FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

O Ebola Não É um Problema Médico, É um Problema das Pessoas

O ebola pode não ser A Grande Doença, mas a próxima pode ser.

Uma ala de isolamento de ebola em Lagos, Nigéria. Imagem via usuários do Flickr Creative Commons CDC Global.

A medicina tem um grande problema: um monte de coisas não devia existir, mas existe. Por exemplo, crianças em escolas ocidentais com sarampo ou o pólio no Paquistão, que teve mais de 200 casos apenas neste ano. O último e mais assustador desses casos é uma epidemia de ebola em larga escala ainda se alastrando pela África Ocidental.

Publicidade

Nada disso deveria estar acontecendo. Temos programas de imunização em massa e vacinas seguras e efetivas contra o sarampo. O mesmo vale para a poliomielite, que, em certo momento, pareceu que ia desaparecer no século 21. Casos de ebola já eram de se esperar, mas esse não é um vírus realmente capaz de dominar o mundo – não há uma boa razão para uma epidemia nessa escala ter acontecido.

Mas aconteceu. Por quê?

Em uma palavra: pessoas.

O alastramento do vírus ebola na África Ocidental é mais um problema social e governamental do que uma questão médica. Pode não haver uma cura para o ebola ainda, mas, como já escrevi antes, o vírus não é tão bom assim em se espalhar. Desde que se tenha um sistema de saúde funcionando decentemente, equipes treinadas, um ambiente antisséptico para trabalhar, suprimentos médicos básicos e um conjunto de procedimentos em vigor, qualquer surto pode ser rapidamente contido.

O problema é que as partes da África Ocidental onde o surto começou não têm quase nenhuma dessas coisas. Na verdade, é difícil encontrar um lugar melhor para se espalhar uma doença. O vírus apareceu na fronteira entre Serra Leoa, Libéria e Guiné – países que ficam nas posições 163, 183 e 179 da lista do FMI que engloba as 187 nações mais ricas do mundo. Se isso não significa nada para você, considere o seguinte: em 2006, quando se recuperava de uma guerra civil brutal que destruiu a maioria de seus hospitais e clínicas, a Libéria tinha mais ou menos 50 médicos no país inteiro. E agora eles também estão morrendo de ebola.

Publicidade

Agências de assistência humanitária como a Médicos Sem Fronteiras não estão lá simplesmente oferecendo cobertores; elas estão tentando agir como um serviço de saúde nacional com um orçamento de apenas algumas dezenas de milhões de dólares, e o trabalho é, basicamente, impossível.

Se isso já não fosse ruim, teorias da conspiração abundam. Em agosto, uma clínica na Libéria foi atacada por uma multidão gritando "Não existe ebola!", ecoando uma crença generalizada de que a doença é uma farsa. O Newsweek reportou que, "em setembro, um artigo publicado no Daily Observer, um grande jornal da Libéria, chamava o vírus ebola de um 'organismo geneticamente modificado', sendo testado em africanos pelas agências humanitárias a mando dos governos ocidentais".

Parece bobagem? Isso não é pior que as teorias sendo transmitidas no Ocidente. Rush Limbaugh sugeriu que Obama quer que o vírus mate americanos como "vingança pela escravidão", enquanto a ex-figura pública Chris Brown falou a seus seguidores no Twitter que isso era uma forma de "controle populacional".

Os fatores aqui são assustadoramente parecidos com o que vimos com a poliomielite na Nigéria. Uma campanha de vacinação pela África deixou o continente quase totalmente livre do pólio em 2003 – até que a equipe médica encontrou resistência em vários Estados do norte da Nigéria com uma grande população de muçulmanos. Os oficiais ali se convenceram de que a vacina era parte de um complô ocidental para espalhar AIDS e câncer, e seus medos não foram exatamente aplacados com a crescente guerra ao terror. A tentativa de erradicar o vírus falhou, e a Nigéria se tornou um exportador da doença.

Publicidade

Mas essas pessoas são loucas? Bom, pense assim: imagine que você está sentado na sala de casa quando um grupo de médicos de sotaque estranho e uniformes brancos bate na sua porta e começa a balançar uma agulha na sua frente. O que você faz? Deixa eles entrarem e oferece seu braço, ou esconde as crianças embaixo da cama?

E isso sem considerar a história da África Ocidental. Serra Leoa, onde os oficiais da saúde admitiram a derrota diante da epidemia, tem um passado que é, basicamente, um catálogo de 500 anos de violência, estupro, escravidão e opressão.

Outra coisa fácil de culpar é a educação: "Se esses ignorantes tivessem uma educação melhor, eles entenderiam que estão se comportando mal e aceitariam a vacina". Esse tipo de argumento se chama "modelo de déficit", uma teoria amplamente descartada que "atribui o ceticismo ou a hostilidade do público à falta de compreensão, resultante de uma falta de informação".

Voluntários na Nigéria. Foto via Flickr da CDC Global.

O problema é: dar mais informações às pessoas dificilmente funciona. Já falei sobre isso aqui antes. No ano passado, a Royal Statistical Societyfez uma pesquisa em que se descobriu que o público britânico está errado sobre basicamente tudo. Pior que isso – mesmo quando recebiam a resposta correta para perguntas como "Quantos imigrantes existem no país?", as pessoas simplesmente se recusavam a acreditar. Na verdade, como o pânico com a vacina tríplice viral mostrou, mais conhecimento pode ter o efeito oposto: os pais que pararam de vacinar os filhos durante o final dos anos 90 e começo dos 2000 eram pessoas com educação universitária, gente que tinha lido sobre a vacina em diversas fontes.

Publicidade

Em todos esses casos – tríplice viral, poliomielite, ebola –, nós, efetivamente, atingimos o ápice que a medicina moderna pode esperar alcançar. Você pode criar os remédios e vacinas mais sofisticados do universo, mas nada disso importa se a maioria dos países não puder pagar por eles – ou pagar médicos treinados, em primeiro lugar. (Ou, claro, se os pais não permitirem que seus filhos tomem esses remédios.)

E isso não é um problema remoto. Você pode montar todos os programas de rastreamento que quiser, mas, cedo ou tarde, alguma dessas pragas vai chegar até aqui. Doenças mais contagiosas que o ebola (como a malária) costumavam ser comuns nas nossas costas e podem facilmente retornar ainda na minha geração. Vírus e bactérias não ligam muito para fronteiras humanas. Somos todos parte do mesmo sistema global e, se não trabalharmos para erradicar esses inimigos no exterior, não poderemos nos surpreender quando eles finalmente nos acharem em casa.

O pânico no Ocidente não é proporcional à pequena ameaça que o vírus representa. Ainda assim, isso é um lembrete importante: por mais bem defendidos que acreditemos estar pela nossa medicina, vacinas, antissépticos e trajes de proteção, nunca estaremos seguros até lidar com as falhas das pessoas. O ebola pode não ser A Grande Doença, mas a próxima pode ser.

Siga o Martin Robbins no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor