Eles são músicos, poetas, enxadristas e chefs. Alguns jogam sinuca e outros falam sobre as notícias; tem o grupo de palavras-cruzadas, os fumantes, cantores e dançarinos; os escritores, o grupo de ioga e o pessoal da jardinagem. Carol é a poeta local; ela curte horóscopos. Aquário? “Educado, arrumado e limpo”, diz Carol. “Gosta de gastar.” Tem uma senhora que gosta de sentar lá fora para observar os patos no canal. E tem o estúdio de arte, cheio de pintores, escultores, desenhistas, fotógrafos e artesões. Você encontra essa pequena comunidade próspera atrás de um portão de ferro de uma rua movimentada de Londres. O lugar é o Headway East London, e todo mundo aqui sofreu uma lesão cerebral que mudou sua vida.
Matthew teve um cisto coloide no terceiro ventrículo. Mahmood foi atacado por uma gangue de garotos quando saía do trabalho. Mike, Trudy, Witman e Billy sobreviveram a derrames. Brian foi atropelado por um caminhão enquanto andava de moto. Matthew foi atropelado por um carro atravessando a rua. Sarah foi assaltada por alguém que queria sua bolsa. Lina teve uma hemorragia cerebral no banheiro de um Buger King. Danny foi espancado numa boate. Sam sofreu um acidente de carro. Assim como Nifty.
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“A energia motivadora aqui é de aceitar o que você não pode mudar”, o funcionário Ben Platts Mills explica pra mim no jardim deles. “É aceitar a perda e o caos trazido por sua lesão cerebral, aí decidir olhar para o futuro a partir disso. Certo, nada mais faz sentido: Como você pode se divertir? Quem você quer ser?”
O estúdio de arte abre às 9h. Os membros entram e tomam seu assentos; alguns vêm em cadeiras de roda, alguns usam bengalas. Às 11h o lugar está fervendo. Esculturas secam na frente de ventiladores, portfólios enormes de trabalhos são empilhados nas prateleiras de madeira e há pilhas de cerâmicas nas mesas. Pinturas cobrem as paredes e estão penduradas com linhas de pesca do teto, criaturas colossais de mosaicos coloridos surgem de cantos escuros: em um deles tem um elefante, no outro uma girafa. As palavras “DESCOBERTA ATRAVÉS DA ARTE” estão coladas acima de uma pia respingada de tinta, moldes de gesso secam ao lado do aquecedor elétrico. “What’s Going On?” do Marvin Gaye toca num alto-falante no canto.
Daniel sempre pergunta por que está aqui: “O que aconteceu comigo? Eu matei alguém? Estou fugindo?” Geralmente ele se senta e desenha algo em troca de um cigarro e uma xícara de chá. Lynda sente uma felicidade residual depois de um dia no estúdio, mesmo não se lembrando de ter estado lá. Ela tem dificuldade para terminar trabalhos, porque esquece qual a ideia que teve quando começou. Mas às vezes ela desenha algo que a transporta para um momento de 20 anos atrás, como um buraco de minhoca.
Arte não é fácil para David. Sua cadeira de rodas precisa ser posicionada com exatidão, o papel precisa ser colado na mesa, alguém precisa tirar a tampa da caneta preta e colocar na mão dele. Ele escreve quintilhas e histórias, mas principalmente desenha animais: um cão boxer prestando atenção, uma ovelha com a língua de fora, cavalos galopando, trotando ou deitados num campo. Em um desenho, um jóquei no cavalo grita “HÁ” enquanto passa gritando pela tela. David tem problemas para falar, e a conversa é difícil, mas olhando para os desenhos dele você tem um vislumbre de sua personalidade: sua infância trabalhando numa fazenda, suas frustrações pessoais (às vezes ele escreve “errado” ou “merda” por cima de suas obras) e seu senso de humor rude. Muitos de seus animais têm um pinto longo pingando; se você perguntar sobre isso, ele diz que é um rabo, mesmo quando o animal claramente já tem um.
