Uma aula de geografia com os grafites de futebol na Argentina

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Uma aula de geografia com os grafites de futebol na Argentina

Essas imagens explicam o que nenhum professor moderninho ousaria.

Os grafites dos times na Argentina são lindos porque falam não só de futebol. Tratam de orgulho de bairro, de pertencimento, história, mesclam cultura pop, maconha e o papa. Ou seja, vai muito além do que uma pintura meio anos 90 em um muro ferrado com arquitetura das antigas — e isso já nos diz algo sobre a arte e a economia no país. Preste atenção nas imagens abaixo. Essas imagens são uma aula que nem mesmo um professor moderninho de história ou geografia ousaria dar.

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Foto: Gabriel Uchida

ATLANTA
Para falar do rolê de futebol portenho é imprescindível entender a importância do bairro, que é quase um sinônimo do clube. O torcedor ama seu time e sua quebrada, simples assim. Villa Crespo é Atlanta, Floresta é All Boys, Boedo é San Lorenzo e por aí vaí. Isso explica também algo que é comum na Argentina mas um pecado mortal no Brasil: torcedores com dois times. Muitas vezes, pela influência da mídia, o moleque cresce acompanhando algum dos grandes, tipo Boca ou River, mas se ele mora em Villa Devoto, por exemplo, ele vai amar sua área e isso significa torcer também para o General Lamadrid, que é o clube do bairro.

Foto: Gabriel Uchida

ALL BOYS
Na teoria, por poucas quadras de distância, o time está no bairro de Monte Castro. Mas na prática, All boys é Floresta e assim é o folclore do futebol, sem muitas explicações. O time joga no estádio Islas Malvinas, uma homenagem ao território perdido (que corresponde ao mapa pintado na imagem do meio) para os ingleses em uma guerra que teve o Chile virando as costas para os hermanos latinos e apoiando os gringos. Na cultura local os chilenos são os traidores, os ingleses serão eternos inimigos (e o gol de mão do Maradona contra a Inglaterra na Copa de 1986 foi uma pequena revanche histórica) e os portenhos vão sempre defender que "as Malvinas são Argentinas". A torcida La Peste Blanca dá um resumo da história em sua música: "Eu que nasci em Floresta, em Floresta morrerei. Eu quero ir às Malvinas e matar um inglês". Se isso já não está claro o suficiente, outro fato histórico: no famoso jogo do gol de mão de "Dios", barra bravas de vários clubes argentinos e outros loucos em geral foram exclusivamente com um objetivo: dar porrada nos ingleses e roubar suas bandeiras. A missão foi concretizada com sucesso.

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Foto: Gabriel Uchida

FERRO CARRIL OESTE
Ainda que o River Plate tenha jogado por cerca de um ano no bairro de Caballito em meados de 1914, o local é do Ferro Carril Oeste e não se fala mais nisso. O nome da barra brava do clube já diz tudo: La Banda 100% Caballito. Atenção para o detalhe: a torcida leva o nome do bairro e não do clube. Tradicionalmente, tem grande rivalidade com o Vélez Sarsfield, de Liniers, e este é considerado o clássico da zona Oeste da capital.

Foto: Gabriel Uchida

ARGENTINOS JUNIORS
Na religião do futebol, o bairro de La Paternal é um local sagrado porque foi onde "Dios" nasceu, quer dizer, foi ali onde Maradona começou a jogar profissionalmente. Ainda que Dieguito tenha forte ligação com o Boca Juniors, clube onde ainda hoje ele aparece nas tribunas para torcer, cantar e balançar a camisa, foi no Argentinos Juniors onde tudo começou. Também por isso o estádio tem o nome do ex-camisa 10.

Foto: Gabriel Uchida

HURACÁN
Existem vários clubes com o nome Huracán na Argentina, mas o de Parque Patricios é o maior e mais conhecido. Provavelmente é também o time que mais tem grafites ou pixações por Buenos Aires. Em toda quadra do bairro há pelo menos um símbolo do "globo" pintado de maneira lindamente tosca. Sua torcida é conhecida como "Quemeros", nome que surgiu de uma história quase de novela: antigamente, parte do lixo da capital ia para a região do estádio e ali era queimada, então, os locais reviravam que sobrava para tentar salvar algo que valesse uma grana. Outra história emocionante do estádio e que dá muito orgulho ao seus torcedores é o fato de ter "ganhado um Oscar". Nessa arquibancada foi filmada uma parte do filme "O Segredo dos Seus Olhos", que ganhou a estatueta de melhor filme estrangeiro de 2010. Nem Boca, nem River Plate ou qualquer outro grande tem esse título.

