A Inglaterra nunca encarou a vergonha do seu imperialismo

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A Inglaterra nunca encarou a vergonha do seu imperialismo

Quase metade dos britânicos tem orgulho da herança colonial do país.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .

Os ministros ingleses estão suando para pensar em quem serão os novos parceiros comerciais da Grã-Bretanha quando o país sair da União Europeia. Em certo momento, saiu a notícia de que o governo esperava abordar países que já foram parte do Império Britânico. A ideia é que, agora que o sangue secou e a poeira das balas de canhão baixou, as nações do Commonwealth vão adorar pular nessa nova era de comércio com seu ex-mestre colonial. Alguns funcionários públicos duvidam, apelidando os planos do governo de "Império 2.0".

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Na manhã em que esses planos de um reboot colonial foram anunciados, falei com Shashi Tharoor, um parlamentar indiano e autor de Inglorious Empire. O livro detalha os enormes danos econômicos feitos à Índia pelo Império, desmonta a noção hipócrita de que algumas coisas que a Grã-Bretanha fez na Índia foram para "o bem dos indianos", e pede o fim da ignorância monumental que cerca o assunto.

Tharoor ri quando pergunto sobre o Império 2.0: "Bom, o Império 1.0 já era uma má ideia, para dizer o mínimo. Por que você ia querer uma segunda versão?" E ainda assim, ouvimos vários membros do governo britânico repetirem fantasias da grande importância da Inglaterra durante a campanha do Brexit, então parece que uma segunda versão do império é exatamente o que muita gente quer.

É compreensível, de certa maneira. Era uma vez, o sol nunca se punha nas terras que a Inglaterra controlava. Quem sente saudades do império ainda sonha em ter sua bandeira da união passada por um servo nigeriano, e um rapaz indiano preparando um gostoso gim-tônica.

E isso tudo parece muito mais sedutor diante do declínio e desespero que encaramos agora. Dane-se que aproximadamente 35 milhões de indianos morreram por causa da fome causada pela má administração britânica, ou que Winston Churchill tenha se referido aos indianos como "bestiais" que "procriam como coelhos". Dane-se que 5,5 milhões de africanos foram escravizados e que os campos de concentração são uma invenção do Império Britânico.

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Esses crimes imperiais — e muito outros — não são conhecidos ou são maquiados, perdidos na onda de nostalgia colonial e na névoa da ignorância. Durante a campanha do referendo da União Europeia, a ideia de "soberania" passou a ser vendida como "tornar a Grã-Bretanha grande de novo", ou, nas palavras da campanha pelo Brexit, "retomar o controle". O mantra de governo "forte e estável" dos conservadores também tem um anel imperial, a evocação de algo antigo, dominante e navegável.

Esse desejo de voltar à grandeza, combinado com uma falta de vergonha, foi expresso de forma bastante característica por Boris Johnson, que disse que o continente africano "pode ser uma mancha, mas não uma mancha na nossa consciência. O problema não é que um dia estivemos no poder, mas que não estamos mais". Em setembro de 2015, David Cameron disse que o parlamento jamaicano precisava "superar o legado doloroso da escravidão", antes de anunciar que o governo planejava construir uma prisão de £25 milhões na ilha.

Sentimentos como o de Johnson são sempre repetidos. "É isso que eu chamo de vencer!!! Muito bem Time GB e todos os amigos do Commonwealth, agora vamos aos acordos comerciais", tuitou a parlamentar conservadora Heather Wheeler no final das Olimpíadas, junto com o slogan "Império atrás do ouro".

Na cabeça de Wheeler, é como se nas ex-colônias britânicas, fãs dos esportes estivessem dando um soquinho no ar e gritando "Pela Rainha e pelo país!"

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E boa parte do público está com ela. Em janeiro de 2016, uma pesquisa do YouGov descobriu que 44% dos britânicos (e 57% dos conservadores) achavam que a "história de colonialismo" do país era algo para se orgulhar, e 43% achavam que o Império Britânico era uma "coisa boa".

"As pesquisas não me surpreendem", diz Paul Gilroy, autor de vários livros sobre raça e o império, "porque estamos lidando com uma política de ignorância quase total nessas questões".

Apesar dessa ignorância geralmente ser atribuída aos indivíduos, tipo "Vai ler um livro, seu burro", Gilroy fala sobre uma fabricação de ignorância que impede as pessoas da Inglaterra de aprenderem sobre o passado imperial do país. A escola ensina sobre os Tudors e os nazistas. As pessoas falam sobre "Uma Copa do Mundo e duas Guerras Mundiais". Lembramos dos campos de concentração da Alemanha Nazista, e devemos mesmo, mas não nos ensinam sobre os campos de concentração da Guerra dos Bôeres, quase 50 anos antes do nazismo.

Não aprendemos sobre os massacres, as grandes fomes, os navios negreiros e as prisões, ou que o Império era um sistema de extração de riquezas onde as vidas de milhões de pessoas eram desconsideradas em favor da ganância da nação britânica e aqueles que a serviam. Que milhões de africanos foram levados à força para as colônias caribenhas pelos vendedores de escravos britânicos, que a riqueza que eles extraíram veio a um custo terrível. Enquanto essas riquezas continuam a fluir através da sociedade britânica hoje, sua extração ainda é profundamente sentida nas ilhas das Índias Ocidentais. Ou que, quando estava tudo acabado e a Grã-Bretanha estava erraticamente picotando seu império em novas nações, oficiais ingleses tentaram apagar a verdade do que tinha acontecido durante seu reinado, destruindo e queimando sistemáticamente documentos oficiais. Em Deli, essa destruição continuou por tanto tempo que a fumaça das fogueiras cobriu a capital indiana.

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Quando uma conversa sobre o Império Britânico realmente acontece, ela geralmente é defensiva ou triunfalista. Niall Ferguson, que escreveu um livro chamado Civilization: The Six Killer Apps of Western Power — sim, ele quis dizer aplicativos de celular — vendeu mais livros sobre o império que qualquer outro autor britânico recente. Ele é, como Shashi Tharoor coloca, um "defensor do império". Sua prosa conforta os leitores que não parecem capazes de lidar com a ideia que seu país não é 100% ótimo.

"Culpa é inútil, contraprodutiva e geralmente apenas uma fonte de ressentimento. Vergonha, por outro lado, pode voltar às pessoas para possibilidades de reparação."

Essa culpa é paralisante. Paul Gilroy aponta que Freud associa a culpa com melancolia, que os psicanalistas descrevem com uma condição sem vergonha, que se relaciona com a passagem de algo que não pode ser totalmente compreendido, e portando não leva a mudanças positivas. Melancolia se relaciona ao luto — a perda do império é dolorosa, mas não pode ser processada porque, como diz Gilroy, "se isso for reconhecido e considerado, a Grã-Bretanha poderia aprender verdades desconfortáveis demais sobre sua história".

Vergonha, para Gilroy, é preferível à culpa porque pode ser um catalisador — um estímulo para a ação. "Culpa é inútil, contraprodutiva e geralmente apenas uma fonte de ressentimento", ele me diz. "Vergonha, por outro lado, é uma resposta apropriada que pode voltar as pessoas para possibilidades de reparação."

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Em Varsóvia, em 1970, o chanceler alemão Willy Brandt se juntou a uma homenagem às vítimas judias do Gueto de Varsóvia, ficando de joelhos num ato de humildade e penitência. Como socialista, Brandt tinha sido inimigo da Alemanha Nazista e foi preso por suas atividades políticas. Ele não tinha responsabilidade pessoal pelos crimes daquele governo, mas reconheceu que como representante de seu país, ele podia fazer alguma coisa, e que, como ele escreveu em sua autobiografia, ele estava "carregando o fardo de milhões de pessoas que foram assassinadas".

Uma resposta assim na Grã-Bretanha parece improvável, parcialmente porque muitos britânicos não sabem — ou se recusam a aceitar — quão sombrio era o império. Ano passado, o parlamentar conservador Liam Fox tuitou que a Grã-Bretanha "é um dos poucos países da União Europeia que não enterra sua história do século 20". Pós-Brexit, Fox agora é ministro de gabinete no comando do comércio internacional — o último lugar em que você ia querer um defensor do império.

Essa atitude hipócrita vai muito além dos corredores do poder. Seu legado ainda está ao nosso redor.

Em setembro passado, um consórcio de bebidas planejava abrir um "bar sofisticado de rum" chamado Plantation. Só quando o Black Activists Against Cuts apontou que as plantations eram "lugares onde as pessoas sofriam e morriam, onde africanos sofreram uma violência e horror inimagináveis nas mãos dos donos de escravos", o bar foi rebatizado como Burlock.