Alguns membros pintam calmamente em cavaletes, outros socializam nas mesas enquanto desenham. Nas manhãs mais movimentadas, você sente uma onda palpável de magnetismo que te atrai e te deixa imaginando por que você não pega num pincel desde o ensino fundamental. “Tem uma corrente de energia fluindo aqui”, diz Michelle, que começou a trabalhar como voluntária aqui 15 anos atrás e nunca mais parou. Tem um botão prateado na parede; me dizem para apertá-lo se alguém tiver uma convulsão, anotar a hora e depois ajudar a escoltar os outros membros com segurança para fora do salão.
Tony está usando uma camiseta gasta do Arsenal e um boné, e geralmente pendura seu moletom pela touca atrás da cabeça “para não perder”. Ele gosta de criar enormes slogans caleidoscópicos enquanto canta com Bruce Springsteen. Uma de suas obras mais famosas diz “I CAN’T REMEMBER FUCK ALL”, outra “SUBMIT TO LOVE”. O pessoal chama as obras deles de Bonanzas do Tony. Essa última obra é tão popular que se tornou o nome oficial do estúdio: Submit to Love Studios. Eles estão pensando em fazer um livro só com as Bonanzas do Tony. Uma vez ele desapareceu por uma semana e foi encontrado no banco de um parque, todo queimado de sol.
Toda semana, os artistas criam uma variedade de obras individuais e colaborativas. Eles já fizeram exposições em grupo e solo em galerias por toda Londres (incluindo a Southbank Gallery), eles vão dar uma oficina no Barbican Centre nos próximos meses, e os trabalhos terminados deles são vendidos por milhares de libras todo ano no total. Uma das maiores colaborações deles está pendurada na sede do Royal Bank of Scotland em Londres. Quase nenhum membro tinha criado arte depois da infância até chegar aqui.
No fundo do estúdio encontro Stephen Staunton, um irlandês de uns sessenta anos conhecido por alguns dos colegas simplesmente como Staunton (uma referência engraçadinha a grandes nomes como Picasso ou Caravaggio). Ele é surdo e raramente fala ou usa sinais formais, preferindo se comunicar por gestos e palavras isoladas. Ele não gosta de fuleiragem; se você tiver barba ou estiver usando uma calça suja, ele te faz um gesto de dedões pra baixo. Desde que chegou aqui, ele desenvolveu uma tendência prolífica por pinturas abstratas vibrantes. Polígonos são sua obsessão artística; quadriláteros, para ser mais preciso. Ele se senta com um lápis, desenha redes elaboradas em grandes pedaços de papel e começa a preencher as formas com tintas acrílicas cuidadosamente misturadas.
A equipe do estúdio está começando a imaginar se ele na verdade não vê o mundo em quadriláteros. Uma vez, deram a ele uma imagem de um gato como inspiração e ele pintou três blocos empilhados com um rabo rígido. Às vezes, assistindo ele pintar, não sei se a arte que ele está fazendo é uma experiência deliberada ou um loop no qual ele está preso.
O estúdio não é gerenciado por profissionais de saúde ou terapeutas de arte, ele é comandado por Michelle — artista autodidata — e a equipe formada por Connie, Alex e Emily. Michelle é uma ruiva baixinha que fala com um leve sotaque da África do Sul. Ela evita ler notícias e descreve sua vida como “zoando com o universo”. Ela é a motivadora e tem uma energia contagiante que te faz querer fazer o que ela acha que você deveria fazer. Se você fica no estúdio por mais de cinco minutos, ela vai te chamar de artista. Os membros falam dela sussurrando, cheios de respeito e admiração, como paroquianos falando do padre do vilarejo. Quando pergunto a Michelle sobre sua própria arte, ela me diz que tem por volta de 100 trabalhos terminados em seu estúdio em casa, mas ninguém nunca viu. Um dia todo mundo vai ver, mas ela não liga se só for depois que ela morrer.
“O estúdio é sobre prazer”, ela diz com um grande sorriso. “Aqui no estúdio é o momento em que você pode deixar tudo de lado, se divertir, se focar no que está fazendo e não pensar na sua aposentadoria, nas contas. Gosto de cultivar amor e alegria… Sei que parece brega, mas é verdade.”
“Por que você acha que esse estúdio de arte é tão popular?”, pergunto.
“Acho que é uma identidade. Muita gente aqui perdeu sua identidade e o estúdio devolve isso a eles. ‘Descoberta através da arte’ — essa é a missão do nosso estúdio. O que você está descobrindo? Estamos descobrindo como é ser essa nova pessoa, e o que a criatividade pode fazer na sua vida.”
Jason está usando um boné marrom “NY” e uma camiseta azul-marinho Ellesse. Sua bengala está apoiada na mesa e ele tem um crachá com seu nome pendurado no pescoço, em que dá pra ver onde parte do crânio dele foi removido. “Tirei essa foto antes de fazer o implante”, ele diz.
Jason tem 44 anos e não é tão louco assim por arte. A mãe dele me diz que ele não gostava realmente de pintar ou desenhar quando criança, e ele nunca vai a exposições ou consume grandes obras de arte. Ele cresceu em Custom House, leste de Londres, largou a escola aos 16 anos e passou a maior parte da vida trabalhando em obras com o irmão, que é pedreiro. Jason reconhece que se ele falasse qualquer coisa sobre arte durante a pausa do chá nos canteiros de obra, todo mundo riria da cara dele.
E mesmo assim, depois da minha quarta ou quinta visita ao estúdio, não paro de ouvir o nome dele. “Você precisa conhecer o Jason”, diz Michelle. “Ele é um verdadeiro criativo, um talento natural. Ele não está se esforçando. Ele não tem ideia de como é naturalmente talentoso.”
“Ele apareceu aqui um dia”, diz Connie, uma das coordenadoras de arte da Michelle. Ela perguntou se Jason queria fazer alguma coisa e ele concordou, mesmo que meio indiferente. No começo, ele só copiava as capas de seus livros favoritos, mas Connie logo notou que ele tinha sempre um pedaço de papel com ele, onde testava canetas fazendo pequenos desenhos.
“Eram desenhos muito interessantes de rostos, uma coisa incrível mesmo”, explica Connie. “Eu quis ver se ele conseguia colocar esses desenhos nas telas maiores, então dei vários materiais pra ele e o encorajei a tentar desenhar coisas originais.”
As dores de cabeça de Jason começaram quatro anos atrás, e vieram como uma chuva de granizo. Ele estava com o irmão num canteiro de obras, misturando cimento e assentando tijolos, quando sentiu. O pessoal achou que ele só queria sair do trabalho mais cedo. Ele tomou alguns analgésicos, mas não fizeram efeito. Nos dias seguintes ele se consultou com três médicos, que deram diferentes diagnósticos e receitas de paracetamol. Descanse, eles diziam.
No sábado, ele não conseguia sair da cama. Sua mãe foi ver como ele estava: seu rosto estava inchado, os olhos vidrados. Parecia que ele tinha tido uma convulsão. As memórias de Jason sobre esse momento: ser colocado numa ambulância, assinar um formulário dizendo que podia ser operado se necessário, vomitar numa privada. Aí ele apagou. Enquanto isso, sua mãe foi informada que as próximas 24 horas diriam se ele ia viver ou morrer.
Uma ressonância magnética revelou um abscesso em seu cérebro, um inchaço de pus que pode ser causado por qualquer coisa desde uma infecção cardíaca até um erro do dentista. É uma condição rara e portando difícil de diagnosticar corretamente. O abscesso o mataria se estourasse. Quando finalmente o colocaram na mesa de operação, ele teve um derrame. Naquela noite ele acordou com o som da mãe dizendo “Você lembra de mim, Jay?” O braço e mão esquerda estavam paralisados e ele não conseguia ficar em pé. Quando passou a mão direita pelo cabelo, ele percebeu que metade de sua cabeça estava faltando.
