Manifestantes se dizem perseguidos pela polícia de SP
Foto: Felipe Larozza/ VICE

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Manifestantes se dizem perseguidos pela polícia de SP

Relatos de militantes falam em intimidação policial, grampos telefônicos, rastreamento pela internet e investigação da PM. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado nega práticas.

"Estava voltando pra casa entre meia-noite e uma da manhã, quando percebi que uma viatura passou por mim bem rápido. Na sequência, passou uma segunda viatura bem devagar e notei que eles estavam me observando. Eles me ultrapassaram e, a certa distância, ouvi um barulho de pneu cantando. A mesma viatura veio pela rua a milhão. Uma terceira viatura passou rápido. Depois disso, outra das viaturas passou bem devagar e percebi que os policiais estavam me olhando, um deles com o braço pra fora do carro batendo na porta. Fiquei parado na rua fumando um cigarro e observando. Eles aceleraram de novo, ouvi que eles estavam dando outro cavalo de pau e voltando. Entrei numa praça e me escondi na grama. Depois de um tempo, fui para uma rua perto da minha casa e, na frente de uma padaria, tinha uma das viaturas que passou por mim. Fiquei sentado lá um pouco, terminei de fumar outro cigarro e eles foram embora."

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O relato acima poderia ter sido narrado por algum perseguido político no período da Ditadura Militar, ou contado por algum velhinho que ainda tenha memória do Estado Novo ou até ser uma abordagem na quebrada mais próxima a você. Só que ela foi dita por um estudante secundarista. Bernardo* afirma estar sendo perseguido pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Ele alega que desde as ocupações do ano passado, ficou visado por sua militância, dentro e fora da escola. Aos 18 anos, ele não é o único estudante a contar histórias de ações acintosas.

Policiais Militares rondando o centro de São Paulo após uma manifestação em janeiro de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Assim como Bernardo, Valéria*, de 17 anos, estava na lista dos 26 detidos no Centro Cultural São Paulo dia 4 de setembro deste ano. Ela narra uma cena semelhante. "Desde que eu fui presa, todo dia uma viatura fica na padaria ao lado do meu cursinho. É um local em que eu vou todo dia e os dois policiais que me prenderam ficam lá observando tudo. Além disso, quando fui presa dei o endereço da casa da minha mãe, que é em outro município. No dia seguinte fui visitá-la e tinha uma viatura da PM na frente da casa", conta.

Desde que fui presa, todo dia uma viatura fica na padaria ao lado do meu cursinho.

Distante da faixa etária dos outros jovens ouvidos pela VICE, Sandra*, de 56 anos, também não está na linha de frente das manifestações e sequer enfrenta a polícia em qualquer situação, mas também diz ter sofrido perseguição por seu apoio à causa do filho. Ela conta que repetidas vezes tem sido vigiada por policiais.

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"Decidi comer alguma coisa antes de ir pra casa e parei num desses centros comerciais que tem lojas e lanchonetes. Enquanto eu estava tomando meu café e conversando com a menina do balcão, parou uma viatura na minha frente e desceram dois policiais fardados e um terceiro que não estava fardado. Este policial sem uniforme ficou ao meu lado, tão próximo a mim e me olhando a ponto da funcionária que estava me atendendo achar que ele estava comigo. Levei o café pra viagem. Saí, fui ao mercado ao lado e ele veio atrás de mim. Entrei numa seção, ele foi atrás de mim. Peguei o meu produto e fui ao caixa pagar, enquanto isso ele saiu me olhando fixamente. Neste momento, entendi que ele estava me intimidando e que nada foi coincidência."

Ocupação por alunos no colégio Gavião Peixoto, em São Paulo, novembro de 2015. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Sandra relata ainda outra abordagem curiosa. "Estava na Vila Madalena por volta de 9h da manhã. Estacionei o carro e percebi que ao lado tinha uma viatura da Rota parada na rua com as janelas abertas e todos os policiais me encarando. A primeira reação que eu tive foi de achar que estava parada em local proibido. Olhei pra placa e vi que era permitido estacionar. Nesse ponto eu comecei a tremer, porque eles não tiravam o olho de mim. Pra mim demorou uma eternidade. Liguei o carro e eles bloquearam a minha saída. Quando eu consegui sair com o carro, eles foram andando bem devagar na minha frente até que eu consegui desviar da rota deles."

