Música

Ícone Americano: uma Iniciação ao Theo Parrish

É provável que você já conheça o Theo Parrish: que conheça os seus lendários Ugly Edits, o seu eclético trabalho solo e sets idem, e que saiba também que ele tem a fama de ter uma das línguas mais soltas da dance music. Com o seu novo disco, American Intelligence, tendo sido recém lançado por meio do seu próprio selo, o Sound Signature, achamos que era a hora perfeita de relembrar o quanto ele é importante e de educar aqueles que infelizmente ainda estão na obscuridade a respeito da sua grandeza.

Nascido em Washington, criado em Chicago e radicado em Detroit, Parrish é um artista e seletor dedicado a subverter expectativas. No house, as suas faixas não são simples bate-estacas, a sua produção mais techno não é puro hedonismo inconsciente e os seus longos sets são verdadeiras aulas de manipulação da dance music negra. Aulas de equalização pesadas que educam, entretêm e informam – ele fala bastante e é profundamente engajado. Para Parrish, a música que ele próprio faz, a música que ele toca e a música da qual ele fala não são algo só para se ouvir passivamente em lugares escuros tarde da noite ou ainda cedo pela manhã – são trabalhos que precisam ser escutados com atenção e seriedade.

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Abaixo, examinamos a discografia multifacetada do Theo Parrish, das suas esculturas sonoras e jams profundas aos seus disco edits dissonantes e remixes viajantes e desorientadores.

DJ DISCRETO

Agora que todo mundo é DJ – ou pelo menos é o que acredita ser certas pessoas que uma vez assumiram o controle de uma conta premium do Spotify durante uma festa na casa de outro alguém, tocando 30 segundos de cada faixa durante uma hora, para um público cada vez menor – é difícil se destacar. Uma coisa que ajuda nesse negócio de ser DJ é assumir uma postura voraz de exploração, um desejo de cavar mais fundo do que qualquer outro, de dar invertidas a torto e a direito. Basicamente, ser um DJ de verdade e não só um mané num quarto com Serato e uma banda larga decente.

O Theo Parrish sabe como discotecar e quer que você saiba também. Confira abaixo o set dele no Boiler Room para ver como um seletor que, da maneira menos egoísta possível, surpreendentemente toca para ele mesmo. São 45 minutos de desvios e distrações sem um pingo de frustração – o set é inteligentemente intrincado e emocionalmente interconectado, algo que vem do coração de um viciado em discos e não da cabeça de um obcecado pelo Discogs. Discutindo sobre como jovens produtores e DJs viram notícia depois de apenas alguns meses atrás dos decks, ele quis saber algumas coisas:

“Você sabe mixar? Consegue tocar por mais de uma hora? Está usando vinis? Pode tocá-los da forma como devem ser tocados? Está discotecando?”

Depois de dar a real, aqui ele mostra a coisa na prática: 

Agora que a sua lendária residência no Plastic People chegou ao fim, os clubbers do Reino Unido vão ter que aproveitar ao máximo os seus shows. Enquanto isso, se delicie com os seus shows semi-regulares no NTS aqui, e veja este recente live set na Filadélfia, adequadamente eclético e esperadamente brilhante, aqui. Nota dez pela inclusão da luminosa, luxuriosa, sempre bem-vinda e pouco tocada “Let’s Lovedance Tonight”, do Gary’s Gang. 

Ele também é muito bom em equalização. Tão bom, na verdade, que vai te fazer desanimar de algum dia fazer aquela parada de cortar os graves por muito tempo e sair fazendo merda com o phaser a cada duas músicas que você acha que soa legal. É para o seu próprio bem.

UGLY EDITOR

Os re-edits da disco music têm uma tendência a se prolongar numa punhetação eterna; um bom edit – digamos, a releitura incandescente do Tom Moulton para “You’ll Never Find Another Love Like Mine”, do Lou Rawl, ou a versão do Black Cock de “You Got the Stuff”, do Bill Withers – é algo mágico, o desemaranhar elástico de um disco, uma reinvenção do nirvana. Os maus edits são coisas pesadas, arrastadas e exageradas que broxam quem está na pista e só agradam aos tiozões de cavanhaque e jaqueta esportiva de camurça. Felizmente, o Theo Parrish foge das armadilhas óbvias, dos breakdowns monotonamente extendidos, dos codas intermináveis e das inúteis inserções de batidas de bongô em favor de algo mais ácido e cru, algo imbuído de mais funk e grit.

Olhe esta versão da seminal “Lies”, do GQ, por exemplo.

