​Este jogo sul-coreano te coloca na pele de um delator
Com clima tenso e críticas à vigilância, Replica questiona a naturalização do terrorismo de Estado. Crédito: Somi

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

​Este jogo sul-coreano te coloca na pele de um delator

Com clima tenso e críticas à vigilância, Replica questiona a naturalização do terrorismo de Estado.

Você pensa duas vezes sobre o que posta nas redes sociais? Compartilha conteúdos políticos ou protesta online? No caso da maioria das pessoas, uma busca rápida é capaz de revelar quantidades assustadoras de informação. Somada às estruturas de vigilância que vem sendo instaladas em diversas cidades do mundo, esta exposição pode não ser nada saudável para quem pensa diferente do poder. Para o desenvolvedor sul-coreano Da Som Jeon "Somi", uma forma de resposta e resistência pode acontecer por meio da criação de games, como podemos ver em seu último trabalho, o game Replica.

Publicidade

Indicado ao prêmio de melhor narrativa do BIG Festival de 2016, o jogo para computador te coloca na desconfortável posição de investigar o smartphone de um possível terrorista. Toda história é contada ali dentro, no aparelho, por meio de trocas de mensagens, ligações telefônicas e posts em redes sociais. O clima é sério, quase soturno: enquanto você vasculha pistas do suspeito, é vigiado e qualquer clique no lugar errado pode transformar no próximo a ser acusado. A trilha sonora depressiva ajuda a colocar a dúvida se o que você faz é certo ou errado.

O jogo simula a interação com o smartphone de uma forma bastante interessante. Para ajudar na imersão e tornar a experiência visualmente mais crível, a ponta do cursor do mouse mostra uma impressão digital. Você não está clicando, mas sim usando a ponta do seu dedo para invadir a privacidade do prisioneiro da cela ao lado.

O desafio é descobrir senhas cruzando informações, consultando mensagens e fotos, enquanto um oficial da Segurança Nacional cobra resultados e discrição. E é melhor atender aos seus pedidos e provar que o suspeito é culpado, já que sua família está sob custódia dele. Comunicar-se com a mãe do dono do celular, que está enviando mensagens desesperadas à procura do filho, não é opção. Você não quer ser preso e a delação premiada está a poucos cliques de distância.

Apesar de fazer referências bem claras ao fascismo italiano, ao romance 1984, de George Orwell, e ao quadrinho V de Vingança, de Alan Moore, a inspiração principal do jogo é mais recente. Segundo desenvolvedor, a ideia de Replica surgiu da leitura do livro Pequeno Irmão, do escritor canadense Cory Doctorow, lançado em 2013. Nele é narrada a história de um grupo de jovens da cidade São Francisco detido após um ataque terrorista. Na obra, qualquer cidadão é visto como terrorista em potencial pelo serviço de inteligência. "Fiquei impressionado. Não por sua história ser chocante, mas porque a realidade é pior do que a retratada na obra. Pensei que poderia ajudar a mudá-la com meu jogo", declarou Somi ao Motherboard.

Publicidade

Em fevereiro deste ano a Assembleia Nacional da Coreia do Sul aprovou sua lei antiterror. O texto concede ao Serviço Nacional de Inteligência (NIS) o poder de interceptar comunicações particulares em nome da segurança. O NIS foi acusado em 2012 de manipular a opinião pública favorecendo a candidatura da atual presidente, Park Geun-hye. ONGs como Human Rights Watch e Anistia Internacional denunciaram o progressivo endurecimento das leis contra a liberdade de expressão, e a condenação do lider sindical Han Sang-Kyun a cinco anos de prisão.

Os abusos desta natureza obviamente não são uma exclusividade da Coreia do Sul. No Brasil, o aparato de vigilância montado para as Olímpiadas não faz nenhuma inveja à realidade onde o jogo se passa. Sem falar das bizarras histórias da Polícia Militar detendo jovens que criticam a corporação nas redes sociais. Ou o caso grave do policial que pressionou um suspeito a entregar sua senha do Facebook.

Embora discuta terrorismo e vigilância, Somi aponta para outra questão mais profunda em seu jogo."Quero fazer as pessoas pensarem sobre a banalidade do mal", diz. Ele destaca a necessidade de questionar e não apenas seguir ordens, caso contrário "podemos acabar como Adolf Eichmann, o principal coordenador do Holocausto."

O tema sério e o clima pesado que permeiam o jogo não o tornam uma experiência desagradável. Replica tem uma história fluída e segue uma linha muito semelhante a jogos como Paper's please e Her Story, que revelam seus segredos por meio da navegação via menus e documentos. E ele também reforça o posicionamento que é possível contar boas narrativas com mecânicas simples – não são óculos de realidade virtual ou tecnologias de ponta que definem a capacidade de um jogo ser imersivo. Arte em 8bits e um texto correndo na tela ainda podem ter sua magia mesmo 40 anos depois dos primeiros text-adventures.

É possível encontrar Replica no site itch.io e na Steam.