Mateus*, de 31 anos, milita moderadamente em protestos e pela internet e não tem nenhuma relação com os três primeiros entrevistados desta reportagem. Ele, desde o ano passado, tem notado outro tipo de vigia, a virtual: "Tenho alguns indícios de que algumas contas minhas na internet estão sendo monitoradas. Percebi que tinham alguns logins na minha conta sendo feitos de outros lugares. O meu Facebook foi acessado em uma cidade em que eu nunca estive que é Franco da Rocha e o meu e-mail foi acessado em Carapicuíba e eu também não tinha estado na cidade naquela data. E tem mais gente sendo acessada de Carapicuíba".

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Policiais Militares vigiando alunos que faziam parte da ocupação do colégio CEFAM. Diadema, novembro de 2015. Foto: Felipe Larozza/ VICE

À primeira vista, Franco da Rocha e Carapicuíba são cidades como quaisquer outras, mas o que levanta suspeita em relação ao acesso nas contas de Mateus é que em ambos os municípios há Centros de Inteligência Policial Seccional da Polícia Civil e tais unidades não são comuns em São Paulo. Cidades como Campinas e São Bernardo do Campo, respectivamente as terceira e quarta mais populosas do estado, por exemplo, não têm tais bases.

Ele também relata algumas características incomuns registradas nos acessos. "Eu acessava o meu e-mail pelo celular e o aparelho começou a dar muitos problemas. Ele desligava do nada, perdia rede, a bateria começou a acabar em poucas horas e eu comecei a achar que poderia ser um problema ou do aparelho, ou alguma coisa diferente. Logo depois disso não consegui usar mais o celular."

Mateus*, porém, não afirma que está sendo monitorado pela Polícia Civil , mas sua dúvida já é fator decisivo para algumas precauções. Ele explica: "Fiquei muito mais cuidadoso depois disso. Meu celular novo não fica conectado com o login, não troco mais informações sobre a minha atuação por e-mail. Os grupos que eu faço parte adotaram várias medidas de segurança".

Colégio na zona sul de São Paulo, durante as ocupações em novembro de 2015. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O manifestante, que diz ter presenciado abusos policiais, é enfático ao falar sobre a atuação da PM. "O que eu sei, da minha observação empírica, é que a Polícia Militar é uma força totalmente descontrolada. Ela não respeita nem as próprias regras. É uma força armada teoricamente subjugada ao comando do governador, mas acredito que nem o governador tenha controle mais sobre a Polícia Militar. Não acabaram com ela quando deveriam ter feito e ela se tornou um monstro que criamos. A PM tem mais de 100 anos de existência, então ela é uma corporação com história, tradição e uma ideologia própria, além de ter uma estrutura de poder e uma hierarquia [próprias]."

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Julio Cesar Fernandes Neves, ouvidor da Polícia Militar de São Paulo durante audiência pública sobre violência policial com a OAB, em junho de 2016. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Quem faz coro às críticas dos ouvidos pela reportagem é o Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Julio Cesar Fernandes Neves. Ao ter conhecimento dos relatos acima, ele falou sobre repressão policial: "Precisa mudar a cultura. Essa cultura de reprimir manifestação é errada. A manifestação, mesmo para os que são contra, tem que ser tolerada. Fica claro nessas situações o abuso de autoridade. A polícia tem que estar preparada, até psicologicamente, para aceitar provocações para não ocorrer nenhum abuso de autoridade".

Essa cultura de reprimir manifestação é errada. A manifestação, mesmo para os que são contra, tem que ser tolerada.— Julio Cesar Fernandes Neves

O ouvidor vai além. "Isso que você está relatando eu lembro que existia em plena Ditadura [Militar]. Essa preocupação com gente seguindo tínhamos naquela época e os métodos são muito semelhantes."

Policiais Militares procuram manifestantes pelo centro de São Paulo. Setembro de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Neves também fala sobre a possibilidade de policiais infiltrados em grupos de manifestantes e sobre interceptações de ligações. "As pessoas não têm segurança nenhuma com relação a presença de infiltrados em manifestações, já que ficou claro que existiu infiltrado [em referência a prisão de 26 pessoas no Centro Cultural São Paulo], há possibilidade de existir outros [infiltrados] sim, mas o pessoal do governo nega peremptoriamente. Possibilidade de grampo telefônico também existem."

Depois de ter acesso às queixas de perseguição das pessoas ouvidas para esta matéria, Julio Cesar Fernandes Neves ressaltou a possibilidade de investigações comandadas pela Polícia Militar. "Se efetivamente isso está ocorrendo [a perseguição], algum serviço de inteligência pode estar ocorrendo também, porque ninguém estaria com a mesma viatura coincidentemente em lugares tão variados. Então, se ficar claro que isso realmente ocorre, existe um trabalho de inteligência aí e não só o serviço de contenção."