A original – utilizada com um efeito impressionante na aula de boogie estranhamente influente do James Murphy e do Pat Mahoney, Fabriclive 36 – era breve e eficaz, uma história sucinta de um amor perdido sobre uma linha de baixo ostensivamente pesada. Parrish pega o esqueleto dela e tira o essencial, deixando-a mais dura e transformando-a em uma súplica por ajuda epistemólogica. Ele tem uma compreensão inata do prazer que vem com a repetição, reproduzindo indefinidamente a frase “I’ve got to know why” até a razão e os sentidos serem tomados por um desejo de se refugiar na pista.

Discutivelmente, edits são uma forma de alongar momentos para minutos de êxtase, dar ao ouvinte as melhores partes de uma faixa repetidamente, mudando o ritmo e a posição do corte quando necessário. A releitura de Parrish para “The Love I Lost”, do Harold and the Bluenotes – embora não seja tão obviamente explosiva quanto o edit do Tom Moulton, que pode muito bem ser a melhor faixa de todos os tempos – é um crescendo sedutor, uma escalada contínua até o clímax. 

O REMIX E A ARTE DA RECONFIGURAÇÃO 

Para a maioria dos produtores, um trampo de remixagem é uma desculpa para gastar o adiantamento em cerveja, erva ou pó antes de abrir o Fruity Loops na cama, na manhã seguinte, e meter um kick_drum_01.wav por baixo do original, pensar num título absurdamente comprido e enviar a parada feita nas coxas para a gravadora. Algumas pessoas falam abertamente disto: o DJ Harvey me confessou que ele faz um remix digno do pagamento que vai receber. Outros levam a coisa um pouco mais a sério, tratando o projeto com carinho, criando algo que realmente funcione com o material original, tente revelar o que está escondido nele e expanda aquele núcleo de qualidade, resultando num remix que se sustenta sozinho – algo que o Parrish faz. Vamos olhar dois exemplos brilhantes da produção de remixes dele, duas faixas que fazem o que bons remixes devem fazer. 

Como você pega uma faixa que provavelmente nunca vai soar batida e a deixa ainda melhor? Bom, se você é Theo Parrish, você tira a maior parte do que é reconhecível nela e a substitui por algo que soa como um Casio prestes a se desintegrar – e a faixa soa melhor do que nunca. É um remix que é uma composição nova, algo que pede ao ouvinte, como todo bom remix deve fazer, que considere a sua relação com a faixa original. Está a quilômetros de distância de um refix dos Shapeshifters, por exemplo.

Aqui está o Parrish na sua melhor forma, desafiadoramente desmontando uma faixa e reconstruindo-a à sua própria imagem e semelhança. Toque isso depois da original – o momento mais cosmicamente funky do LCD Soundsystem, o destaque do melhor disco deles, o único lançamento deles que largou de mão aquela história indie e buscou com força total a credibilidade disco – e você vai ter que se esforçar muito para achar as semelhanças. Este remix é uma afirmação de princípios. E funciona.

SOLITARY FLIGHT: PARRISH COMO PRODUTOR

Constatamos que ele sabe editar, remixar, compilar e tocar. Mas será que sabe fazer suas próprias faixas? É claro que sabe. Vamos terminar este panorama olhando a produção individual do homem. 

Uma escolha óbvia aqui, mas óbvio não é ruim, é? Arroz com feijão é óbvio. Feriados ensolarados são óbvios. “Is It All Over My Face?”, do Loose Joints, é óbvia. “Solitary Flight” é uma faixa atemporal que pode ser tocada em praticamente qualquer situação e ainda assim soar fresca como nunca. Elegíaca, agitada, rica e profunda. Quando finalmente conseguirem instalar uma seção de house no Smithsonian, “Solitary Flight” vai ficar lado a lado com “Can You Feel It”, “Show Me Love” e “Move Your Body”. 

“Footowork”, a primeira faixa de trabalho de American Intelligence, que apareceu originalmente no vinil de 12” proibitivamente caro que ele lançou em parceria com os malandros da Palace e os caras dolorosamente descolados da Trilogy Tapes, é tipicamente inventiva e nos deixou salivando pelo disco.

O que apresentamos acima é só um vislumbre do material sublime que recheia o baú de tesouros do mestre. Em uma cena que sempre está arriscada a se tornar hermética, homogênea e arrogante, há uma necessidade urgente de mais pessoas como o Theo Parrish, mais gente sem medo de correr riscos em nome da arte. Como remixer ele é instintivo, como DJ ele é informativo e como pensador e teórico do que é a dance music e por que continuamos peregrinando pelos clubes, fim de semana após fim de semana, ele é destemidamente inteligente.

American Intelligence foi lançado pelo Sound Signature no dia 17 de novembro.

Tradução: Fernanda Botta