Este artigo foi originalmente publicado na edição de Agosto da VICE Magazine.
Antes de um monte de yuppies ter tomado conta das ruas de Manhattan, os reis eram estes miúdos. Estávamos nos anos 90. Eram um bando de adolescentes oriundos de bairros diferentes,sem um tostão no bolso, que se juntavam em East Village. Highlyann Krasnow, conhecida como High, vivia em St. Marks Place.
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A mãe dela era descontraída e o apartamento onde viviam tornou-se o sítio principal onde o grupo comia e, muitas vezes, dormia. Fumavam erva, bebiam 40s, com as garrafas enfiadas dentro de sacos de papel castanhos, faziam festas em terraços no topo de edifícios e andavam de skate em Washington Square Park.
Foi aí que Leo Fitzpatrick, Justin Pierce e Harmony Korine conheceram Larry Clark. Mais tarde, o mundo deles viria a ser partilhado com milhões de espectadores. Tornaram-se famosos ao protagonizarem Kids, o clássico filme de culto, que Clark realizou em 1995 e que, de uma forma desassombrada, olhava de frente para uma versão ficcionada das suas vidas.
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Nova Iorque mudou nos anos 90, depois de Giuliani “limpar” a cidade. Mas, antes dessa época, High, a sua amiga Mel Stones e o resto da “crew” viveram uma vida de descontrolo absoluto. “Quando tinha 14 anos, no meu bairro era muito simples comprar cerveja, ou qualquer outra bebida, erva, coca ou até cavalo. Podíamos entrar nas discotecas e os comboios eram bastante rudimentares”, escreve Mel em That’s a Crazy One, um livro de fotografias que será lançado em breve e que tem curadoria sua e de High.
Nenhuma delas entrou em Kids, mas os seus amigos entraram e foi a sua cultura e a sua comunidade que Larry Clark procurou captar. O filme olhava directamente nos olhos da cultura juvenil da cidade e descrevia um modo de vida alternativo, feito de sexo explícito, consumo de drogas e violência. Apesar de Kids ter mostrado algo que parecia importante, porque parecia ser real, High e Mel dizem que de real não tinha nada. Na verdade, elas acham que acabou por ser explorador e que Clark capitalizou no brilhantismo do grupo, ao mesmo tempo que falhou em captar a verdadeira beleza do seu mundo.
Para começar, não eram tão sexualmente depravados como o filme dá a entender. Depois, e mais importante, em Kids parece que tudo o que os rapazes querem é foder com as raparigas, mas, na vida real, elas não eram, de todo, simples conquistas sexuais. Rapazes e raparigas andavam lado a lado e eram todos melhores amigos uns dos outros.
Mais de 20 anos depois de Kids, High e Mel fizeram uma selecção de fotografias que tiraram ao grupo no início dos anos 90. “Eu e a High fotografámos os nossos amigos durante praticamente toda a adolescência e acabámos por criar este retrato gigante daquilo que muitos tentaram captar a partir de fora”, escreve Mel, na introdução à série. Estejam deitados na cama a fumar cigarros, ou de roupa interior abraçados uns aos outros, esta colecção de imagens, crua e carregada de vulnerabilidade, é íntima e claramente saída do interior do grupo.
Essa condição pessoal fez com que elas próprias tivessem hesitado bastante antes de avançarem com o projecto. Mas, por outro lado, também tinham a noção da sua importância. A foto de uma miúda com botas da tropa, camisa de flanela XL, calças de ganga rasgadas e tábua de skate debaixo do braço é a imagem icónica da desilusão e angústia adolescentes, que pertence a todas as gerações.
Os anos de adolescência destes jovens foram os últimos de uma expressão cultural que nunca morreu nas nossas cabeças. Naquela altura a cidade não estava amordaçada. Era crua e perigosa e, para High, Mel e o resto do grupo, era divertida. Enquanto hoje qualquer acto de rebelião adolescente é automaticamente postado no Instagram, estes miúdos nunca se acomodaram. O grupo era uma família. Passavam os dias juntos, a rodar ganzas e cigarros e a beber café para adiarem a ida para as respectivas casas. “Estávamos onde era suposto estarmos”, escreve Joanna, também parte do grupo. E acrescenta: “Éramos quem era suposto sermos”.
Hoje em dia, a intersecção de St. Marks com a 1st Avenue é, para eles, um local culturalmente irreconhecível. Mas, enquanto as pessoas, as lojas, o valor das rendas podem ter mudado, aquela esquina mantém uma certa imortalidade. Vai manter-se ali enquanto a cidade existir, um lembrete eterno de quando as suas vidas de cruzaram, tal como se cruzam aquelas ruas. Essas memórias, apesar de importantes, nem sempre são fáceis. “A realidade é que alguns de nós safaram-se, outros afundaram-se e alguns estão ainda numa espécie de limbo”, descreve Mel.
Falam de “amigos que não se safaram. Meteram-se por encruzilhadas que acabaram por lhes custar a vida”. Alguns foram arrastados para as águas profundas do vício, da pobreza, ou até da pressão de Hollywood. Justin Pierce, por exemplo, protagonizou Casper em Kids e continuou a fazer filmes nos anos seguintes, mas em 2000 suicidou-se num quarto do Hotel Bellagio, em Las Vegas. “Quero que as pessoas saibam que, para além de tudo o que possam ter visto no ecrã, eras um amigo ferozmente leal”, escreve-lhe Mel agora. Ao telefone, ela diz-me que tudo mudou depois da morte de Pierce. Ele era a força que mantinha o grupo unido e à tona de água e o seu desaparecimento levou a que alguns deles endireitassem a sua vida, mas para outros teve o efeito oposto.
Através desta fotos podemos voltar à adolescência deles, testemunhar uma parte da vida de um bando de jovens cujo maior bem era a certeza de saberem quem eram. Fariam o que fosse preciso para se ajudarem uns aos outros, mas que, ao mesmo tempo, por vezes eram incapazes de se ajudarem a eles próprios. Não importa quando, ou onde aconteceu, crescer pode ser uma experiência brutal. Aqueles anos parecem ser eternos, mas um dia, de repente, acabam e a tua liberdade esvai-se. Os amigos ainda fazem parte da vida uns dos outros, mas é algo que requere esforço. As vidas seguem por caminhos diferentes e às vezes demasiado distantes para ser possível voltar a uni-las. Quando Mel e High se juntaram àquele grupo foi uma coisa natural, tal como o foi quando todos se separaram.
Os lucros da venda de “That’s a Crazy One”, serão doados na íntegra ao Programa de Fotografia e Arte das Escolas Públicas de Nova Iorque.
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