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​O STF Pode Mudar a História da Política de Drogas no Brasil

Nesta quinta (13), a mais alta corte da Justiça brasileira pode definitivamente liberar o “se eu quiser fumar, eu fumo”.

A Marcha da Maconha de 2012 em Brasília. Foto por Matias Maxx.

O julgamento do RE 635.659 é um dos mais aguardados do ano e pode se tornar um acontecimento histórico no debate da política de drogas no Brasil. O recurso extraordinário discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343 (Lei de Drogas) que penaliza o porte de drogas para consumo pessoal. Sua apreciação está marcada para quinta-feira (13) e tem como relator o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes.

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Movido pela Defensoria Pública de São Paulo, o caso já tramita no STF desde 2011 e trata-se da condenação de um presidiário pego com três gramas de maconha em sua cela. O réu foi condenado em primeiro e segundo grau e recorreu ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de que penalizar o consumo próprio fere princípios constitucionais, em especial a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

"Hoje temos 27% dos presos condenados por tráfico de drogas e esse número aumenta no caso das mulheres encarceradas que são mais de 60%."

"Esta não uma tese inovadora," explica o defensor público e autor que moveu a ação, Leandro Castro de Gomes, "mas talvez no Brasil ela não estivesse sendo tão observada. Tanto é que quando fiz a alegação oral no processo, a juíza e os funcionários do tribunal até acharam estranho, riram um pouco, falaram que 'ah então agora poder fumar maconha?'".

Para o defensor, o porte de drogas para consumo pessoal não deve ser considerado crime, pois não lesiona direitos alheios. Essa tese já foi acolhida pela Suprema Corte argentina recentemente e também já foi sustentada pela própria ONU. "Se a conduta fica restrita ao próprio cerne da pessoa, não justifica a intervenção do direito penal", frisa.

Junto com a defensoria, outras entidades apoiam a retirada do artigo 28 na legislação. Elas estão atuando como amicus curiae (ou "amigos da corte"), auxiliando os ministros do STF com detalhes técnicos e pesquisas sobre o tema. São eles: o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Instituto Sou da Paz, a ONG Viva Rio, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), a Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos (Abesup), a Conectas, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e a Pastoral Carcerária.

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Junto com a alegação de violação de princípios constitucionais do cidadão, uma das maiores críticas à lei também é a falta de um critério objetivo, como a determinação de quantidades permitidas de substâncias, para auxiliar na caracterização de tráfico ou consumo pessoal. Os critérios vigentes vão da análise do local em que a substância foi apreendida até as condições sociais do sujeito. "São circunstâncias que acabam ficando no total arbítrio do policial que vai fazer o flagrante," explica o defensor.

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Segundo ele, junto com as entidades que defendem a descriminalização do porte, isso contribui para o problema de superencarceramento no Brasil.

Cristiano Maronna, vice-presidente do IBCCRIM e secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas também critica a atual Lei de Drogas, alegando que a falta de uma determinação de quantidades de entorpecentes contribui para que cada vez mais usuários sejam processados como traficantes, especialmente os com condições socioeconômicas precárias. "Hoje temos 27% dos presos condenados por tráfico de drogas e esse número aumenta no caso das mulheres encarceradas que são mais de 60%."

Se o STF der provimento ao recurso, a maior mudança prática estará na revogação do artigo 28 o que significa que se alguém for pego com uma quantidade determinada de substâncias ilícitas, não poderá mais ser conduzido para a delegacia e nem será processado. O defensor destaca que o recurso trata apenas da descriminalização do uso e não da legalização das drogas.

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"A legalização passa um pouco no que está acontecendo agora no Uruguai, em que você vai regulamentar o mercado de produção, distribuição e consumo de entorpecentes. Então é um caminho um pouco mais adiante, exige uma interferência legal por parte do Estado, regulamentando toda a cadeia de produção até o consumidor final. Já a descriminalização é simplesmente estabelecer que não é mais crime, que é o que está sendo discutido neste recurso."

Marcha da maconha de 2015 realizada em São Paulo. Foto por Matias Maxx.

Não se sabe quais serão os critérios utilizados pelo STF para determinar a quantidade específica de cada entorpecente. Para Leandro, o STF poderá definir esses critérios com base nos documentos entregues à Corte ou delegar essa função para órgãos técnicos como a ANVISA ou a Senad.