Jason terminou sua primeira obra própria em 6 de março de 2017. Sei disso porque toda pintura dele é assinada com “do Jason” e as datas em letras grandes. É um grande rosto bulboso enraivecido; vívido e ofegante, quase violentamente colorido. Nela, o rosto humano é um aparelho desajeitado e não-natural que parece prestes a explodir, lotado de partes e seções mecânicas que parecem complicadas demais para funcionar corretamente. Ao mesmo tempo, tem algo majestoso e beato nele, como algo que você veria olhando para o céu no meio de uma experiência alucinógena espiritual. Jason batizou a obra de “Swollen”. Connie ficou pasma. Tinha muito estilo ali, logo no começo.
“O que você acha do que fez? Você gostou?”, ela perguntou a ele.
“Sim, ficou bom”, respondeu Jason. “Gosto de fazer arte.”
A equipe do estúdio continuou fornecendo materiais e ele continuou fazendo uma pintura atrás da outra. É fácil, como se ele estivesse só transferindo para o papel as visões já completamente formadas em sua mente. No dia em que terminou “Swollen”, ele imediatamente começou uma obra nova: outro rosto. Levou oito dias para terminar. Os padrões eram vívidos e policromáticos, como algo que você veria num peixe exótico no mar das Bahamas. Dessa vez a cabeça parecia estar derretendo como uma vela, de cima para baixo, com os dentes cerrados em tecnicolor. Ele chamou a obra de “Rainbow Man”. “A parte da boca me lembra quando você está realmente frustrado e os músculos do seu rosto ficam tensos”, ele explicou a Connie. No final de 2017, ele tinha completado mais de 20 trabalhos de arte.
Enquanto um artista profissional descreveria seu trabalho em termos de “configurações espaciais” ou “elementos lineares”, Jason não gosta muito de falar sobre o dele. E ele não sente ciúmes de sua arte; uma tarde ele empurrou uma pintura incompleta dele na minha direção e perguntou se eu “queria tentar”. Não que ele não goste de falar, ele adora bater papo. Comece a falar de livros e filmes, e ele solta o verbo. Um de seus favoritos é O Apanhador no Campo de Centeio. Ele comprou o livro na WHSmith na Oxford Street, leu uma vez, depois releu imediatamente. Não importa a época do ano — primavera, verão, outono, inverno — o livro vai ter um efeito em você, ele me diz.
“Mas qual sua parte favorita na sua arte?”, pergunto.
“As cores, com certeza.”
“Como você decide que cores vai usar?”
“Bom, gosto dos vermelhos. Mas todo mundo usa essa cor aqui no estúdio, e a gente precisa compartilhar.”
Para Connie, essa é a coisa mais fascinante sobre Jason. “Ele está criando coisas muito sofisticadas”, ela diz, “mas ele não tem um discurso para acompanhar isso. Estudei arte na faculdade e era mais uma questão de discurso que de qualidade das obras. E com ele é o contrário. É quase injusto, porque parecem obras do Basquiat. A maioria dos artistas leva anos para encontrar um estilo instintivo e às vezes nunca conseguem, mas o Jason já tem o dele”.
Jackson Pollock disse uma vez: “Pintura é autodescoberta… Todo bom artista pinta o que ele é”. No trabalho de Jason, você vê ele expressando algo que não consegue colocar em palavras sobre como sua mente funciona. A obra dele diz algo sobre experimentar uma lesão cerebral de maneira muito mais viva e hipnótica do que qualquer coisa que ele poderia dizer a um médico ou falar no meu gravador.
