Pra que e pra quem servem as pesquisas em favelas?

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Pra que e pra quem servem as pesquisas em favelas?

Professores e representantes de comunidades debatem quais são os limites dos estudos científicos e propõem acabar com o "fetiche antropológico" no país

Toda pesquisa acadêmica precisa de uma metodologia científica. Isso envolve vários passos, como definir tema, escolher objeto de estudo e criar justificativa. Tudo deve ser pensado com calma e cuidado, mas, ainda assim, para muita gente, há um problema sobre o alvo das pesquisas produzidas no Brasil. Segundo esses críticos, existe uma falta de propósito nos estudos feitos com grupos marginalizados do país. A pergunta central deles é: pra que servem tantas pesquisas feitas em favelas?

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Uma busca rápida na plataforma Scielo ilustra bem o que o grupo fala. Por lá, nos últimos dez anos, apenas dois artigos trataram do termo “Leblon”, enquanto “Rocinha” aparece 16 vezes. Para Fransérgio Goulart, historiador e militante do Fórum Social de Manguinhos e do Movimento de Favelas, trata-se de um "fetiche antropológico".

Goulart é um dos envolvidos no ciclo de debates "Pra quê e pra quem servem as pesquisas em favelas?". O evento, que tem sua nona edição dia 18, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio, começou no ano passado, em Manguinhos, e já reuniu cerca de 500 pessoas. A proposta é itinerante e conta tanto moradores, como militantes, pesquisadores e moradores-pesquisadores.

"No primeiro encontro a gente ouviu muito sobre a ilusão da pesquisa poder melhorar a política pública, mas a gente tem milhares que não melhoraram a nossa vida”, diz Goulart. “Por que essas pessoas não pesquisam outras áreas da cidade? Por que sempre o outro, o oprimido? A gente debate a partir de alguns autores, sobre ter muita pesquisa sobre oprimidos e pouco sobre opressor, óbvio sem generalizar. O que a gente tem construído é a ponte de pensar uma academia para ver de outra forma. Que vejam a gente como produtor de conhecimentos."

Fransérgio Goulart, historiador e militante do Fórum Social de Manguinhos e do Movimento de Favelas. Foto: Acervo pessoal

Morador há mais de 20 anos em Manguinhos, Goulart conta que sempre se sentiu incomodado. Ele diz que se constrói uma relação de confiança, a pessoa participa da pesquisa e depois nunca mais vê o pesquisador, muito menos sabe quais resultados teve o estudo. Ele propõe que se estabeleça uma relação de troca, sem vampirizar os moradores, propondo um comitê de ética com participação de pesquisadores da favela:

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"O que a gente está propondo não é que sejam só pesquisadores da favela que pesquisem a favela”, diz. “Percebemos que o mais importante não era a pesquisa deles, ela tem prazo. Pra gente, conseguir construir uma relação que a pessoa, para além da pesquisa, possa nos ajudar na nossa luta, aí vemos um caminho interessante."

"Tem muita pesquisa sobre oprimidos e pouca sobre opressor"

Dona do Preta Dotora, a professora da UFRJ, Giovana Xavier, diz que existe espaço para todo mundo, mas a produção científica é muito demarcada por privilégios de raça e classe, e isso interfere no saber produzido. A escritora, que participa dias 21 e 22 do I Seminário Ciência para o Negro, na UFRJ, diz que é comum ouvir dos alunos que nunca teve uma professora negra ou leu um autor negro. Por isso, afirma, é preciso representatividade na ciência.

"É importante que os grupos tenham produção de conhecimento que partam desse grupo, mulheres negras que falem de mulheres negras, e seja majoritariamente. Isso diferencia a pesquisa, e não é certa ou errada, passa pela experiência. Minha produção passa por isso, ser mulher negra, de família pobre, criada por mulheres. Fará com que eu leia documentos históricos de uma maneira diferente e produza de maneira diferente", explica.

Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Intelectuais Negras, ela lembra que, segundo levantamento da revista online Gênero e Número, com base no Censo da Educação Superior de 2016, do Inep, existem 10 mil professoras doutoras brancas e apenas 219 negras. O que mais pega, para Giovana, é quando pensamos nas referências bibliográficas, que partem da distribuição desigual no mercado editorial.

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A professora da UFRJ e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Intelectuais Negras, Giovana Xavier. Foto: Acervo pessoal

"Para discutir produção de conhecimentos científicos, tem que discutir dentro do capitalismo e sem pessoalizar. Se é uma mulher branca escrevendo sobre mulheres negras, a chance é maior dela publicar do que eu", critica a professora, que liderou a publicação do Catálogo Intelectuais Negras Visíveis, que reúne 153 profissionais e foi construído por mulheres negras. "Tem essa ideia de que conhecimento tem que ter distanciamento e temos uma perspectiva diferente. Você é o que escreve. Cada um tem uma forma de articular a terceira pessoa e isso não apaga as subjetividades. E, como gostaríamos de sermos vistas e representadas, só quem pode dizer são mulheres negra. As outras pessoas só podem imaginar."

"Se é uma mulher branca escrevendo sobre mulheres negras, a chance é maior dela publicar do que eu"

Goulart diz que, nos debates, surgiu bastante o apontamento em relação a quem financia a pesquisa e que muitos acadêmicos não refletiam sobre isso. Para ele, é preciso uma mudança na forma de pensar nas universidades, que não crie hierarquia sobre o conhecimento e questione, sem validar sempre o que está no poder.

"A grande questão é: pra que tanto interesse na favela? Isso tem que permanecer latente, por mais que tenha diálogo bacana e horizontal. Se conseguirmos construir que essas pesquisas discutam privilégios até de quem pesquisa, podemos conseguir perspectivas que vejam a favela de outra forma", defende.

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