Refugiados na Indonésia, os Rohingya sofrem com a violência em seu país natal
Mohammad Habi me conta que seu irmão morreu tentando fugir de soldados em Rakhine, perto de Sittwe. Todas as imagens por Aidli Rizki Nasution.

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Rohingya

Refugiados na Indonésia, os Rohingya sofrem com a violência em seu país natal

Imagens de violência brutal do Exército de Myanmar acompanham os rohingya onde quer que eles estejam.

Matéria originalmente publicada na VICE Indonésia.

Faz dois anos que Mohammad Noyeem fugiu da violência no estado de Rakhine em Myanmar e embarcou no bote de um traficante para uma perigosa jornada até a Malásia, mas acabou à deriva na costa norte da Indonésia. O barco estava superlotado, foi abandonado e estava afundando quando pescadores locais o encontraram na costa de Sumatra.

Ele ainda lembra das últimas palavras que trocou com o pai. Noyeem contou a ele que planejava deixar Rakhine e viver na Malásia, um país onde ele esperava um dia poder continuar seus estudos e se tornar médico. Seu pai só tinha uma pergunta: "Você não vai sentir minha falta?"

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"Eu disse que claro que sentiria", me contou Noyeem. "Depois começamos a chorar."



Noyeem é um muçulmano rohingya, membro de um dos povos mais perseguidos do mundo. Os rohingya vivem em Myanmar há gerações, mas o governo insiste que eles são imigrantes ilegais que cruzaram a fronteira de Bangladesh e se assentaram nos estados vizinhos durante a era colonial britânica.

Hoje, os rohingya não tem pátria e estão confinados em acampamentos pesadamente policiados em Rakhine. Uma onda recente de violência expulsou mais de 500 mil deles enquanto o exército de Myanmar faz uma ofensiva brutal contra o Exército da Salvação Rohingya Arakan (Arsa), um grupo militante que os fundadores dizem ter sido formado para proteger os rohingya da violência patrocinada pelo estado.

Os militantes do Arsa teriam supostamente atacado um posto de controle militar, desencadeando uma onda de violência tão pesada que o chefe do gabinete humanitário da ONU disse que a ação carrega todos " os marcos de limpeza étnica".

Mohammad Noyeem.

Mas quando Noyeem embarcou no barco do traficante, ele estava no meio de uma crise particular. Em 2012, enfrentamentos étnicos entre os muçulmanos rohingya e budistas de Rakhine explodiram por todo o estado. Mais de uma dúzia de rohingyas foram mortos enquanto turbas budistas incendiavam mesquitas e vilarejos. Eventualmente, o exército interveio, declarando estado de emergência, e instituindo medidas de segurança severas que limitavam os movimentos dos muçulmanos rohingya.

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Quando Noyeem finalmente decidiu fugir, o exército já tinha fechado acesso à sua escola e o êxodo de refugiados já estava acontecendo. Ele partiu para começar uma nova vida na Malásia, onde uma grande população rohingya foi assentada em grandes centros urbanos como Kuala Lumpur. Estima-se que 90 mil rohingyas vivem atualmente na Malásia — um país de maioria muçulmana que faz vista grossa para refugiados que trabalham ilegalmente até conseguir asilo.

Mas a vida de Noyeem deu uma guinada inesperada. Ele nunca chegou à Malásia. Quando o barco começou a afundar, Noyeem pulou na água no Estreito de Malaca. Ele nadou por cinco horas antes de ser salvo. E Noyeem foi um dos que tiveram sorte.

"Muita gente ali não sabia nadar", disse Noyeem. "Os vi morrendo ao meu redor. Mulheres tentando segurar os bebês e os filhos. Pessoas velhas que eram fracas demais para a jornada."

Noyeem não tinha ideia de onde estava quando os pescadores chegaram. Ele não falava inglês nem indonésio, então gritou as únicas palavras que tinha certeza que eles entenderiam: "rohingya" e "muçulmano". Os homens o trouxeram a bordo e o levaram para Pangkalan Susu, uma pequena comunidade pesqueira na costa da Sumatra Setentrional.



"Eu não comia há uma semana, já que a comida no barco tinha acabado", ele lembra. "Quando os indonésios me viram, eles começaram a chorar."

