular o hábito nas escolas, um trabalho que envolve muitos.

Sua obra tem tido repercussão no Brasil?
Minha biografia foi um best-seller no Brasil e ainda é. Muita gente no Brasil diz que foi ler Clarice por minha conta, e isso, para mim, é uma recompensa enorme, pois fiz para o estrangeiro, mas agradou também o brasileiro.

Hoje, há muitas campanhas apontando para a causa feminista. Dentro desse quadro, por que é importante ressaltar a vida e a obra de Clarice Lispector?

Clarice é um nome fundamental para a literatura feminista, para a discussão do feminino, não porque ela fosse militante, mas por ter dado voz à mulher que até então não a tinha. Naqueles tempos, não existia literatura negra no Brasil: havia Machado de Assis, que era mulato, mas continuava não existindo, assim como também não havia literatura feminina. Existiam Cecília Meireles, uma poeta, e Raquel de Queiroz, que escreveu romances, mas eles não eram enfocados em mulheres, e sim no Nordeste. Não havia ninguém dando uma voz à experiência de metade da população do Brasil e do mundo. Isso parece mentira, porém, quando você estuda a história da literatura brasileira, vê que isso não era inédito apenas no Brasil. Escrevo neste prefácio que ela é a primeira mulher no mundo que fez o que fez, descreveu toda a vida de uma mulher de classe média com suas fases, e defendo que isso é tão importante para lembrarmos que a mulher até então não tinha voz. Não é uma coisa de militância, e até a palavra “feminista” é usada muitas vezes contra as mulheres, embora haja importância nesse fenômeno em dar voz para essas pessoas.

Como ela fala de classe média, você enxerga alguma relação dela com Nelson Rodrigues?
É diferente, porque ela era muito pobre, não como a Macabéa, mas era de uma família realmente pobre que quase não conseguia se alimentar e que chegou à classe média graças ao pai e ao seu talento. Casou com diplomata e tudo isso. Nelson Rodrigues vem de uma classe média brasileira mesmo. Gosto muito dele, porém considero que sua experiência é mais comum, tendo [uma visão] um pouco diferente [de Clarice], já que fala do Brasil do brasileiro médio. Por exemplo, não havia literatura gay no país até pouco tempo: talvez Caio Fernando Abreu seja o primeiro a escrever sobre isso abertamente – e o Lúcio Cardoso, um pouco.

A experiência que Clarice descreve é uma coisa que ninguém tinha tocado, e ela abriu o Brasil e a cabeça do brasileiro de uma forma extraordinária para ver o que acontecia com aquela senhora no supermercado. O que, hoje em dia, sabemos, pois há muito [conhecimento] sobre essa pessoa – só que antes, não. É muito importante entender que aquela senhora não existia na literatura, assim como também não havia o homossexual, o negro, a judia… o Brasil literário era quase sempre sobre homens de classe média. Clarice trouxe um fator totalmente inédito, embora se destaque sobretudo pelo talento.

Como enxerga a proeminência das frases dela na internet e até o fato de a creditarem por coisas que não disse?
Adoro isso! Sei que o clariciano mais acadêmico odeia, mas a própria Clarice falou que, mesmo após sua morte, continuaria escrevendo – e foi o que aconteceu. Todas essas coisas, que são um tanto ridículas na internet – e que ela nunca falou ou teria falado –, aparecem porque ela virou uma personagem além da própria vida. E, até hoje, em 2015, 40 anos após sua morte, as pessoas vão retuitando coisas que ela jamais falou em vida. Acho que o artista que realmente toca as pessoas tem realmente esta vida lendária. Como nos cordéis do Norte, com Lampião e Padre Cícero, ela tem uma vida além da morte.

Uma figura quase mitológica?
Totalmente mitológica, mas porque tocou as pessoas. Se não as tivesse tocado, não teria necessidade de fazerem isso, o que mostra uma necessidade de ter e saber mais sobre ela: a mesma coisa que eu tinha, eu queria saber dela. Assim, cada um faz à sua maneira. E, quem sabe, com a repercussão de uma frase dessas, as pessoas que estão no Twitter vão ler a verdadeira Clarice.

Há algum lado dela que não entrou em seus livros e que você gostaria de o abordar em futuros trabalhos?
Neste livro [de contos], falei muito do lado feminista, enquanto na biografia tratei da brasilidade em sua relação com o Brasil e a cultura brasileira. E também falei do lado judaico – o qual considero que não tinha sido examinado como gostaria –, porém, nesse livro, no prefácio, falo muita coisa de sua vida. E vou ser honesto: chegou um momento em que disse a mim mesmo: “Escrever mais 20 páginas sobre Clarice Lispector? Me dá uma preguiça tremenda, porque são muitos anos disso”. No entanto, aconteceu algo lindo enquanto escrevia, pois descobri aspectos novos, como ela ter sido a pioneira no mundo ao escrever sobre a vida toda de uma mulher na maneira que fez. Eu não havia pensado nisso, e é algo que, além da admiração que tenho por ela, me trouxe alegria e mais um motivo de orgulho. Os grandes artistas possuem isto: quanto mais você mergulha, mais descobre.