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Mas já existe um Plantation Bar and Grill em Wigan. O lugar vende "comida soul americana". Isso está escrito na seção "Filosofia" do site deles.

Outro exemplo muito adequado de nostalgia colonial, a Companhia das Índias Orientais continua por aqui, vendendo "chás requintados e cafés ricos, biscoitos doces e salgados artesanais, uma variedade luxuosa de chocolates, geleias vintage e exóticas, marmeladas e mostardas…" O site deles é um pouco nebuloso sobre a escravidão em massa necessária para a companhia funcionar durante a era colonial, ou as fomes devastadoras que ela criou ao exportar colheitas em vez de alimentar os locais.

"Uma reclamação comum entre meus estudantes é 'Por que nunca aprendemos sobre história negra?' E tenho que dizer a eles que não há uma opção para isso no nosso currículo atual."

Em 1948, o Ato de Nacionalidade Britânica estabeleceu o princípio de "Civis Britannicus Sum": que qualquer pessoa nascida no império tinha direito à cidadania britânica. Como resultado, pessoas de antigas colônias britânicas vieram para a Inglaterra supostamente como cidadãos. Em resposta ao racismo enfrentado por essas pessoas, a frase "Estamos aqui porque vocês estiveram lá" se tornou um slogan forte contra os racistas.

Mas isso ainda é pouco ensinado nas escolas britânicas — algo que os professores de história da nação discutem. "Na minha opinião, há uma lamentável falta de engajamento nesse tópico em todo o currículo das escolas britânicas, considerando a importância do imperialismo tanto para a história britânica como mundial", diz William Bowles, chefe do departamento de História da St. Mary Magdalene Academy no norte de Londres. "Uma reclamação comum entre meus estudantes é 'Por que nunca aprendemos sobre história negra?' E tenho que dizer a eles que não há uma opção para isso no nosso currículo atual."

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Para abordar essa falta de educação pública, Jeremy Corbyn disse que o Império Britânico deve ser ensinado nas escolas, e vários grupos alternativos estão tentando conscientizar o público sobre o legado colonial britânico. Elsie Bryant, organizadora do projeto "British Empire State of Mind", diz que o grupo pretende usar uma abordagem aprofundada para "ajudar a dar algum contexto para o que está acontecendo no mundo hoje, em termos de desigualdade global, pobreza e como a Grã-Bretanha ajudou a criar as condições que causaram e continuam a perpetuar isso".

Projetos como esse são importantes, não apenas para lições de história, mas como ferramenta para entender a situação política e econômica da Inglaterra hoje. Os governos pós-coloniais adoravam bancar o salvador branco em países que precisavam ser "salvos", oferecendo "ajuda" e "desenvolvimento". Mas não é por acaso que a Grã-Bretanha é rica comparada com suas antigas colônias. O comércio, recursos naturais e trabalho recolhidos nas colônias transformaram a Inglaterra numa nação rica. No começo do século 18, a parcela da Índia na economia mundial era de 23%. Quando os britânicos deixaram a nação, era de pouco mais de 3%. O dinheiro taxado, roubado e retirado da Índia foi usado para financiar a revolução industrial e a transformação da Grã-Bretanha numa potência mundial.

Alguns dos ganhos injustos do império até vieram de um grande pacote de compensação. O equivalente a £16 a £17 bilhões hoje, ou 40% de todas as despesas do governo em 1834, foi pago, depois da abolição da escravatura, aos donos de escravos (os escravos não receberam nada). Como o projeto Legados da Propriedade de Escravos Britânica da UCL descobriu, cerca de 46 mil reivindicações individuais foram feitas por aqueles que "eram donos de escravos ou se beneficiavam indiretamente da propriedade deles".

Apesar desse vasto efeito que o império teve nas nossas vidas, "nunca", como Paul Gilroy aponta, "desenvolvemos uma maneira de falar sobre o passado imperial e seus crimes que nos permitisse ver isso pelo que realmente é". Se não podemos escapar das fantasias do império, se não podemos aprender sobre o que realmente aconteceu em nome da coroa britânica, nunca vamos conseguir imaginar uma nova identidade para nosso país, uma identidade que represente melhor a nação multiétnica que nos tornamos. Nossa trajetória atual, saindo da Europa com uma ideia inflada da nossa própria importância, sem dúvida é um resultado dessa falha na educação, que nos impede de encarar nossos crimes e demonstrar humildade.

@oscarrickettnow

Tradução: Marina Schnoor

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