FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

A Itália Não Aguenta Mais os Soldados Americanos

Muitos italianos não estão felizes com suas cidades se tornando a Magaluf dos militares americanos.
Leonardo Bianchi
Rome, IT

A base Dal Molin, em Vicenza, 1º de março de 2013. Foto via Flickr.

Depois da Alemanha, a Itália é o país da Europa com o maior número de bases militares norte-americanas. De acordo com o professor-assistente de Antropologia da Universidade Americana em Washington, David Vine, “o Pentágono passou os últimos 20 anos jogando centenas de milhões de dólares dos contribuintes americanos em bases militares na Itália, transformando o país num centro cada vez mais importante do poderio militar dos EUA”. Obviamente, muitos italianos não estão felizes com suas cidades se tornando a Magaluf dos militares americanos.

Publicidade

A construção da nova base militar Dal Molin começou em 2007, em Vicenza, cidade no norte da Itália onde os americanos já tem tropas posicionadas (no histórico Camp Ederle). O plano, estabelecido em 1954 pelo ainda secreto Acordo Bilateral de Infraestrutura, previa a construção de 25 novos prédios com alojamentos para 1.200 soldados cujo objetivo era incluir todos os elementos da 173ª Brigada de Combate Airbone e da Africom, o Comando dos EUA para a África.

Desde o começo, o movimento “No Dal Molin” se opôs à construção do novo posto, destacando que a base não representaria nenhuma vantagem financeira para a área e ainda traria sérios riscos ao meio ambiente, uma vez que a instalação se localiza bem em cima de uma importante fonte de água subterrânea que abastece Vicenza e outra cidade próxima: Padova.

As reclamações não impediram, porém, a construção. Vicenza tornou-se uma cidade cercada por duas bases americanas nas quais vivem 12 mil cidadãos americanos para um total de 113 mil habitantes. Andando pelo centro, a presença de uma comunidade americana é perceptível, mesmo ela sendo tão grande. Vez por outra, entretanto, emergem notícias sombrias sobre o comportamento dos soldados forasteiros.

Na noite de 14 de julho, dois deles, lotados nos quartéis de Ederle e Dan Molin, teriam sequestrado uma prostituta romena grávida, mantendo-a como refém por mais de 2 horas. Segundo a imprensa italiana, eles espancaram, estupraram e roubaram a mulher, que finalmente foi abandonada numa floresta, em estado semiconsciente.

Publicidade

Os soldados foram rapidamente identificados assim que a vítima informou o número da placa do carro em que seus agressores haviam fugido. Um deles – que depois tentou se suicidar – já estava sob investigação por um caso de violência sexual e sequestro de uma menor de idade de Vicenza.

O episódio ocorreu em novembro de 2013. A garota conhecera o acusado num clube perto da Caserma Ederle. De acordo com o depoimento, o soldado, bêbado, a teria seguido na saída do estabelecimento. “Ele me levou para um beco próximo e me atacou, cobrindo a minha boca e me estuprando”, disse.

Apesar das requisições locais, o soldado foi mantido em liberdade enquanto esperava uma transferência rápida para fora de Vicenza.

Mas, dessa vez, não teve tanta sorte. O ministro da Justiça italiano, Andrea Orlando, tuitou, em 25 de julho, que “os dois soldados americanos serão julgados na Itália. Não haverá renúncia de jurisdição”.

A decisão de exercer a jurisdição nesse caso não foi fácil para o país europeu. De acordo com o Artigo 7 da Convenção de Londres de 1951, soldados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) acusados de crimes em países estrangeiros têm o direito de ser julgados em seus respectivos países. Segundo relatório investigativo do jornal Il Fatto Quotidiano, nos últimos 18 meses a Itália desistiu de exercer essa jurisdição em 91 de 113 casos semelhantes.

Exemplo: em agosto de 2013, a Itália deixou de processar três soldados americanos acusados de atropelar um grupo de pedestres no centro de Vicenza. Em fevereiro passado, depois de oito anos de hesitação, as autoridades italianas decidiram não exercer jurisdição sobre os soldados Louis Carrasquillo e David Michael Simon, que em 2006 decidiram realizar uma corrida de carro no centro da cidade, colocando a vida de pessoas em risco.