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Tal conduta da PM, se confirmada, é tida por alguns juristas como ilegal. O coletivo Advogados Ativistas explica: "A Polícia Militar e a Civil têm a sua competência de atuação definida pela Constituição Federal. Desse modo, a única forma de investigação que é autorizada para a PM é a investigação dos próprios agentes em casos de crime de competência da Justiça Militar. É o que se chama de Inquérito Policial Militar. Excetuando-se esses casos específicos, a Polícia Militar não tem competência de investigar, quem tem competência para investigar é a Polícia Civil ou a Federal, a depender do crime ou do caso". Ou seja, investigações protagonizadas pela PM não são juridicamente legais, fora casos de crimes cometidos por policiais.

Pixação em alusão aos protestos de 1984 por eleições diretas. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O coletivo comenta também o uso de P2 em investigações policiais. "A infiltração de agentes é autorizada no Estado brasileiro em dois casos: a lei 12.850 autoriza a infiltração de agentes em organizações criminosas, lembrando que essa lei faz uma definição muito estrita desses casos, porque tem que ser organizações com mais de quatro pessoas, que cometam crimes com pena superior há quatro anos, que dividam tarefas e tenham como finalidade obter uma vantagem para si. Ou seja, é muito difícil enquadrar uma organização política em organização criminosa. Tem também a lei 11.343, que é a lei de drogas, que prevê a infiltração de agentes em quadrilhas que se destinam ao tráfico de drogas. Ou seja, isso também não se aplicaria aos casos políticos. É bom lembrar que nesses dois casos a infiltração depende de autorização judicial, o que nunca tivemos notícia de que em manifestação houvesse isso, além do que, esses agentes infiltrados teriam que ser da polícia judiciária, que seria ou a Civil ou a Federal. Podemos dizer com segurança que a lei brasileira não permite que se infiltrem agentes em grupos políticos ou organizados para fazer manifestação, ainda, em hipótese, que se atribua a eles práticas de crimes."

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O grupo ainda faz uma ressalva sobre o uso de interceptações telefônicas, situação que todos os entrevistados e outros manifestantes afirmam ser práticas comuns. "A interceptação telefônica depende de um pedido do Ministério Público ou da polícia e uma ordem judicial com um tempo determinado para isso. A decisão do Supremo Tribunal Federal e determinação do Conselho Nacional de Justiça sugere que este grampo seja usado com certa parcimônia e depende sempre de ordem judicial, independentemente da ordem, o grampo não poderia ser realizado pela Polícia Militar, a não ser, claro, naqueles casos citados acima de formação de quadrilha ou tráfico de drogas. O grampo é de utilidade da polícia judiciária e da polícia de investigação e não da polícia repressora."

Policias acompanhando manifestantes após o término de um protesto em janeiro de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

É importante ressaltar que ao mencionarmos o tema da reportagem à Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, a assessoria de imprensa inicialmente tratou como um caso de psicopatia, no que nos pareceu uma tentativa de menosprezar as acusações. O desentendimento, porém, não foi repetido pelo ouvidor Julio Cesar Fernandes Neves.

A Secretaria da Segurança Pública esclarece que as polícias do Estado não utilizam grampos telefônicos em manifestantes, não os intimida nem os rastreia na internet.

O fato é, os quatro personagens ouvidos, e outros tantos manifestantes, estão se sentindo vigiados, intimidados e em qualquer grupo de discussão que se vá nota-se uma preocupação excessiva com a segurança e a transmissão de qualquer informação. Os quatro relatos acima foram colhidos presencialmente por medo de qualquer vazamento de informações.

Em nota oficial, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP) nega as denúncias feitas nesta reportagem. "A Secretaria da Segurança Pública esclarece que as polícias do Estado não utilizam grampos telefônicos em manifestantes, não os intimida nem os rastreia na internet. Toda escuta telefônica só é permitida mediante autorização judicial. A Polícia Militar monitora as redes sociais para se informar sobre datas de manifestações e, assim, ser capaz de planejar o policiamento, por vezes, solicitando reuniões com os próprios organizadores. A PM não encabeça investigações sobre manifestantes. A SSP solicita que as denúncias informadas pelo repórter sejam apresentadas pelas supostas vítimas nas corregedorias das polícias Civil e Militar para que os fatos sejam devidamente apurados."

*Os nomes dos entrevistados foram alterados para manter as fontes anônimas.

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