Levou um ano de terapia ocupacional no hospital antes de Jason conseguir se mover sozinho de novo. Ele vai para a academia no parque local alguns dias por semana para exercitar o braço esquerdo. A arte melhorou sua coordenação motora, reviveu sua concentração e o ajudou a se sentir mais calmo. Mas ele ainda tem convulsões. Quando uma convulsão começa, o corpo dele fica mole e ele sente como se estivesse se afogando em cola; como se sua cabeça estivesse longe dele. A mãe não consegue olhar quando isso acontece; ela deixa o pai ou o irmão dele ajudarem. Uma das pinturas dele, “All Screwed Up”, apresenta uma figura contorcida e enrugada, quase incapaz de ficar em pé na frente de um mar negro, fazendo o personagem parecer radiante mas totalmente sozinho, como uma lua no espaço. “É assim que me sinto numa convulsão”, ele diz.
Uma tarde, me pego conversando com Chris, um professor aposentado que teve uma lesão cerebral depois da remoção de um tumor benigno. Ele sempre se interessou por arte, mas depois de sua lesão isso se tornou uma fascinação. Ele tem uma sacola quase transbordando de coisas, livros sobre arte outsider, impressões em A4 de um guia para Frida Kahlo que ele digitou para os colegas de estúdio, e um monte de filipetas para uma exposição em grupo do Submit to Love Studios onde ele vai palestrar amanhã.
“As duas exposições mais populares este ano em Londres foram Frida Kahlo e Basquiat, e nenhum deles estudou arte”, ele me diz. “Do jeito deles, eles eram artistas outsiders. Então você não pode dizer que há uma ‘arte outsider’ versus ‘arte de verdade’ — elas são a mesma coisa.”
Uma semana antes, no almoço, Chris me disse “Você não pode ver arte contemporânea sem reconhecer a arte feita pelos deficientes”. Na época não dei muita atenção, mas isso ficou na minha cabeça. Peço a ele para elaborar, ele pega um livro de sua sacola e me mostra uma foto do psiquiatra alemão Hans Prinzhorn.
Em 1919, o Dr. Karl Wilmanns do hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, Alemanha, escolheu Hans Prinzhorn como seu assistente. A tarefa dele era fazer uma coleção de arte produzida pelos pacientes do hospital. Prinzhorn, um ex-estudante de história da arte e filosofia, desenvolveu uma paixão pelo projeto, e quando saiu do hospital em 1921, a coleção tinha mais de 5 mil trabalhos de 450 pacientes. Ele publicou sua pesquisa em seu primeiro livro, A Arte dos Doentes Mentais.
Apesar de o mundo científico ter em grande parte esnobado o livro, o mundo da arte de vanguarda ficou obcecado por ele. O artista e poeta Max Ernst comprou o livro em Paris em 1922 como um presente para seu anfitrião, o poeta francês Paul Éluard. Logo, uma cópia caiu nas mãos de Andre Breton, escritor, poeta e líder do surrealismo. Em pouco tempo o livro se tornou a bíblia visual dos surrealistas; para eles, parecia um acesso sem paralelos para as origens mais puras da arte.
Quando o celebrado artista francês Jean Dubuffet teve a chance de ver uma exposição da coleção de Prinzhorn, isso mudou toda a visão dele do propósito da arte. Em uma carta para Henri Matisse, ele descreveu ver “algo com que sonhei por anos”. A doença ou incapacidade dos artistas em questão era irrelevante para ele; o mais marcante era essa ideia de arte movida por necessidade, criada por pessoas sem treinamento, sem propósitos superiores, sem público, sem museus, sem vendedores ou colecionadores.
Na Grã-Bretanha, a influência dos “não-treinados” foi monumental. No dia 26 de agosto de 1928, um domingo, dois homens chegaram ao vilarejo de pesca de St. Ives. Um deles era Christopher “Kit” Wood, um jovem promissor e estudado de Liverpool recém-chegado de Paris, onde conheceu pessoas como Picasso e Jean Cocteau. O outro era o pintor Ben Nicholson, um svengali do modernismo britânico. Enquanto caminhavam por uma rua, eles notaram uma cabana com a porta aberta, por onde viram algumas pinturas. Eles bateram, entraram e descobriram um mar de obras de arte, penduradas tortas nas paredes, apoiadas em cadeiras, empilhadas em mesas e no chão — e no meio disso tudo, um velhinho com um bigode de taturana chamado Alfred Wallis.