Publicidade

Outro caso infame envolveu o soldado James Michael Brown. Em 2004, depois de retornar do Iraque a Vicenza, o militar americano espancou, algemou e estuprou uma prostituta nigeriana. Dois anos depois, o Tribunal de Vicenza – num caso excepcional de julgamento realizado dentro da própria Itália – sentenciou o acusado a 5 anos e 8 meses de prisão, além de uma multa de €100 mil (mais de R$ 300 mil) de indenização. O crime deveria ter rendido uma sentença maior, mas o tribunal reduziu a pena sob a alegação de que o passado em missão militar no Iraque tornou o soldado “menos sensível ao sofrimento dos outros”. No final, Brown ficou apenas um ano sob custódia cautelar, antes de ser mandado à Alemanha e finalmente de volta aos EUA.

Esses eventos mostram que o impacto das bases na cidade de Vicenza não é apenas financeiro ou ambiental.

De acordo com Martina Vultaggio, membro da “We Want Sex” (o comitê por trás do protesto realizado na frente da base no dia 22 de julho), a Itália está lidando com “estrangeiros não integrados”, já que “a vida (para esses soldados) nas bases é muito separada da sociedade em que eles estão”.

 A menos que decidam continuar no país permanentemente, os soldados ficam na cidade “por um máximo de cinco anos”. Além disso, “o contato com a população local é mínimo. Os americanos têm seus próprios bares e pontos de encontro. Não há contato real”. Por isso, segundo Vultaggio, eles desenvolvem “a ideia de que podem agir como turistas, tirando vantagem da situação”.

Publicidade

Protestos contra a abertura da base Dal Molin. Foto via.

A SETAF (Força Tarefa para o Sul Europeu, em inglês), explica Vultaggio, sabe dos riscos do comportamento dos soldados em Vicenza. Apesar dos programas de apoio psicológico, os oficiais não hesitam em “interferir fortemente através da Polícia Militar, porque querem provar que podem lidar os distúrbios”. Ao mesmo tempo, “uma base militar não pode, sob nenhuma circunstância, promover a impunidade”.

A pergunta é: quão comuns são esses comportamentos? E até onde eles chegam? O que aconteceu em 3 de julho de 2013 oferece uma exemplo significativo.

O coronel David Buckingham, comandante de guarnição da base Dal Molin, teve um ataque durante um congestionamento causado pelas comemorações do Dia da Independência na Caserma Ederle. Buckingham se frustrou com um portão que não tinha sido aberto como planejado para liberar o trânsito. De acordo com o Giornale di Vicenza, “o comandante tinha tomado algumas a mais (o que nunca foi confirmado pelo comando militar), e quando lhe disseram que não podia dirigir naquele estado, ele tentou furar o bloqueio”. Depois das investigações, o coronel foi dispensado do dever.

Notícias similares raramente chamam a atenção da opinião pública italiana. De acordo com Cristiana Catapano, membro do movimento “No Dal Molin” e uma das autoras do livro Wars on Demand, “casos de violência fora das bases são escondidos o máximo possível”.

Publicidade

Apesar dos protestos realizados nos últimos anos, tanto contra a construção da base em si quanto contra os cometidos por militares dos EUA, Catapano ainda acredita que “parte da população teria reagido de forma diferente se o estupro e a violência tivessem sido cometidos por outro tipo de estrangeiro. Os cidadãos americanos ainda são visto como pessoas que fazem um bem e melhoram a segurança da cidade”.

A pouca importância dada a esse tipo de notícia também se deve ao fato de que muitas das vítimas são estrangeiras, prostitutas ou pessoas marginalizadas. “É preciso muito esforço para denunciar casos assim”, disse Catapano. “E entre aqueles que decidiram fazer isso, poucos foram compensados e outros nunca souberam o resultado dos julgamentos transferidos para os EUA.”

A história se complica ainda mais com a atitude das próprias instituições italianas, que “de bom grado se desembaraçam desses julgamentos”, muitas vezes por conveniência política.

Mas com o risco de que o julgamento dos dois americanos se transforme numa questão diplomática, ficou mais claro do que nunca o quanto a relação entre a cidade de Vicenza e as bases militares americanas está longe de ser idílica.

@captblicero

Tradução: Marina Schnoor