O massacre de Columbine praticado em 1999 nos Estados Unidos teve um impacto não só nos crimes posteriores da mesma natureza, que viraram algo comum no país, como também infelizmente deixou uma marca na cultura pop e no que hoje entendemos por juventude dos anos 2000. Com uma cobertura midiática sensacionalista, os atiradores viraram herois para alguns jovens de gerações seguintes. Detalhes do crime e da vida pessoal de ambos são esmiuçados no Tumblr e outros fóruns digitais até hoje pelos “columbiners“, nome dado aos integrantes do fandom da dupla.
Era difícil saber as reais intenções dos atiradores de Columbine para terem orquestrado um atentado tão organizado como aquele, o que deu vazão para que alvos fáceis fossem nomeados por políticos e pela imprensa, já que questões profundas geralmente não costumam cativar muito a audiência. No caso de Columbine, a música que os atiradores escutavam (Slayer e Marilyn Manson) e principalmente os jogos Doom e Quake foram apontados como os grandes culpados pelo terrorismo juvenil.
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Com o massacre em Suzano, essa retórica que culpabiliza diretamente os jogos eletrônicos à violência infelizmente surgiu com mais rapidez do que um pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a tragédia. Em uma coletiva, o vice-presidente Hamilton Mourão lamentou o atentado que vitimou 10 pessoas (incluindo os responsáveis), e partir para culpar os videogames. “Jovens estão muito viciados em videogames violentos”, disse.
A declaração gerou uma série de discussões bastante acaloradas sobre se jogos violentos podem transformar uma pessoa em assassina. Falando a real, resumir todo o atentado em Suzano ao fato de que os responsáveis frequentavam lan houses e gostavam de Counter Strike é virar a cara para a complexidade da nossa sociedade, onde a violência é corriqueira.
Após a declaração de Mourão, a pesquisadora e professora universitária Beatriz Blanco postou uma thread bem elucidativa no Twitter questionando se a culpabilização de jogos eletrônicos realmente seria efetiva para discutir o caso de Suzano. Em uma entrevista à VICE, Blanco disse que o pânico moral em volta de jogos eletrônicos já rolava desde 1976, mas foi em 1993, quando o senador democrata Joseph “Joe” Lieberman promoveu uma cruzada política contra a violência em jogos, especialmente os títulos Night Trap e Mortal Kombat. Dentre as milhões de tretas que essa discussão gerou, as perguntas mais complicadas não foram respondidas: videogames realmente podem virar a chave na cabeça de uma pessoa ou não seria mais o conjunto de elementos sociais em que uma pessoa está inserida?
“Mais uma vez, a causa da polêmica não foi Columbine, mas o sucesso de jogos como Mortal Kombat e Night Trap, associado a propostas pró restrições de armas de Bill Clinton”, conta a pesquisadora. Isso gerou um efeito contrário. Os jogos citados, especialmente Mortal Kombat, venderam como água. Se o senador queria afastar a juventude noventista dos games violentos, fez exatamente o contrário.
Em 1999, o assunto veio à tona novamente com Columbine e, anos depois, mais uma vez os jogos viraram bode expiatório em 2011 com o atentado deAnders Behring Breivikem Oslo, Noruega. O motivo? O atirador mencionou como alguns jogos como World of Warcraft e Call of Duty: Modern Warfare 2 o ajudaram a organizar o ataque que vitimou 76 pessoas. Visto que a cobertura de Columbine contribuiu muito mais para uma idealização dos atiradores do que entender friamente o que os levou a esse ato, fica a questão: nós estamos repetindo os mesmos equívocos do passado?
“É um erro considerar os games sem levar em conta sua inserção no sistema midiático hoje, em que temos vários produtos culturais violentos com interações complexas entre eles”, explica Beatriz. “Não é uma relação de causa e efeito.”
De fato, existem videogames que reproduzem misoginia e outros aspectos da masculinidade tóxica que permeia nossa sociedade. Inclusive, o questionamento da misoginia descontextualizada em jogos levantado pela crítica feminista Anita Sarkeesian gerou uma onda de ódio da comunidade gamer masculina que a atacou.
A questão do poder que alguns jogos têm de agregar pessoas talvez seja algo mais interessante de se discutir, segundo Blanco. “Os jogos digitais são um grande agregador de comunidades online que, em alguns casos, acabam resultando em grupos que procuram escapismo em fantasias de violência. Eu acredito que é mais produtivo olhar para o potencial dos games nesse sentido, em vez de simplesmente culpá-los por esses casos”.
No caso de Suzano, há grandes suspeitas de que os responsáveis tenham recorrerido a um grupo de ódio em busca de dicas para promoverem o atentado. Embora seja possível que os responsáveis pelo atentado possam ter descoberto o fórum através de comunidades online, outras milhares de pessoas jogam exatamente os mesmos jgos e não mantém contato com comunidades misóginas virtuais.
Não se deixe enganar: quando o assunto violência acaba virando videogames, geralmente a intenção (proposital ou não) é obscurecer uma discussão mais ampla e cara ao status quo. Por que existe um interesse tão grande em impedir a discussão de gênero nas escolas? Por que não há tantos profissionais capacitados para discutir o potencial da masculinidade tóxica nos jovens? Por que a imprensa subestima o poder de influência da publicação de vídeos de atentados? A influência da mídia é maior ou menor do que a dos games? Essa comparação é possível?
“O consumo de mídia violenta é um fato entre jovens de hoje. Reprimir é bobagem. Devemos fortalecer uma crítica de games que tenha condições de conversar sobre o tema sem descontextualizar ou paternalizar os jovens. (…) Nós assistimos e debatemos filmes muitas vezes violentos na escola, para pensar sobre eles. Por que não fazer isso com jogos?”, diz Blanco.
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