​Vocês deveriam parar de dar moral para textão de gringo sobre o Brasil


Todo ano é a mesma coisa. Basta um evento de grande porte (como a Copa do Mundo ou o Carnaval), para que o turismo no Brasil se intensifique e as ruas do país fiquem lotadas de gringos loucos para desfrutar todos os estereótipos possíveis— de turismo sexual até caipirinhas em orla da praia. Se fosse só isso tudo bem, o problema é que junto vem os tais textões de gringos prometendo contar grandes verdades sobre o país em alguns parágrafos e que eles são compartilhados em velocidade recorde nas redes sociais.

O último, esse tal de Carta Aberta ao Brasil , é apenas mais um desses textos propositalmente virais pra alguns brasileiros choramingões postaram em suas devidas páginas pessoais com legendas tipo “#faloutudo”, “só li verdades” ou o deplorável “esse gringo sabe mais que a gente”. O autor, Mark Manson, um caçador de cliques da pior categoria possível, conseguiu transformar o meme “nada acontece feijoada” em um cansativo artigo sobre como o Brasil é lindo, como ele conhece tanto sobre a nossa cultura e como, veja você, o problema é a gente mesmo.

Videos by VICE

Gostaria de estar exagerando sobre o escritor, mas o site dele é um pout-pourri de autoajuda e uma plataforma para ele vender seus cursos motivacionais, um deles é de paquera. Ou seja, ele é um Pick-up Artist ( PUA). Isso, por si só, já é motivo suficiente para invalidar a argumentação dele logo de cara. Mas OK, vamos prosseguir.

Em alguns parágrafos, Mark conseguiu surfar em praticamente todos os clichês do gringo prepotente que se acha melhor que os países que visitou. Ele começa com “eu também vim para cá pela primeira vez em busca de festas, lindas praias e garotas”, passa por “eu tinha muitas teorias sobre o sistema de governo, sobre o colonialismo, políticas econômicas”, fica um bom tempo discutindo como nós somos vaidosos e fica na sua longa conclusão sobre como “o ‘jeitinho brasileiro’ precisa morrer”.

Se Mark enxergasse um palmo à frente da sua caipirinha, ele saberia que essa história de ficar escrevendo carta é bem flopada depois do evento Michel Temer. Ele também saberia que resumir sua experiência pessoal entre seus amigos brasileiros não reflete nem 1% da experiência completa do que é o Brasil. Inclusive, eu mesma, trancada na minha bolha de São Paulo, sei que não tenho essa experiência.

Manson, infelizmente, continua dizendo que não há consciência social entre os brasileiros. Já que todos os gringos são pessoas lindas e caridosas que jamais passariam a perna em ninguém. Nós, por outro lado, somos desonestos e seremos pobres para sempre porque jamais largaremos o tal jeitinho brasileiro.

Claro que Mark Manson prefere não enxergar que o racismo e o privilégio branco no país dele existem — inclusive são questões discutidas constantemente por lá. Certamente, não é por acaso que o PUA resolveu ignorar o histórico de escravidão do seu país e Ferguson no seu iluminado texto. Convenientemente, ele também não citou em nenhum momento a escravidão de índios e de negros no Brasil, característica inegável do colonialismo. Ah é, verdade. Ele “tinha muitas teorias sobre o colonialismo”, mas já passou. Ele também pouco pensou mencionar que o Brasil é uma mistura de povos, onde a miscigenação na época da colônia foi fruto do estupro de índias e de mulheres negras por parte dos nossos colonizadores. Claro, ele prefere não enxergar isso e tratar as mulheres brasileiras como uma das commodities do nosso país, porque a visão dele de gringo, branco e mala não consegue fazê-lo enxergar além disso. Ah sim, claro, ele está casando com uma brasileira. Que favorzão.

O que esse caçador de cliques não se tocou é que ele está simplesmente discutindo o mesmo tipo de discurso que, olha só, a elite brasileira gosta também de berrar por aí. É uma repetição do discurso cagado de meritocracia e um elitismo tão cansativo que não me surpreende que foi preciso um textão em inglês para que essas pessoas dessem mais credibilidade aos seus próprios discursos.

Ao contrário de Manson, existe um homem chamado Darcy Ribeiro que passou 30 anos (ISSO MESMO, 30 ANOS) pesquisando sobre a origem do Brasil, gerando a obra O Povo Brasileiro. O livro tem centenas de páginas e uma pesquisa riquíssima sobre o país, porém foi preciso uma única consulta no livro e apenas dois parágrafos para derrubar o textão do gringo:

“Fala-se muito, também, da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às classes dominantes viciosas. Tudo isso é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial, incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo que se verificou na América do Norte, por exemplo. A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos no atraso.

As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino em busca de sua própria felicidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.”

Para os brasileiros que compartilharam o texto lambendo o saco desse cara, peço que vocês pensem um pouco. Por que vocês tanto buscam uma validação do exterior? Até que ponto os países que vocês tanto veneram e dizem ser perfeitos em comparação ao Brasil são tão maravilhosos assim?

Não basta uma viagem, seis meses de intercâmbio ou um curso no exterior para saber exatamente o que se passa com um país. Eles também moram numa nação complexa e carregada de problemas, assim como nós. O Brasil certamente tem inúmeras questões que precisam ser resolvidas e, inclusive, discutidas, mas por que vocês precisam ser tão vira-latas e cheios de complexo de inferioridade para comparar o seu país com os outros? Por que aceitar tão cegamente a palavra de um cara tão imbecil cuja única comparação que poderia receber é com o inglês que usa a mesma fantasia há três dias e já nem sabe o que está bebendo?

Foto por Felipe Larozza publicada originalmente aqui.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.