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Saúde

A história suja de como a indústria de tabaco foi obrigada a se reduzir

Este mês é o aniversário de 20 anos de um acordo que mudou para sempre o mercado do cigarro – e apresentou algumas táticas perversas das empresas de tabaco para o mundo.
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Imagem: Sira Anamwong.

Foi a Stalingrado da indústria de tabaco: o momento em que um adversário antes indestrutível teve que ficar de joelhos.

Este mês marca 20 anos desde o Tabacco Master Settlement Agreement (MSA), um pedaço de papel selado num tribunal norte-americano que mudou a face do fumo para sempre e ganhou uma vitória legal inacreditável recorde de US$ 365 bilhões. Por anos, o que agora parece inevitável era um sonho impossível. A ação de retaguarda da indústria era vasta, disciplinada e com bolsos fundos. No começo dos anos 1990, eles derrubaram mais de 800 processos.

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Mas tudo isso acabou com um advogado e uma classe inteiramente nova de litígios. Quarenta e seis estados norte-americanos se juntaram para processar as empresas de tabaco pelas contas hospitalares de milhões de fumantes americanos.

Mas a história começou não nos tribunais americanos, mas num laboratório médico inglês.

Enfermaria Radcliffe, Oxford. Maio de 1950.

Em seu laboratório, o Dr. Richard Doll analisa uma folha de testes. Doll já tinha experimentado em ratos antes. Mas dessa vez, a coisa é pessoal. Enquanto ele examina os primeiros resultados de seus experimentos com tabaco, Doll cruza a sala e joga seu maço de Craven As no lixo. Dali em diante, ele nunca mais fumaria.

O artigo que Doll publicou em setembro daquele ano no British Medical Journal foi o primeiro a mostra uma ligação entre fumar e câncer. O nome dele é esquecido hoje, mas de seu jeito, Doll foi outro Alexander Fleming, um Jonas Salk. A ligação que vemos hoje como óbvia simplesmente não era na época.

A escala de confusão médica pode ser medida por como a pesquisa anterior de Doll tentou culpar literalmente o alcatrão das estradas por câncer de pulmão:

“Analisamos estudos ocupacionais de trabalhadores de rodovias, mas eles não tinham taxas mais altas de câncer de pulmão. Há pesquisas onde eles tentaram produzir câncer em animais pintando derivados de tabaco na pele deles, mas os resultados se mostraram negativos. O que ninguém percebeu na época era que o tabaco continha substâncias cancerígenas fracas que exigiam uma exposição de longo prazo para ter um efeito.”

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Casa de Leo Burnett, Lake Zurich, Illinois. 7 de junho de 1971.

Leo Burnett volta para casa do trabalho na agência de publicidade que leva seu nome, para sua mansão em Lake Zurich. Ele troca algumas palavras com a esposa, cai e morre de ataque cardíaco.

Dois meses antes, com um cigarro empoleirado em sua mão gorda, Burnett tinha contado para uma equipe de documentário como ele tinha inventado o Homem Marlboro. Na verdade, a agência de Burnett imaginou todo uma geração de Americana: o tigre Tony, por exemplo, e o Pillsbury Doughboy.

Em 20 anos, cinco Homens Marlboro morreram de câncer de pulmão e enfisema. Mas Leo Burnett é o publicitário favorito da indústria de tabaco. A fabricante do Marlboro, a Philip Morris, continuou cliente da agência dele até os anos 90. É a agência de Leo Burnett que diz a Philip Morris que eles deveriam “mudar o foco” de um relatório ligando fumaça de tabaco ambiental a câncer de pulmão. Em vez eliminar o fumo passivo, um memorando vazado sugere que eles façam campanha por melhoras no ar-condicionado – apesar do memorando só ter sido divulgado ao público anos depois, como parte dos documentos intimados para o Tabacco Master Agreement.

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Foto por Emily Bowler

Thames Television House, Euston Road, Londres. Abril de 1977.

Helmut Wakeman, o vice-presidente da divisão de ciência e tecnologia da Philip Morris, tem a honra de ser o primeiro executivo da companhia a admitir a ligação entre fumar e morrer:

Sim, cigarros são […] Mas o que fazemos então, paramos de viver? O melhor jeito de evitar a morte é não nascer, sabe.

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Executivos da Philip Morris são entrevistados para um documentário sem remorso da Thames TV chamado Death in the West. Ele rastreou cinco cowboys estilo Homem Marlboro, todos morrendo de doenças ligadas ao fumo. Entre eles, há entrevistas com executivos do negócio de tabaco.

Quando os executivos viram o documentário pronto, eles surtaram. A Philip Morris diz que eles foram enganados, e joga seu exército de advogados contra a Thames TV.

Um dos cowboys apresentados, John Holmes, recebe uma estranha visita de investigadores particulares em Kansas City, mandados para minar sua credibilidade:

Eles foram muito astutos em suas perguntas. […] Eles queriam saber há quanto tempo eu estava no negócio de gado… Tenho esse rancho há 20 anos, mas eles tentaram destacar o fato de que por um tempo fui professor.

A Philip Morris vence. O Lorde Chanceler interdita o filme, que continua trancado num cofre de tribunal em Londres, impedido de ser exibido de novo.

Se já não era antes, essa tática de sufocamento agora é o sustentáculo da indústria. Mande os advogados, enfie a mão mais fundo nos seus vastos bolsos e, acima de tudo, contenha a linha de culpabilidade legal: Ninguém pode sentir o cheiro do sangue na água.

John Holmes morre alguns meses depois.

Shockerwick House, Bathford, Somerset. Junho de 1977.

É praticamente o SPECTRE da vida real. Depois da polêmica do Death in the West, as sete cabeças das maiores companhias de tabaco do mundo se sentam numa mesa de reunião. Fumando. Eles foram invocados pelo presidente da Imperial Tabacco – Tony Garrett. Eles estão ali para resolver um problema e combinar uma história.

Nas palavras deles próprios, o objetivo era:

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“Desenvolver uma estratégia eficaz de fumo e saúde, para evitar que nossas companhias sejam derrubadas uma por uma, com o efeito dominó resultante.”

Essa é a Operação Berkshire, e desse dia em diante a indústria do tabaco não ignora mais a metástase das evidências de câncer – eles ativamente vão reprimi-la.

Eles começam um processo de criar uma narrativa paralela, montar sistemas de informação rival, um consenso científico completamente alternativo. Entre eles:

– O Centro de Pesquisa de Ar Interno, uma unidade de pesquisa, com os melhores profissionais, montado para “manter a polêmica viva” quando se tratava de provar os efeitos prejudiciais do fumo passivo.

– INFOTAB, o ramo de inteligência, pensado para monitorar organizações antitabaco, “alistar aliados” e refutar dados do lobby antitabagista.

Alguém acaricia um gato branco, que tosse uma bola de pelos com alcatrão.

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Foto por Emily Bowler

Baptist Central Hospital, Memphis, Tennessee. Maio de 1993.

Na UTI, Alice Thompson estuda uma pilha de cachos de cabelo moreno, de uma paciente recente de quimioterapia, ainda jogados pelo chão de azulejos brancos. Thompson está cuidando da mãe. Jackie, 49 anos, era uma morena linda e cheia de vida. Agora, ela pesa 40 quilos, está enrugada, careca, amarelada, morrendo.

Toda revolução precisa de seu azarão determinado, sua Karen Silkwood. Para nossos propósitos, Mike Moore, procurador-geral do Mississippi, serve esse propósito.

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Moore está em seu escritório numa tarde quando recebe uma ligação do amigo Mike Lewis, amigo de Alice Thompson. Lewis, que acabou de voltar do hospital, pergunta se não tem alguma ação que o estado pode tomar contra a indústria de tabaco.

Moore desliga, pensando que isso não é uma boa ideia – mas mais tarde naquele dia ele analisa a questão mais algumas vezes, e imagina que a ideia pode ter “mérito”.

Mas as probabilidades são difíceis. Nos 40 anos até 1994, mais de 800 processos foram abertos contra empresas de tabaco nos tribunais estaduais por todo os EUA. Quase sem exceção, cada um foi derrubado pelos esquadrões de litígio da indústria de tabaco.

Mesmo em 1994, todas as sete cabeças da Operação Berkshire compareceram a uma audiência no Congresso, e dizem, sob juramento, que nicotina não é viciante. Essa linha não mostra sinais de que pode se quebrar.

Hotel ANA, Washington, DC. 20 de junho de 1997.

Advogados. Milhares deles.

No salão do hotel ANA em DC, procuradores-gerais de 46 estados e suas equipes se reúnem para uma grande entrevista coletiva e festa da vitória. Um por um, veja você, os estados se juntaram ao processo de Moore, até que ele se tornou uma singularidade inescapável de advogados.

Encarando guerra em todas as frentes, empresas de tabaco fazem uma petição no Congresso americano por um acordo legislativo. Num acordo que será finalizado em novembro do ano seguinte, eles concordam em pagar $368,5 bilhões aos estados nos próximos 25 anos, para cobrir os custos legais de doenças relacionadas ao cigarro. Para dar um contexto, o segundo maior pagamento na história legal dos EUA, o acordo do escândalo Enron, foi de $7 bilhões.

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Enquanto as pessoas brindam e Moore dá um discurso de um balcão, a conversa se volta para a candidatura dele para o Congresso.

Mas com o passar do tempo, parece que as empresas de tabaco não ficaram tão devastadas assim com sua derrota. Talvez o que nenhuma parte quer reconhecer e que elas saíram bem dessa.