Além de Clarice, há algum outro autor brasileiro que te cativa?
Estava pensando nisso hoje. Muitos me cativam… sei que não é essa a pergunta, mas, se me perguntarem sobre quem falta uma boa biografia crítica, responderia: “Uma de Monteiro Lobato”. Creio que daria uma visão muito interessante do Brasil daquele período com todas suas contradições e problemas, mas também seus aspectos positivos – um retrato muito importante. Estou muito envolvido com o Brasil e fico muito interessado por pessoas, porém não vou dedicar onze anos da minha vida… hoje, estou fazendo uma biografia sobre Susan Sontag, já são cinco anos de trabalho, e ainda não estou próximo do fim. Não a escolhi por sua nacionalidade, embora o que me interessa seja ela em si. Sim, gosto muito do Brasil e tenho amigos: a nacionalidade tem certa importância, mas não é tudo. Por exemplo, não se estuda (Søren) Kierkegaard por ser dinamarquês, e sim por ser interessante.

O que no Brasil te atrai tanto?
Além das pessoas, meus amigos, é uma sensação que tenho quando chego ao aeroporto e, logo na alfândega, fico interessado em algo que antes não havia reparado – seja um ator, um músico… agora, vou lançar um livro sobre arquitetura, que sairá em outubro, chamado Cemitério da Esperança, e ele fala de Brasília, porém, em geral, [fala] da arquitetura monumental no país. É um trabalho pequeno, não tão extenso quanto o de Clarice, em torno de 100 páginas, embora seja um pouco de meu ativismo na área de urbanismo.

Você se vê como um “embaixador” do Brasil para o mundo?
Adoraria sê-lo, mas não me atrevo a dizer isso. Creio que consegui levar uma pequena – mas muito importante – parte da cultura brasileira pro exterior.

Você seria então uma ponte entre o Brasil e o exterior?
Disso, acredito que todas as culturas necessitam, porque os países podem ser prisões. Imagine a Dinamarca: se não houvesse tradutores, ficaria algo pequeno. A Mooca, em São Paulo, possui mais gente que a Dinamarca; agora, imagine um artista ou pensador não poder sair de lá, ou mesmo na Holanda, onde vivo. As pessoas precisam de outros ares e de quem entre e saia dos lugares, senão fica muito parado, e o Brasil pode sofrer isso também, embora hoje as pessoas estejam muito obcecadas com “quem é o Ministro da Fazenda”… “… de Alagoas”. Há momentos em que é bom sair disso e ver um mundo mais amplo.

No Brasil, o Superior Tribunal Federal derrubou em junho a necessidade de autorização para publicação de biografias. O que pode dizer deste momento?
Contribuí um pouco com este movimento. Publiquei uma carta na Folha [de S. Paulo] para Caetano Veloso, que é meu amigo, mas que estava de um lado… [respira] entendo as posições deles, já que todo mundo quer sua vida privada, mas o que aconteceu com o Brasil – em geral, com as biografias, mas também com o jornalismo e o direito do brasileiro –, de examinar a própria história, é que está muito fácil censurar no país. Conheço casos de amigos meus jornalistas querendo fazer uma biografia de uma grande figura, mas que são interpelados por um descendente poderoso que chega e só fala “Olha…”. A pessoa sabe que lida com um poderoso e deixa de fazer o trabalho; portanto, muito da história brasileira e também literária se perde porque muitos não querem comprar briga com gente poderosíssima – até porque não têm condições financeiras. Portanto, creio que a resolução do STF foi um avanço muito importante. Soube desta situação ridícula de não poder falar que Mário de Andrade era gay: ele morreu em 1946 e já se sabia disso há 100 anos, ele é uma figura fundamental para o Brasil. Ainda assim, não se pode dar um tratamento honesto sobre sua vida, e isso atrasa toda a cultura do país. Tenho certeza de que a definição do STF dará um efeito superpositivo.

Algumas personalidades públicas são contra essa postura. A celebridade brasileira não está acostumada com a própria condição?
Quando se é uma figura pública, não se pode controlar tudo que falam de você pro bem ou pro mal. Todos têm assessoria, porém a figura pública tem de aceitar que há coisas acima de seu controle. Entretanto, se falarem algo errado, uma mentira, e se puder comprovar, há leis no Brasil contra difamação como em todos os países. Entretanto, há uma diferença entre difamação e exame crítico, são duas coisas totalmente diferentes. Se falo que não gostei do livro do Gabriel, isso não é uma difamação, e sim uma opinião, e justamente as opiniões que não agradam sempre devem ser protegidas, pois todos gostam do elogio, e essa mudança não é para proteger o “elogio”. Até mesmo sobre minha humilde pessoa estão falando coisas que não são verdadeiras.

Pensa em processá-las?
Não, porque não vou alimentar essas coisas. Não vou lhes dar valor, porém, se alguém me atacasse publicamente e dissesse algo, então, sim, venho de uma família de advogados e me defenderia. No entanto, posts na internet… você sabe… uma coisa que não vale a pena e é um tanto triste…

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