Violência, crack e preconceito na maior reserva urbana indígena do Brasil

“Matei um indivíduo que estuprou minha irmã de 11 anos e não tive reação de perdão com ele. Minha mãe é viúva e não sei quem é meu pai verdadeiro. Além de estuprar, o cara quebrou o braço dela. O rapaz não era indígena, mas morava na aldeia. Éramos nove irmãos.

O dia que fiz coisa errada nele foi quando ela chegou em casa com o braço quebrado e as pernas cheias de sangue. Aquilo foi cruel. Antes do homicídio tinha bebido vinho e oito cápsulas de carbamazepina 200 mg. O remédio era para aumentar o álcool, que não me fazia mais efeito. Peguei 26 anos por homicídio e depois mais 7 anos por tráfico de 200 gramas de maconha. Minha cadeia é de 33 anos”.

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O depoimento é da kaiowá e trans Tainá Gonçalves Juca, 31 anos. Ela cumpre pena na Penitenciária Estadual de Dourados (PED), cidade na faixa de fronteira do Brasil com o Paraguai, a 225 kg da capital, Campo Grande (MS).

A kaiowá Tainá, 31, cumpre pena na Penitenciária Estadual de Dourados. Foto: Paulo Renato Coelho Netto/VICE

Dos 262 índios encarcerados em Mato Grosso do Sul, 127 estão na PED, segundo a Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário). É a maior concentração de indígenas presos no Brasil.

São tantos, que o presídio reservou um pavilhão praticamente para eles. Os índios ocupam onze celas exclusivas no Raio 1. Superlotada, a penitenciária tem 2.306 presos, mais de três vezes sua capacidade, 726 prisioneiros.

A maioria dos internos é da Reserva Indígena de Dourados, a maior reserva urbana do país, formada pelas aldeias Jaguapiru e Bororó. Fica apenas a 5 km da Praça Antônio João, no centro da cidade.

De acordo com a Funai (Fundação Nacional do Índio), vivem na área 15.518 mil nativos das etnias Guarani-Kaiowá e Terena. O local tem 3.520 hectares, equivalente a 3.520 campos de futebol.

A história violenta de Tainá não é melodrama e faz parte do cotidiano dos índios douradenses. Cheguei à cidade no dia 3 de abril, data do velório de Bruna Peixoto, 22 anos, moradora da aldeia Jaguapiru. Após cinco dias desaparecida, seu corpo foi encontrado com marcas de violência e parcialmente sem roupas em um milharal na aldeia Panambizinho. Há suspeita que tenha sido estuprada.

“As drogas não escolhem a cor da pele ou o nível social das pessoas. Elas vêm, entram e fazem um estrago. Na comunidade indígena não é diferente. A droga chegou pela facilidade de acesso.”

De acordo com a Agepen, os índios da PED são em sua maioria jovens de 18 a 30 anos (60). Eles respondem por tráfico, homicídio, latrocínio, estupro, roubo, lesão corporal, associação criminosa e furto. A maioria por tentativa de homicídio (46), seguida de crimes sexuais (39) e tráfico (18).

“Na aldeia tudo hoje é civilizado. Só de olhar você vai ver muita coisa feia. O que mais entra lá são drogas e bebidas, sem contar a prostituição de meninas Guarani-Kaiowá de 10, 12 anos”, conta Tainá. Ela diz que se nada for feito para controlar o abuso de substâncias lícitas e ilícitas nas aldeias Jaguapiru e Bororó, em breve o presídio de Dourados vai lotar só de índios.

“Aqui virou Cracolândia”

O crack é a droga mais consumida na reserva, revela o cacique terena Izael Morales, 43 anos, capitão da aldeia Jaguapiru. Durante a entrevista, ele tira da gaveta e mostra ao repórter um cachimbo para fumar crack apreendido com adolescentes indígenas.

A pedra é vendida a R$ 10 na reserva. Para comprá-la, os meninos cometem furtos e roubos à mão armada. A preferência é por celulares, relógios, eletrodomésticos, televisões, bicicletas e motocicletas, principalmente. Os adolescentes, segundo o cacique, praticam os delitos sob o efeito de crack e armados com faca ou facão. “A droga deixa a pessoa doida. Se a vítima reagir morre”, conta.

Segundo Morales, muitos índios com idade entre 10 a 23 anos estão comprometidos com algum vício. “Essa geração nasceu convivendo com porcarias aqui dentro. O que nós queremos é salvar os pequenininhos, de 5, 6 anos, para eles não se transformarem nos jovens que temos hoje. Aqui virou cracolândia”, revela.

