Mais de 250 Mil Mulheres Sofrem com Doenças Psiquiátricas Perinatais Todos os Anos na Inglaterra – Então Por Que Achei Tão Difícil Conseguir Ajuda?

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O GUIA VICE PARA SAÚDE MENTAL

Mais de 250 Mil Mulheres Sofrem com Doenças Psiquiátricas Perinatais Todos os Anos na Inglaterra – Então Por Que Achei Tão Difícil Conseguir Ajuda?

No Reino Unido, quase metade de todas as mulheres vive em regiões sem nenhum tipo de serviço psiquiátrico perinatal, e poucos dos serviços existentes em outros lugares no país atendiam aos padrões nacionais de qualidade em abril de 2015.

Arte porNick Scott.

Começou aos poucos, quase imperceptível, quando o Evan era pequenininho. As preocupações com a saúde dele, sua respiração, nosso vínculo. Em nacos de sono, eu voltava para a mesa da cesariana, perguntando para os médicos se o nosso bebê, quietinho no respirador, estava bem. A ausência de respostas, o silêncio, os três minutos que duraram eras, ainda vívidos como a vida.

Alguns meses depois que o Evan nasceu, o pânico se estendeu pelos meus dias. Eu sentia ansiedade, um peso, uma náusea. Um arrastado processo de encaminhamentos através do assistente de saúde recomendou um grupo de apoio. Começaria em quatro meses. Eu não tinha quatro meses. Liguei para um coordenador de saúde mental. Minha ligação não foi retornada. Fui ao clínico geral em lágrimas e ele indicou antidepressivos, ignorando minha sugestão de conversar com um profissional – eu só precisava de alguém para conversar –, pois a assistência "não estava lá".

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Quinze semanas depois do meu primeiro pedido de ajuda, encontrei outro grupo de apoio, por acaso, em uma creche a 1,5 km de casa. Seis meses depois, aqui estou eu, praticamente outra pessoa. Sou branca, de classe média, tagarela, mãe de primeira viagem com um filho saudável, alguém que mora em uma área de classificação 1 – no topo do ranking – do mapa de fornecimento de serviços de Saúde Mental Perinatal Comunitária Especializada do Reino Unido. Mesmo assim, sou uma pessoa que teve que usar todos os seus recursos, repetidas vezes, para conseguir ajuda para tratar minha depressão pós-parto, como se fosse uma doença desconhecida e relativamente simples. Mas não é.

Doenças psiquiátricas perinatais (perinatal significa o período entre a concepção e o primeiro aniversário do bebê) são extremamente comuns. Vão desde transtornos de adaptação e estresse após se tornar mãe até depressão, o que provoca ansiedade, fadiga e uma tristeza constante antes e depois do nascimento, além de transtorno de estresse pós-traumático, em casos de partos muito complicados, e doenças mais raras e graves, como psicose pós-parto, o que causa paranoia, delírios e alucinações. É consenso entre a maioria dos pesquisadores que pelo menos uma em cada dez mulheres é afetada por doenças psiquiátricas perinatais, o que já é bastante coisa. Trocando estatísticas por números, entretanto, como fez Sally Hogg em 2013 para a associação de proteção à criança NSPCC no relatório Prevention In Mind ("Prevenção em Mente", em tradução livre), você descobre que se estima que 284.890 mulheres sejam afetadas na Inglaterra todos os anos. É mais que um quarto de um milhão de mães – mulheres, pessoas – todo ano, em apenas um país.

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Esse número é assombroso, mas isto é ainda mais: no Reino Unido, quase metade de todas as mulheres vive em regiões sem nenhum tipo de serviço psiquiátrico perinatal, e poucos dos serviços existentes em outros lugares no país atendiam aos padrões nacionais de qualidade em abril de 2015.

"Uma quantidade incrível de pessoas é afetada", confirma Sam Challis, Gerente de Informação da associação Mind. Então por que essa lacuna de tratamento? "O problema é que a gravidez é muitas vezes vista como uma transição física para a mãe, em vez de uma transição física e psicológica. Essa é a principal questão que precisa mudar, urgentemente." A limitada formação voltada para a saúde mental em áreas médicas para além da psiquiatria também é um fator, acrescenta o especialista. "Deveria haver um enfermeiro especializado em saúde mental em toda maternidade e assistentes de saúde [profissionais que atendem os pais no primeiro ano do bebê para avaliar o peso e desenvolvimento da criança] devem receber um treinamento muito mais rígido. Uma avaliação psiquiátrica da mãe deveria ser feita à parte da avaliação geral da assistência social também."