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Foto: Gabriel Uchida

SAN LORENZO
O entorno do estádio Nuevo Gasômetro é uma quebrada com cara de lugar onde você não deveria estar, com vielas que levam a lugares idênticos às favelas brasileiras. É um rolê tipo São Januário, do Vasco, que é no meio da "comunidade". E por ali também é muito difícil encontrar grafites do time pelo simples motivo de que aquela não é a área do San Lorenzo. A treta vem da época da ditadura: no final de 70, o time foi obrigado a vender o estádio para os militares e teve que construir uma cancha em outro bairro. Ainda assim, o clube manteve sua essência do bairro de Boedo, onde estão todos os grafites do San Lorenzo, mesmo que no lugar de sua antiga casa exista hoje um supermercado. Desde então, os torcedores alimentam o sonho de voltar a sua boa e velha quebrada. Por isso a frase "Já fizemos dois estádios, faremos três". Em dezembro de 2015 foi anunciado que o clube comprará o terreno original e voltará à sua área para então construir seu terceiro estádio. A propósito, Francisco, o papa humilde e legalzão, é o torcedor mais famoso do time e completa a santíssima trindade argentina: Maradona, Messi e Papa.

Foto: Gabriel Uchida

BOCA JUNIORS
Ainda que a Bombonera e uma ou duas ruas da área sejam lugares insuportavelmente cheios de turistas o tempo todo, La Boca ainda preserva sua cara de bairro. O motivo é simples: os gringos preguiçosos só visitam o estádio e o Caminito. Então se você der um rolê pela região, vai encontrar vários grafites maravilhosos com muita cara de anos 90, o que significa que nem precisa de filtro do Instagram para envelhecer a foto e ficar descolada

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Foto: Gabriel Uchida

NUEVA CHICAGO
Mataderos é o bairro onde tradicionalmente estava a indústria frigorífica local e Nueva Chicago é uma referência à cidade norte-americana que era considerada o centro da indústria da carne. Então a área é isso, uma agradável mistura de referências à futebol e boi morto. Ainda que o time esteja na B Nacional (correspondente à segunda divisão) e seja muito menor que Boca ou River, o clube é considerado um problema aos rivais por ter uma torcida notoriamente porradeira.

Foto: Gabriel Uchida

RACING
Racing e Independiente são uma história à parte no futebol e grafite local. São dois gigantes que não só estão no mesmo bairro mas também tem estádios muito próximos: ficam a menos de 300 metros de distância. Isso resulta em uma boa treta pela área. Não existe uma parte do bairro para cada time. É uma eterna disputa. Por isso é impossível ver grandes murais de algum clube em Avellaneda; se algum aparece, é prontamente apagado ou estragado por rivais no mesmo dia - o grafite escrito La Guardia Imperial (nome da barra brava do Racing) só existe porque está em uma parede muito alta dentro de uma área fechada do estádio.

Foto: Gabriel Uchida

INDEPENDIENTE
Como em Avellaneda é quase inútil fazer murais, a onda é ter pixações simples, geralmente no estádio do rival (as iniciais de Club Atlético Independente da foto da direita estão pintadas em um portão da casa do Racing, provavelmente por pouco tempo) ou xingando seu inimigo. Tem também aquela coisa meio marota e infantil de ver o nome do outro time pintado e fazer uma intervenção com palavras tipo "puto". E, no fim, os rivais vão ver e rabiscar tudo, transformando em sujeira qualquer que poderia ser uma linda peça de arte contemporânea. Outra peculiaridade do Independiente é que o ex-líder da barra brava do time (que foi preso em um mega esquema de segurança na Copa do Mundo no Brasil) está em campanha para virar presidente do clube. Por isso o nome Pablo Bebote Alvarez aparece em letras gigantes nas paredes do estádio ou do bairro. Mas, de novo, deve ficar por pouco tempo.