Agora Noyeem é um dos 129 requerentes de asilo morando no Hotel Beraspati, em Medan, Sumatra Setentrional. O antigo motel foi convertido num abrigo para refugiados quase três anos atrás. É um lugar sem nada de especial. Quartos no térreo com um pátio escondido atrás de um muro de cimento. O lugar é guardado por um único segurança que fica na frente do complexo.

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Mas o hotel às vezes parece mais uma cidade que um acampamento de refugiados. A Organização Internacional de Migração (OIM) entrega comida a cada três dias e a Universidade de Sumatra Setentrional oferece aulas de inglês e outras atividades.

Às vezes Noyeem consegue passar tardes fora e explorar a cidade. Ele me contou sobre uma vez que saiu escondido com alguns amigos e achou uma piscina local onde viu "muitas coisas legais". Perguntei se com isso ele queria dizer mulheres, e ele ficou vermelho antes de começar a rir incontrolavelmente.

Outros se apaixonam. Mohammad Habi, 23 anos, e sua esposa Surakatuh, 29, se conheceram quando os contrabandistas o colocaram no mesmo barco — junto com cerca de mil pessoas — em direção a costa sul da Tailândia. Os contrabandistas então fugiram da cena, deixando o barco à deriva por dias sem comida ou água, até que eles foram resgatados e trazidos para a Indonésia.

Perguntei como eles se apaixonaram em condições tão difíceis. O casal riu timidamente, depois Habi explicou que "só queremos uma vida normal. Queremos ser uma família".

Mas enquanto os requerentes de asilo rohingya conseguiram juntar algo parecido com uma vida normal em Medan, a situação em seu país só piorou. O irmão de Habi se tornou alvo dos militares. "O exército de Myanmar veio prendê-lo e ele fugiu", me contou Habi. "Eles o perseguiram até a praia, então ele se jogou no mar para escapar." Ele teve um ataque de pânico e se afogou, segundo Habi.

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Sua esposa, Surakatuh, diz que teme pela segurança da família. "Eles disseram que não têm comida", ela me contou. "Eles não têm dinheiro para sair de Myanmar e estão com medo. Eles só choram e me imploram para ajudá-los."

Enquanto Noyeem e eu vagávamos pelo terreno do hotel, um homem nos seguia de perto, me observando de uma pequena distância. Quando eu estava prestes a ir embora, ele se aproximou e perguntou se podia me mostrar uma coisa. Ele pegou seu celular e começou a passar por imagens vindas de Rakhine.

Mohammad me mostra imagens horríveis da violência em Rakhine em seu celular.

As fotos eram um show de horrores, o tipo de imagens que geralmente ficam fora da cobertura da mídia sobre a crise em Rakhine. Há imagens de homens amarrados pelo pescoço e pelas mãos, obrigados a ajoelhar na terra. Outras mostram covas coletivas. Em uma, o corpo inchado de um bebê está caído de lado numa vala. Mesmo o gado rohingya não é poupado da violência. Em uma imagem, uma vaca está ajoelhada, ainda viva, com um machado enfiado nas costas. "Essas fotos não mentem, irmã", me disse o homem, que se chamava Mohammad.

Psicólogos tentam alertar os requerentes de asilo sobre os perigos de ver essas imagens da violência em casa. "Se os refugiados rohingya veem imagens de Myanmar ou ouvem as últimas notícias, tem um grande risco disso desencadear flashbacks ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático", explica a Dra. Irna Mineuli, uma psicóloga de Medan que trabalha com a comunidade rohingya.

Noyeem tem apenas 17 anos, mas nos dois anos que passou em Medan, ele aprendeu a falar inglês com confiança e se tornou um porta-voz da comunidade. Enquanto falávamos sobre a situação em seu país, ele se lançou numa recriminação ao governo de Aung San Suu Kyi, acusando a vencedora do Prêmio Nobel da Paz de ignorar o "genocídio" e a "limpeza étnica". Ele tinha alguma esperança de que Suu Kyi possa trabalhar para melhorar a situação do povo rohingya?

"Ela não quer salvar os rohingya", disse Noyeem.

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