A praça da Cinelândia, mais especificamente a esquina entre a Câmara Municipal e o Teatro Municipal, é um tradicional palco de atos políticos e culturais no centro do Rio de Janeiro. No final da tarde de quarta dia 14, um grupo de cinquenta pessoas reuniram-se para a exibição de um episódio da série Desde Junho da diretora Julia Mariano. Seguido a exibição esse grupo que continha personagens e ativistas das Jornadas de Junho, assim como membros de diversas causas e movimentos sociais passaram a um debate aonde os desdobramentos e consequências daquele período foram logo substituídos por uma pauta muito mais urgente – a intervenção federal no Rio de Janeiro e a iminência de novas violações de direitos humanos como ocorrido em prévias ações militares na cidade. Com um mês de ocupação, ainda não havia tido nenhum ato substancial para criticar a intervenção, “vai ter de acontecer alguma merda pro povo ir às ruas”, foi uma frase repetida de diversas formas por várias pessoas. Ninguém imaginava que horas depois dessa reunião, não muito longe dali a tal merda aconteceria – o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes.
Foi uma madrugada de pesar para ativistas e as dezenas de milhares de cidadãos que votaram em Marielle, e a partir das onze horas da manhã de quinta feira as escadarias da Câmara Municipal estavam lotadas de pessoa simpatizantes da causa de Marielle, sobretudo mulheres negras como ela. Canções feministas e palavras de ordem contra a intervenção e a truculência a Polícia Militar se revezavam com discursos de lideranças e parlamentares do PSOL, assim como membros de diversos movimentos sociais. Por volta das 13h, foi organizada uma corrente humana composta apenas de mulheres negras, para abrir o caminho dos caixões de Marielle Franco e Anderson Gomes, carregados por seus colegas parlamentares do PSOL. Os corpos foram velados dentro da câmara, em cerimônia fechada a familiares, colegas e amigos, enquanto a praça não parava de receber mais pessoas que seguiram em vigília, até por volta das 16h30 quando caminharam até a ALERJ, onde um ato havia sido convocado para as 17h.
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Alguns comércios fecharam e bancos se apressaram para cobrir suas vitrines de tapumes. Desnecessário, embora a indignação e a revolta estivesse estampada em cada olhar naquela massa que lotava o centro da cidade o sentimento predominante era de luto e respeito. Não há números oficiais do ato, a Policia Militar fez a sábia decisão de não comparecer, evitando assim possíveis conflitos. Multidões de cariocas lotaram as ruas sem medo, “tentaram matar a luta da Marielle, mas só a multiplicaram”, foi uma das várias frases esbravejadas nos carros de som.
Ativistas do Complexo da Maré e do Alemão que participavam do Fórum Social Mundial de Salvador voaram de volta à cidade para somar ao ato. Moradores da favela e do asfalto, estudantes, quilombolas, indígenas, LGBTs, antiproibicionistas, parlamentares, artistas e até o Chico Buarque eram só mais um no meio dessa multidão unida pelo luto à morte de Marielle e contra todos seus algozes; o racismo e machismo institucional, a truculência e impunidade policial, a criminalização da pobreza e a fracassada guerra às drogas.
Em um mês de intervenção federal, o General Rubens Braga não foi capaz de frear o tráfico de drogas nem mesmo em seu “laboratório” na Vila Kennedy. Tampouco foi capaz de diminuir o índice de homicídios, inclusive contra policiais. Também foi incapaz de prever o assassinato de Marielle Franco, que conta com cada vez mais indícios de crime político. Na manhã do dia 16 foi revelado pela Delegacia de Homicídios do RJ que as munições utilizadas foram fornecidas pela CBC a Policia Federal de Brasília, essa informação leva a pelo menos dois preocupantes cenários, os executores seriam da PF, ou a munição teria sido desviadas do órgão. Ainda assim o governo federal insiste em generalizar o “cenário de violência” do Rio como responsável pelo assassinato.
Entidades e governos de todo mundo se manifestam em solidariedade a Marielle, enquanto novas manifestações estão sendo marcadas por todo país. A solução, ou não, do caso está nas mãos das polícias, mas a população do Rio de Janeiro deixou uma coisa clara ontem; o medo não vencerá, e em cada comunidade ou bairro onde houver injustiça e barbáries, haverão novas Marielles para denunciar.