No momento, todos os casos que tramitam no Supremo com matérias semelhantes estão aguardando o julgamento do RE 635.659. É o que chamam de "repercussão geral", um termo designado para analisar processos com repercussões relevantes e também possibilitar a diminuição do número de processos no STF. "Estes casos dependerão da decisão desse recurso para serem julgados. É o que chamamos de uma decisão erga omnes, criando, digamos assim, uma regra geral para todos eles", explica Maronna.

Na última terça-feira (11), foi entregue uma nota técnica elaborada pelo Instituto Igarapé defendendo a descriminalização do porte e também sustentado que o estabelecimento de quantidades específicas de entorpecentes poderá auxiliar na distinção de usuários e traficantes de drogas, podendo ser uma das soluções para o problema da superlotação carcerária que já atinge a marca de 608 mil presos e um déficit de 231 mil vagas, de acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2014.

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Tanto Leandro de Castro Gomes quanto Cristiano Maronna se mostraram positivos com o julgamento do STF. "Nós temos outros casos pela via judicial em que foi considerado inconstitucional a conduta de porte de drogas, justamente por se considerar incompatível punir a autolesão em um estado democrático", conta.

"Ultimamente o STF tem adotado umas decisões importantes que nos tem dado um certo otimismo. A questão da marcha da maconha, a questão das biografias, isso tudo são decisões que ele ficou ao lado da liberdade. Em razão da composição extremamente elogiosa e progressista do Supremo, nós estamos otimistas", diz Leandro.

Em tempo, várias instituições se mostram favoráveis à descriminalização, inclusive os editoriais de dois grandes portais de notícias, a Folha de São Paulo e O Globo, publicaram editoriais em defesa ao provimento do recurso.

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A único posicionamento oficial que se colocou contra a descriminalização do porte de drogas foi a Associação de Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), também atuando como amiga da corte. O vice-presidente jurídico da associação, Wladimir Reale, considera a possibilidade de dar provimento ao recurso "uma hecatombe, uma tragédia".

"É uma tragédia pelas consequências que isso acarretará com as crianças, por exemplo. Então vai ter o professor lá na escola que vai puxar um cigarro de maconha, dar uma cheirada ou então qualquer cidadão aqui no Congresso Nacional vai sair para dar cheirar uma linha de cocaína," explica.

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Segundo Reale, não se trata de uma questão da violação dos princípios da inviolabilidade da vida íntima e da privacidade, mas sim de saúde pública. "Se trata de uma situação periclitante e com o aumento do uso de todas as drogas no país vai ocorrer um aumento da violência, tráfico de drogas, armas e é a consequência natural porque o Estado não está assumindo o comércio das drogas com especificidade, " destaca.

"O maior obstáculo para uma discussão frutífera sobre drogas parece ser o fato da gente não conseguir falar e discutir sobre o assunto da mesma maneira que tratamos sobre o aumento de impostos."

O vice-presidente declarou que considera a afirmação de que muitos usuários estão sendo confundidos como traficantes como "absolutamente equivocada" e que a lei de drogas cumpre seu papel perfeitamente. "Todo profissional, seja o delegado, os policiais, o promotor, ou o juiz, sabe muito bem distinguir, porque depois passa por eles se for autuado indevidamente. Isso é um erro primário, " afirma. (O que não foi o que aconteceu com o Cert do ConeCrew, preso no começo desse ano por cultivar maconha para consumo próprio). "Tem uma série de quesitos para a caracterização. Tem a quantidade de drogas e mais uma série de outros quesitos. Não é porque está fazendo uso de certa substância que irá ser taxado como traficante. E se também houver esse erro eventualmente o Judiciário corrige. "

Reale também irá fazer sua sustentação oral na quinta-feira e defenderá a permanência do artigo 28 na legislação. "Vou sustentar com todas as forças a constitucionalidade do dispositivo. (…) Estamos falando aqui de proporcionalidade, a questão das drogas tem um potencial muito mais sério em relação à violência do que o álcool, a cerveja, o whisky e o vinho ou o que seja."

Para que a inconstitucionalidade do dispositivo seja declarada, o recurso precisa ter a maioria dos votos do Supremo. As expectativas estão altas para os dois lados e mostram uma chance, uma oportunidade de levar o diálogo para frente da questão de drogas no país.

"O maior obstáculo para uma discussão frutífera sobre drogas parece ser o fato da gente não conseguir falar e discutir sobre o assunto da mesma maneira que tratamos sobre o aumento de impostos. (…) Parece que isso é bloqueado pela ignorância e preconceito, " finaliza o defensor que estará presente em Brasília para acompanhar o julgamento.