Depois de décadas de guerra nos tribunais, as empresas não precisam mais se preocupar com ações judiciais coletivas, ou casos estaduais MedicAid: elas têm certeza que podem pagar. Agora, o valor total de pagamento individual tem teto de $5 bilhões por ano.

Elas pararam de fazer marketing voltado para jovens, colocam alertas nas propagandas nos outdoors, têm mais restrições de marketing em esportes e eventos, e concordaram em colocar mais bilhões de dólares para propagandear contra si mesmas.

Mas o Tabacco Master Agreement também criou um cartel. Num compromisso com as equipes legais, as 29 empresas que assinaram o acordo puderam evitar que competidores com cigarros mais baratos inundassem o mercado. O stress financeiro significa colocar seus preços numa média de 64 centavos o maço (em dólares de 2018). Mas quem paga a sobretaxa quando você tem um produto viciante? O consumidor – geralmente pobre, geralmente velho.

Em outro lugar, fora da vista, talvez outros brindes estão sendo feitos – e maços sendo abertos.

Um campo de golfe público, Nova York, 2008.

O que acontece em seguida é uma lição objetiva sobre o que acontece quando você joga um monte de dinheiro num grande governo. Menos de 3% dos ganhos totais dos estados é gasto com doenças relacionadas ao fumo. Em vez disso, o dinheiro vai para fins mais gerais: no Estado de Nova York, $700 mil vão para um sistema de irrigação de um campo de golfe público, $24 milhões para uma prisão estadual e um prédio de escritório. Em 2016, um relatório do State of Tabacco Control deu a 80% dos estados uma nota baixa – por gastarem menos de 50% da quantia recomendada na prevenção do fumo.

E a coisa piora. Ter um pé-de-meia para se aproveitar parece não ser uma boa ideia para os legisladores estaduais de vista curta dos EUA. Doze estados vendem a prataria da família barato para tapar buracos em seus orçamentos, criando Bônus de Tabaco e efetivamente penhorando seus direitos a pagamentos futuros.

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No final das contas, o Tabacco Master Agreement foi dinheiro grátis – dinheiro que não precisava vir de novos impostos – e que legislador não adora isso? Em impasses orçamentários anuais entre republicanos e democratas, o fruto baixo da concessão muitas vezes acaba sendo abrir seus pagamentos do MSA.

Mas como o fluxo de renda depende do valor futuro das vendas de tabaco, instituições financeiras se mostraram compradoras relutantes dos Bônus de Tabaco, então eles precisaram ser vendidos com grandes descontos, só 40% de seu valor inicial.

Pior que isso, vários estados decidem que querem ter tudo, então vendem os direitos de futuros pagamentos para ter dinheiro agora.

São os chamados CABs: Capital Appreciation Bonds. Com os CABs, nenhum pagamento é exigido até que eles amadureçam, geralmente em 40 anos ou mais. Enquanto isso, os juros viram uma soma exorbitante. Michigan, por exemplo, vai ter que pagar de volta mais de 1.800 vezes a quantia que emprestou.

Doze estados emitiram $22 bilhões em bônus, e em troca, receberam apenas $573 milhões em dinheiro. Com juros, isso significa que eles terão que pagar $67 bilhões.

É meio como fumar: prazer agora, câncer depois. Você pode chamar isso do ciclo da vida? Ou talvez “a curva em oito da idiotice humana”? Economistas chamam isso de “uma alta taxa de desconto temporal”, o que parece menos assustador, e tem um gosto melhor que mentolado.

Lakeland Drive, Jackson, Mississippi. Dezembro de 2010.

Mike Moore entra correndo na casa do sobrinho, tenta gritar na orelha dele, joga água gelada nele e o belisca enquanto seu sistema respiratório começa a entrar em colapso. Ele tem 30 anos, 113 quilos, o rosto empastado, o peito coberto de vômito. A noiva dele chora ao lado.

É fentanil, claro.

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A nova cruzada de Mike Moore tem uma dimensão pessoal. Em dezembro de 2017, depois da overdose não-fatal de seu sobrinho, o ex-procurador-geral anunciou que vai atrás das empresas farmacêuticas que, segundo ele, vendem opiáceos poderosos para consumidores que não sabem o mundo de problemas em que estão se metendo.

Os mesmos argumentos, as mesmas táticas de alta octanagem de 20 anos atrás – só que dessa vez o alvo é a Purdue, a empresa que vende o OxyContin, o Google dos opiáceos por receita médica.

O raio pode cair duas vezes no mesmo lugar? Estamos prestes a descobrir.

Hospital particular, Londres. Dezembro de 2017.

Rony Garrett, presidente da Imperial Tabacco durante a era da Operação Berkshire, e fumante de sua própria marca, cigarros Embassy, morre.

Ele tinha 99 anos.

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Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido.

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