É consenso entre a maioria dos pesquisadores que pelo menos uma em cada dez mulheres é afetada por doenças psiquiátricas perinatais.

E há também o estigma ligado à saúde mental na maternidade. As mães muitas vezes têm dificuldade de admitir como estão se sentindo para os profissionais porque temem ser consideradas pessoas que não têm capacidade de cuidar dos filhos. A cultura e a publicidade não ajudam: a maternidade recém-conquistada é pintada de forma vaga, romantizada e cheia de amor, em que a tortura da privação de sono e o enorme peso da nova responsabilidade não fazem parte desse quadro. Todo mundo sente isso de alguma forma: lembro de tardes felizes com meu filho, seguidas de noites estressantes e apreensivas, de como a exaustão anestesia as emoções, te deixa vazia, ausente, tudo desaparece.

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Muitas vezes, somente casos extremos e terríveis de doenças psiquiátricas perinatais são noticiados na mídia também, como o de Charlotte Bevan, a mãe de Bristol que, em dezembro, saiu do hospital com a filha de três dias de vida, Zaani, e cometeu suicídio ao pular do desfiladeiro do rio Avon. "São casos raros", destaca Challis, "mas fazem muitas mulheres sentirem que pode acontecer com elas também". É importante apontar que uma história muito maior está por trás dessa terrível tragédia: Charlotte era esquizofrênica e já tinha acompanhamento médico. O sistema falhou com ela. Há um inquérito em andamento, mas as brechas no tratamento e na comunicação devem fazer parte dessa história – como é o caso para tantas outras mulheres.

Iniciativas de grupos que fazem campanhas e instituições filantrópicas normalmente preenchem as lacunas que os serviços profissionais não podem oferecer. Uma delas é a Two In Mind, que discute como 70% das mulheres no País de Gales não têm acesso a assistência. O site da organização oferece cursos de terapia cognitiva comportamental gratuitos para famílias que terão um novo filho e vídeos com histórias reais de pais. Tem a Sara, que perdeu um bebê e depois teve uma ruptura uterina durante a cesárea. Depois disso, ela se sentiu "vazia e inerte… sem nenhum sentimento pelo meu bebê". Lucy fica grávida logo de cara e lê todos os livros possíveis durante a gravidez tranquila que teve, mas depois se sente "prostrada", "esgotada", sem vontade de sair de casa. Tabitha sofre depois que o companheiro a abandona durante a gravidez e depois do parto. A mulher do Mark tem depressão pós-parto, antes de ele também desenvolver (o que mostra como a transição de ter um filho é psicológica, apartada da experiência física).

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A abordagem do Two In Mind à saúde perinatal trata de uma coisa que muitos serviços não conseguem, explica a Gerente de Projeto Jenny Burns. "Estamos [muitas vezes] lidando com duas pessoas aqui – a mãe ou principal responsável e seu bem-estar emocional e o bebê e o seu bem-estar. O 'cliente ou paciente' não pode ser repartido ou separado." Os cursos "Curta Seu Bebê" da organização estão disponíveis gratuitamente na internet e também nos escritórios locais da Mind, além de outras instituições filantrópicas e serviços regulamentados. O site também já recebeu visitas do mundo todo, o que deixa Jenny muito feliz.

Mas a conquista que a deixa mais orgulhosa é pessoal. Ela viu de perto uma mãe solteira adolescente, que antes sofria de ansiedade e baixa autoestima e estava voltando para a casa dos pais, envolver-se com o projeto como voluntária e ter uma recuperação impressionante. "No último ano, eu a vi desenvolver segurança em suas capacidades e habilidades como mãe", sorri Jenny. "Mais do que isso, ela entrou em contato com a Flying Start [primeira infância] perto de casa e convenceu a escola a aceitá-la como terapeuta ocupacional discente uma vez por semana. Impressionante!" O envolvimento com recursos acessíveis realmente transforma vidas.