De acordo com o cacique, há desmanches e pelo menos 25 pontos de tráfico nas aldeias. Ele conta que o local se transformou em ponto de entrega, estoque, consumo e venda de drogas para os nativos e moradores de Dourados. “Entra carrão aqui à noite. Muitas autoridades sabem. A gente denuncia e eles dizem que precisam de provas. A justiça é devagar”, lamenta.

A cachaça, outro problema grave, é vendida livremente nos bares das aldeias. Um saquinho plástico com 400 ml custa R$ 3,50.

Cacique terena Izael Morales, capitão da aldeia Jaguapiru. Foto: Paulo Renato Coelho Netto/VICE

“Meu pai era alcoólatra. Foi preso na PED por porte ilegal de arma e identidade falsa. Hoje está separado da minha mãe. A geração antiga bebia. Hoje os jovens se drogam. Cumpro medida socioeducativa na Unei (Unidade Educacional de Internação Masculina) por tráfico, assalto a mão armada e tentativa de latrocínio. É a terceira vez que estou aqui. A primeira foi aos 14 anos. Já fui preso no interior de São Paulo, em 2016, levando uma carga de 250 quilos de maconha para São José do Rio Preto. Tinha 16 anos. Dirigi mais de 800 quilômetros sozinho por rodovias federais e ninguém me parou. Passei por quatro postos policiais.”

O depoimento acima é do índio guarani L.F, 17 anos, nascido na Reserva Indígena de Dourados. Ele buscava drogas em Ponta Porã (MS), na fronteira do Brasil com o Paraguai, para vender nas aldeias e no Cachoeirinha, um bairro douradense conhecido, até pouco tempo, como um dos principais pontos de narcotráfico da cidade. O garoto chegou a alugar uma casa para traficar.

Ele conta que é fácil comprar drogas na reserva. “Já vi criança de 11 anos fumando maconha na aldeia. Tem guri de 10 anos bebendo pinga lá dentro. Se alguém com cinco anos quiser comprar bebida eles vendem”, conta o menor.

Tráfico

De acordo com o Coordenador Regional da Funai em Dourados, Fernando da Silva Souza, 50 anos, falta policiamento nas aldeias Jaguapiru e Bororó. De etnia terena, Souza nasceu e mora até hoje na reserva.

“As drogas lícitas e ilícitas não escolhem a cor da pele ou o nível social das pessoas. Elas vêm, entram e fazem um estrago. Na comunidade indígena não é diferente. A droga chegou pela facilidade de acesso. A reserva é aberta, um reduto que facilita arregimentar principalmente os jovens para a prática desses ilícitos. O traficante chega, torna essas pessoas viciadas e agentes para trabalhar para o narcotráfico. Outro fator é que não existe fiscalização de forma continuada, seja pelos órgãos de Segurança Pública ou a Polícia Federal. É um campo minado para ser explorado pelo tráfico.”

O problema da droga está se agravando nos últimos cinco a dez anos, segundo o coordenador. As mais usadas são maconha e o crack. “Nós, índios, somos cidadãos brasileiros também e é com esta postura que reivindicamos uma ação efetiva e continuada da Polícia Militar nas aldeias. Todo mundo sabe onde ficam os principais pontos de vendas de drogas na reserva, até a comunidade local”, diz Fernando Souza.

Localizada na faixa de fronteira com o Paraguai, a Reserva Indígena de Dourados está no olho do furacão do narcotráfico. Pelas rodovias e estradinhas não pavimentadas do Estado circulam toneladas de drogas, principalmente maconha, cocaína, haxixe, crack e pasta base.

De acordo com a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul (Sejusp), as apreensões de maconha em 2017 no Estado totalizaram 423,4 toneladas, um aumento de 43% em relação a 2016.

Apartheid

Na opinião do coordenador da Funai, existe um apartheid do douradense e da população sul-mato-grossense em relação ao índio. “Tem bairro de classe média alta em Dourados, com câmeras voltadas para as ruas, que eles colocam no grupo ‘tem índio na área’. Isso é apartheid, é mais que preconceito. É como se o índio fosse um lixo da sociedade: ‘está passando aí, se cuida’.”

O que existe, para ele, é uma negação de direito de forma geral, como educação básica para atender as aldeias. “Temos muitas crianças que deveriam estar escola e não estão porque não há vagas. Quem não estuda fica desocupado na rua e acaba virando presa fácil para ser cooptado pelo tráfico” diz.

Com bolsa de estudo, Fernando Souza se formou em administração de empresas pela Unigran (Centro Universitário da Grande Dourados), fez pós-graduação em Metodologia de Ensino Superior e Gestão de Políticas Sociais. Agora se prepara para mestrado em sociologia ou antropologia. Tem irmãs formadas em pedagogia e biologia.

Na reserva, entre outros, há índios graduados em assistência social, psicologia, direito, nutrição, educação física, matemática e análise de sistema. Os professores que lecionam nas aldeias Jaguapiru e Bororó são indígenas, 90% têm nível superior completo, segundo a Funai.