Wallis era um marinheiro aposentado de 73 anos que tinha passado 25 pescando arenque, cavala e sardinha no Atlântico. Quando sua esposa faleceu, ele se aposentou e começou a pintar. Ele usava tinta caseira para criar arte em qualquer coisa em que colocasse as mãos: papelão, móveis, pedaços de madeira encontrados na praia, placas de horários de trens, potes de geleia. A perspectiva de Wallis para pinturas era radical; o tamanho dos temas era ditado não pela realidade, mas pela sua importância para ele. Wood e Nicholson viram o estilo não-convencional de Wallis como uma criatividade natural que eles ansiavam para seus próprios trabalhos.
Wallis hoje é reconhecido como um grande artista britânico, cuja arte afetou uma geração inteira e moldou o desenvolvimento da pintura modernista britânica. Mas isso não valeu de muita coisa quando ele estava vivo: ele morreu sozinho aos 87 anos em uma oficina. Em seu funeral em 1942, compareceram pessoas como Nicholson; a escultora mundialmente renomada Barbara Hepworth; e o pioneiro russo da arte de vanguarda Naum Gabo. O túmulo dele foi feito pelo oleiro mais famoso do mundo, Bernard Leach.
“Eles levaram o trabalho de Wallis para Londres, o tornaram conhecido, e agora ele está no Tate, ele está em toda parte”, explica Marc Steene, diretor de uma ONG de arte chamada Outside In. “Mas neste país, a única razão para Alfred Wallis ser amado é porque dois artistas de classe média disseram que ele era bom. Sem essa validação, nunca o conheceríamos.”
Steen estudou na Slade School of Fine Art, antes de trabalhar como voluntário num centro em Hove, onde descobriu os talentos de um grupo de artistas como dificuldades de aprendizado, cujos trabalhos terminados eram destruídos pelos funcionários no final de cada semana, para que o papel pudessem ser reutilizados como papel machê. Ele é meio que um arqueólogo da arte moderna, tentando desesperadamente desenterrar criações dos subterrâneos da sociedade que nunca viram a luz do dia, e às vezes não querem ser encontrados. Steene quer escavar e proteger essa arte, e expô-la para que possamos aprender delas quem somos.
Em seu pequeno escritório confortável numa rua estreita em Chichester, West Sussex – na frente da Pallant House Gallery, o principal museu de arte moderna britânica, onde Steene foi diretor executivo – mostro a ele algumas das pinturas do Jason. “Impressionante”, ele diz. Ele tem cabelo grisalho curto, olhos escuros e fala num tom calmo mas direto. Enquanto conversamos, ele roda o escritório tirando livros das prateleiras e os colocando no meu colo, com declarações como “Você tem que ler isso!” e “Você tem que ver isso!” Quando digo a ele que não sei desenhar, ele diz “Claro que sabe! Você sabe desenhar!” Ele descreve sua vida como uma batalha para assegurar que o mundo da arte abrace um corpo mais amplo de artistas de diferentes origens.
“Estamos empacados!”, ele declara. “O mundo da arte não se relaciona mais com as pessoas. A maioria das pessoas não se envolve com ele. A arte se retirou do propósito que tinha em nossas vidas. O que vemos com pessoas como Jason e Alfred Wallis é arte que tem um propósito. Ela nos atinge diretamente porque é honesta e tem integridade. Mas também mostra que a arte tem uma função mais profunda na sociedade para todos nós, e estamos separados disso. Deixar uma marca é um ato do eu. É uma afirmação do indivíduo. É um desafio. É quase a última coisa que você pode ter.”
Atualmente, Steene tem mais de 2.600 artistas em seus registros, que ele está constantemente tentando colocar em espaços de galeria e embaixo do nariz dos colecionadores. E ele me diz que mal arranhou a superfície do que está por aí. Na opinião dele, há Jasons por toda parte, só que ninguém está falando sobre eles. No começo do ano, ele conseguiu indicar alguém para sete dias de exposição da Sotherby’s, mas geralmente as galerias veem seu conjunto de artistas deficientes, isolados e restritos só como dignos de “programas comunitários”, e não para seus espaços principais de exposição.
Semana passada ele visitou Darlington, onde encontrou um centro comunitário com um grupo de 70 artistas trabalhando juntos. “Você pode fazer uma exposição deles e vai ser um destaque em qualquer lugar. Você pode levá-los pra Paris, eles são bons mesmo”, ele diz. Mas na Europa a recepção é estranha e não necessariamente melhor. Quando ele leva seus artistas para lugares como a Feira de Arte de Paris, muitos dos compradores estão mais interessados na condição mental deles. “Eles já estiveram internados?”, eles perguntam, empolgados. “Eles são psicóticos?”
“Na Inglaterra”, diz Steene, “parte da ideia do valor da arte é sobre a pessoa que faz a obra. Somos obcecados por celebridade e personalidade. A ideia de que alguém que tenha uma lesão cerebral pode criar arte incrível não é amplamente aceita aqui. Tem um julgamento sendo feito sobre o indivíduo nesse ponto. Este país tem muitas questões de hierarquia e há uma pressão para mudar, mas acho que vai levar muito tempo para vermos um dos artistas de que estamos falando tendo seu trabalho exposto no Tate”.
Logo depois do almoço, “Rider On the Storm” do Doors está tocando no alto-falante do estúdio enquanto assisto Jason trabalhar num pequeno conjunto de pinturas: três telas de 10 por 10 centímetros. Essas, e muitos de seus outros trabalhos, serão parte da primeira exposição solo dele mês que vem, numa pequena galeria independente no leste de Londres. Inicialmente ele queria que a exposição chamasse simplesmente “do Jason”, mas foi encorajado a pensar em outro nome. Ele viu a palavra “afirmações” num pedaço de papel em casa, dado a ele depois da terapia. Ele achou que era uma palavra chique e artística, então resolveu usá-la. Afirmações.
“É estranho ter uma exposição de arte só minha”, ele diz, enquanto procura suas cores. “É engraçado pensar em mim assim.” Seus dedos escolhem um laranja vivo – ele chacoalha o pote com a mão direita, passa para a esquerda, ainda mais fraca, destampa com a direita, coloca um pouco na tampa, mergulha o pincel e começa a fazer marcas, trocando de pintura para pintura com a precisão de um master chef.
São uns 20 colegas trabalhando no estúdio, ocupados com suas criações. Um zumbido meditativo se espalha no salão, a ausência de som inconfundível criada por um grupo de pessoas imersas num estado de fluxo. Quietude; canetas clicando, guinchos de cadeira de rodas, papéis sendo movidos, rabiscados, pintados e manipulados; mãos sendo lavadas, vozes cantando baixinho como pessoas tímidas fazem quando não conseguem deixar de cantar junto. O cheiro dos materiais; o aroma nostálgico de cola; o prazer único de assistir algo que não existia antes se formar.
Parece que eles estão redescobrindo algo muito antigo e precioso sobre a criação; um impulso que muitos de nós esqueceram ou foi se perdendo depois da escola; algo que podemos perder ao deixar a tradição da arte desaparecer do nosso cotidiano, se tornar só algo sobre o que lemos nas notícias ou vemos numa galeria. Aí a música acaba e perguntam se alguém tem uma sugestão.
“Anos 80, por favor”, diz Jason, e a batida de “You Spin Me Round” do Dead or Alive enche o salão.
Alguns nomes forma mudados para preservar o anonimato de certos membros.
Matéria originalmente publicada na VICE UK.
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