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Politică

No governo da nova direita, a crise também é estética

Entre fotos pixeladas e fontes desproporcionais, o design gráfico tosco das montagens direitistas virou uma arma política.
Montagem de Sérgio Moro e Bolsonaro

No dia 1ª de novembro, o juiz Sérgio Moro surpreendeu um total de zero pessoas quando aceitou o convite do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) para ser o novo Ministro da Justiça em seu governo a partir de janeiro de 2019. Mas o anúncio não estaria completo sem uma montagem tosca para acompanhar: a ex-jornalista, segunda deputada federal mais votada do estado de São Paulo e disseminadora profissional de fake news Joice Hasselmann tratou de dar seu apoio à notícia postando no Twitter uma imagem que contava com uma foto de Moro totalmente pixelada, a cabeça de Bolsonaro flutuando e algumas fontes diferentes (acima).

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O talento da nova direita brasileira para o design feio e ridículo deixou de ser um segredo durante essas eleições. A própria Hasselmann foi grande disseminadora de imagens com fotos mal recortadas e coladas, a cabeça de outros membros do PSL sobre o corpo dos personagens da Liga da Justiça, um sapato de salto alto estampado com uma bandeira do Brasil (com os dizeres "Vamos vencer na elegância), entre outras bizarrices.

Tantas aventuras no Photoshop renderam a ressurreição do bordão "a crise também é estética", pra simbolizar a decaída de qualidade nas imagens de propaganda política disseminadas nas redes (principalmente, é claro, pelo WhatsApp). E rolou também um desespero coletivo: durante alguns momentos do segundo turno das eleições, houve um pequeno movimento de apoiadores de Fernando Haddad (PT) divulgando imagens que reproduziam essa proposta estética, inclusive incorporando as cores da bandeira brasileira.

Para o semioticista e professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) Vinicius Romanini, a tática da direita brasileira é um pouco mais complexa do que apenas a combinação de diferentes fontes e cores patriotistas. O pesquisador acredita que dispensar o design gráfico disseminado por essa ala política como simplesmente "feio" ou "mal-feito" pode ser perigoso. "Essa estética, simples, sentimentalista e que usa ícones do repertório de classes que eles querem atingir – evangélicos, pessoas de classe média – compõe uma mensagem que, embora pareça tosca, é muito sofisticada do ponto de vista da elaboração lógica. A gente não pode assumir que foi uma coisa amadora – aquilo é extremamente profissional, feito a partir de pesquisa qualitativa", argumenta.

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"Quando você põe um sapato feminino de salto alto e mescla na padronagem a bandeira do Brasil junto a uma fonte que imita uma letra manuscrita, você cria um conjunto de atributos, de qualidades, e está fazendo isso de forma muito clara. Na semiótica, chamamos isso de icônico – o ícone é um tipo de signo que é absorvido de forma direta, muitas vezes não-consciente, e apela sempre para afetividade e o emocional", explica o professor. Para ele, a estética usada nessas montagens cai dentro da classificação kitsch.

O kitsch, termo consolidado na história da arte, surgiu em meados do século 19 e se trata de um conceito muito volátil. Mas, segundo Umberto Eco no livro História da Feiura, kitsch é o que foi definido pela sensibilidade estética dominante como ridículo ou desagradável, estando fora do espectro do "bom gosto" como definido pelos artistas, pessoas cultas, e todos os que forem considerados peritos em coisas belas. É possível dizer, então, que o kitsch é uma rejeição à intelectualidade que envolve o campo artístico. As montagens espalhadas por grupões de zap não têm apenas o propósito de servirem à cafonice extrema, mas também – e, talvez, principalmente – de rejeitar uma estética pré-estabelecida pelos representantes da alta cultura. No Brasil, estes são uma maioria de esquerda.

"A estética conservadora é sempre aquela da imagem religiosa, da família tradicional, que acaba por vezes sendo racista, fascista, reforçando estereótipos de uma sociedade em que as relações de poder já estão consolidadas", destaca Romanini. "O domínio eleitoral é passageiro – logo mais as contradições das propostas do Bolsonaro vão aparecer, a lua de mel com o eleitor vai durar pouco. Mas você só consegue manter essa hegemonia política, apesar desse desgaste, se houver um programa cultural e educacional relacionado à ela."

Impedir exposições (como aconteceu no ano passado, com o fechamento da Queermuseu), perseguir artistas, acabar com a Lei Rouanet, impedir que universitários prostestem, incentivar uma "Escola Sem Partido" – tudo isso faz parte das sorrateiras guerras culturais que o Brasil vive nos últimos anos. Uma matéria da Folha de S. Paulo publicada no fim do mês passado discute bem a questão quando diz que o debate político já foi deixado em banho-maria; o que se discute, agora, é a moral e a hegemonia cultural. "A arte não está descolada das relações de poder da sociedade, ela faz parte delas. O elemento estético é importante, mas a gente tem que contextualizar isso no momento histórico. O que vimos nessa eleição foi a emergência de um novo campo hegemônico na sociedade, e isso implica numa nova estética", fala o professor.

A solução para a esquerda, para Romanini, não é incorporar a linguagem dos opositores, como sugeriram alguns eleitores de Haddad. Para levar à frente suas táticas progressistas, o pesquisador sugere que a estética também seja disruptiva. "Os artistas são as antenas da raça humana: se a gente não fizer uma arte que permita ao grande público entrar em contato com os temas que fariam avançar o processo civilizatório, pra que fazer arte progressista?", fala. "O ciberativismo, o feminismo, a luta contra o racismo, tudo isso tem que ser colocado dentro de uma estética que seja também revolucionária, que seja propositiva e que tire as pessoas do lugar comum, da zona de conforto. É aí que se dá o embate."

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