De acordo com Fernando Souza, quando se oferta educação, naturalmente, a droga perde espaço. “A própria comunidade sabe o que é melhor para ela. Quando alguém vê um igual progredindo honestamente ele vai querer a mesma realidade também”, observa.

Avó e neta na Reserva Indígena de Dourados. Foto: Paulo Renato Coelho Netto/VICE

“Chiqueirinho”

“A reserva é uma bomba relógio. A única coisa que a gente sabe é que eventualmente ela vai explodir. É uma questão de tempo para dar problemas mais graves lá dentro”, prevê Matias Benno Rempel, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário Regional MS). O missionário entende que só com o processo de demarcação — e os indígenas voltando para suas terras de origem —, é que vão diminuir os problemas, em especial em relação à juventude e às drogas entre os Guarani-Kaiowá e Terena.

Para Rempel, drogas e álcool não são exclusividades das aldeias de Dourados e estão presentes nas oito reservas de Mato Grosso do Sul, onde vivem aproximadamente 45 mil índios.

“Se você tem problemas similares em todas essas áreas, você tem um problema de Estado. A reserva é o fim da experiência mal sucedida entre o Estado e os povos indígenas. Os índios usam as palavras chiqueirinho e confinamento para se referir a esses lugares”, revela.

Indiferença hostil e descaso público

O Ministério Público Federal (MPF) e as Defensorias Públicas da União e do Estado de Mato Grosso do Sul ajuizaram ação civil pública, com pedido de liminar, para que os governos Federal, Estadual e Municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao uso de drogas na Reserva Indígena de Dourados (MS). Até junho deste ano as autoridades devem apresentar ao MPF as primeiras decisões neste sentido.

Na ação, ajuizada em 18 de dezembro do ano passado, os autores afirmam que os entes estatais têm sido omissos quanto aos deveres constitucionais e legais de tutela à vida e à saúde da população indígena de Dourados.

Em 2015, enquanto a média brasileira foi de 9,6 suicídios por 100 mil habitantes, a mesma taxa entre os indígenas foi de 89,92 — número sem paralelo nem entre os países com maiores índices do mundo.

De acordo com o MPF, o descaso reflete nos índices de violência. Entre 2012 e 2014 o Brasil teve taxa média de 29,2 homicídios por 100 mil habitantes. Em Mato Grosso do Sul, a taxa foi de 26,1.

Entre os indígenas sul-mato-grossenses este número subiu para 55,9. Já os nativos da reserva douradense enfrentam uma taxa de homicídios de 101,18 por cem mil habitantes. Os índios de Dourados morrem por homicídio a uma taxa quase 400% superior aos não indígenas do Estado.

Na saúde, o MPF aponta para questão do suicídio entre os Guarani-Kaiowá de Dourados. Em 2015, enquanto a média brasileira foi de 9,6 suicídios por 100 mil habitantes, a mesma taxa entre os indígenas foi de 89,92 — número sem paralelo nem entre os países com maiores índices do mundo. A maioria das mortes, por enforcamento, foi entre as pessoas de 15 a 29 anos.

O procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida trabalha há dez anos em Dourados. Ele conta que os problemas que envolvem os indígenas da reserva só aumentaram com o tempo. “A Penitenciária Estadual de Dourados tem 127 índios presos agora. Quando cheguei à cidade eram 40 índios detidos. Se pegar isso daqui a dez anos a gente vai ter 400. Daqui a pouco serão 10%, 15% da população indígena presa”, acredita.

De acordo com o procurador, não existem dúvidas sobre qual polícia deve combater o tráfico nas aldeias: todas. “Não é estadual ou federal. Lá é o cidadão brasileiro que tem que ter segurança pública. Não há a mínima dúvida que determinados crimes vão ser apurados pela polícia estadual e outros pela esfera federal”, diz.

Nas cidades, explica Almeida, trabalham tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Federal. “Agora, em relação às comunidades indígenas há isso: lá quem atua é a Polícia Federal. Lá quem atua é a Polícia Militar”.

Outro lado

Questionada sobre o combate ao narcotráfico na Reserva Indígena de Dourados, a assessoria de imprensa da Polícia Federal informou, por telefone, que por se tratar de uma reserva urbana o policiamento não é de sua competência. A Sejusp informou que “a segurança nas aldeias indígenas é uma questão federal”. Sobre o problema, o Ministério dos Direitos Humanos disse que as informações deveriam ser buscadas junto ao Ministério da Justiça, “tendo em vista que não possui nenhuma informação ou atuação específica com relação às temáticas tratadas na demanda”. A Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), ligada ao Ministério da Justiça, não retornou à reportagem.

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