Em outubro, um relatório da MMHA [Aliança pela Saúde Mental Materna], conduzido em associação com a Escola de Economia de Londres, revelou que £ 8,1 bilhões são perdidos todos os anos por falta de apoio à mulher e à criança no período perinatal.

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Há várias outras organizações extraordinárias que fazem um trabalho parecido, como a instituição nacional PANDAS (Apoio e Aconselhamento na Depressão Pré e Pós-parto, na sigla em inglês), que oferece recursos online e uma linha telefônica de ajuda, além de grupos locais tocados por mulheres que sofreram com doenças psiquiátricas perinatais: dois exemplos notáveis são o Mothers For Mothers, em Bristol, e o House of Light, em Hull. Mas uma estratégia nacional também está sendo lentamente implementada, graças a uma ampla coalizão voluntária bem ativa.

A Aliança pela Saúde Mental Materna (MMHA, na sigla em inglês), uma aliança de órgãos profissionais, organizações de pacientes e instituições filantrópicas, lançou um projeto em julho chamado Everyone's Business ("Da Conta de Todo Mundo"), com dois anos de financiamento pela Comic Relief. O título é simples, curto, abrangente, perfeito, e mostra que a depressão pós-parto não deve ser marginalizada como um "problema feminino", mas reconhecida como uma coisa que pode afetar relacionamentos, vidas e até mesmo a economia de modo mais amplo.

Em outubro, um relatório da MMHA, conduzido em associação com a Escola de Economia de Londres, revelou que 8,1 bilhões de libras são perdidos todos os anos por falta de apoio à mulher e à criança no período perinatal. A princípio, a análise das repercussões de doenças psiquiátricas em termos econômicos parece um jeito frio e ballardiano de medir os impactos na vida das mulheres. No entanto, ao olhar mais de perto o trabalho da MMHA, você vê que a ideia é que as mulheres sejam consideradas vitais para a engrenagem da sociedade.

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"Existem muitas causas necessitadas por aí", explica Maria Bavetta, Chefe de Comunicação da MMHA, "então tivemos que adotar uma abordagem que equilibrasse os fatos duros com os nossos argumentos, que tivesse um impacto tanto racional quanto emocional". O site deles também apresenta muitas histórias reais, como o trágico relato da Joe, que não recebeu apoio específico para uma depressão pós-parto grave após vários abortos espontâneos e acabou cometendo suicídio quando a filha tinha apenas alguns meses de vida. E também da Sally, que sente que só sobreviveu depois de buscar ajuda de grupos voluntários. "Se você quebrasse o braço, iria ao hospital para 'consertar', mas a saúde mental não tem esse luxo", escreve. É um sentimento que ecoa em toda história e pulsa forte na minha própria experiência.

Desde julho, a MMHA trabalha com o Departamento de Saúde e a Faculdade Real de Clínica Geral britânica para tratar dessas questões – de fato, a instituição de ensino superior acaba de transformar o apoio à saúde mental perinatal em uma de suas prioridades para 2015, então médicos como o meu devem começar a mudar o comportamento. A abordagem deles é centrada em conscientizar sobre o que chamam de ACT, que na sigla em inglês representa três itens: Responsabilidade em definir de forma clara o tratamento da saúde mental perinatal e seu cumprimento em nível nacional; Serviços comunitários especializados que atendam os padrões nacionais de qualidade e sejam oferecidos às mulheres de todo o país; e Treinamento em saúde mental perinatal oferecido a todos os profissionais envolvidos no tratamento da mulher durante a gravidez e o primeiro ano após o nascimento. George Osborne também anunciou em março, em seu discurso sobre o relatório pré-orçamentário do ano, o investimento de £ 75 milhões em serviços de saúde mental perinatal para os próximos cinco anos – coisa que os céticos podem pensar que tem uma pitada de galanteio eleitoreiro para ganhar as mães, mas pelo menos reconhece o problema e aponta para a direção certa.

"Osborne chegou a mencionar isso no discurso, o que é bom", acrescenta Maria. "É importante que questões como essa sejam ditas em voz alta – ajuda a torná-las normais." E aí ela disse a coisa mais importante de todas. "Temos que permitir e mostrar às mulheres que tudo bem se sentir assim, tudo bem falar sobre isso, para que elas saibam que é comum e que elas podem procurar tratamento – e saber exatamente onde conseguir."

@juderogers

Tradução: Aline Scátola