​'The Last Guardian' é sobre a única coisa pura que resta em nossas vidas: cães
A espera de uma década trouxe problemas técnicos, mas também um personagem primoroso. É, sem dúvida, um dos jogos mais bonitos e sensíveis que já jogamos. Crédito: Sony.

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​'The Last Guardian' é sobre a única coisa pura que resta em nossas vidas: cães

A espera de uma década trouxe problemas técnicos, mas também um personagem primoroso. É, sem dúvida, um dos jogos mais bonitos e sensíveis que já jogamos.

Você já viu um cachorro prestes a se jogar numa piscina pela primeira vez? É um dos maiores prazeres dessa vida. O bicho lá, empolgadaço e morrendo de medo. Ele toca na água, hesitante, preparando-se para pular e aí dá pra trás no último minuto porque sabe deus o que que rola ali dentro. Aí ele volta porque a água é um negócio muito encantador. Assim segue o baile até que o dog tome coragem pra pular e descobrir que a piscina é puro êxtase. Nunca me vi tão fascinado com algo quanto um cãozinho em relação a uma piscina.

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The Last Guardian, um dos games mais esperados de todos os tempos, recria esta cena maravilhosa que descrevi acima, só que, no lugar do cão, há um híbrido de cachorrão, pássaro e dinossauro gigante chamado Trico.

Como nas duas outras obras-primas de Famito Ueda, diretor do game e seus antecessores, Ico e Shadow of the Colossus, The Last Guardian te joga no meio de seu mundo sem muito contexto. Você controla um molequinho adorável que acorda em uma câmara misteriosa do lado daquela besta enorme. Trico morre de medo, mas também precisa de ajuda com uma lança enfiada na lateral. A única forma de sair dali é por meio da união desta improvável dupla.

O garoto pode colocar suas mãozinhas em itens como a lança, rastejar por lugares apertados e apertar botões. Trico, por sua vez, pode derrubar obstáculos, esmagar inimigos e atravessar enormes abismos enquanto o menino se prende às suas penas e à sua própria vida. Você controla o moleque como qualquer outro personagem em um game, mas fazer com que Trico faça qualquer coisa não é bem uma ciência exata. Você tem que pedir a ele repetidas vezes para fazer algo e torcer pra que ele entenda. Muitas vezes, como um dog na vida real, ele nem dá bola.

Há algumas instruções na tela que explicam o funcionamento dos controles, mas The Last Guardian tanto dentro de sua ficção como na execução de seus quebra-cabeças, é algo que menino e criatura precisam desvendar juntos. Tudo se passa em um mundo desolado cheio de ruínas cobertas por musgo e pontes decadentes – aquele tipo de coisa antiga e mágica – e tudo seria muito assustador não fosse meu amigão penoso.

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Falo "amigão" por falta de palavra melhor. Dizemos muitas vezes que o cão é o melhor amigo do homem, mas se você já teve um cachorro nessa vida sabe muito bem que "amizade" não define muito bem essa relação.

Nunca tive um cachorro até o ano passado, quando adotamos um vira-lata chamado Gordo. Passados alguns meses, entendi porque geral pira num dog e logo virei um louco dos dogs também. Ter um cachorro não é só ter um amigo: é uma relação única, da mesma maneira que ter irmãos, filhos ou ser casado é, cada um ao seu modo. Também é algo que parece crucial. Cães e humanos evoluíram juntos ao longo de milhares de anos por razões mutuamente benéficas. Humanos ganharam companhia, uma forma de livrar-se da ansiedade e guarda-costas leais, ao passo em que cães ganharam abrigo, comida e cafunés na cabeça.

Meu Trico que chamei de Gordo. Image: Emanuel Maiberg/Motherboard

Digo tudo isso para, além de querer te convencer a adotar um cão, ilustrar que a ligação que se cria com um cachorro é profunda, complexa e significativa de uma maneira complicada de expressar em palavras, o que faz de The Last Guardian muito mais impressionante. O jogo consegue repassar as principais sensações desta antiga relação de uma maneira única ao meio em que se apresenta.

Teria sido fácil para The Last Guardian aparecer com uma criaturazinha terrivelmente fofa para depois fazê-la sofrer, conseguindo, assim, grande efeito emocional. Mas rola o contrário: Trico não é nada bonitinho, ao menos não de forma previsível; em vez disso o bicho te toca com uma linguagem corporal criada magistralmente com movimentos sutis de suas orelhas. Elas se dobram quando ele está com medo, viram-se rumo ao barulho e levantam quando ele está em estado de alerta.

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Pequenos e críveis momentos – como fazer Trico pular em um lago, sacudir pra se secar e então coçar uma das orelhas – ajudam a tornar memoráveis os grandes momentos, como se segurar no bicho pelas penas enquanto ele corre e salta de uma ponte em ruínas a vários metros de altura. Na maioria dos jogos, as coisas funcionam porque parecem bacanas ou o jogador pode fazer algo inédito. Em The Last Guardian, funciona porque eu me importo mesmo com o que vai acontecer com aqueles personagens.

Crédito: Sony

O game cumpre tal efeito com algumas das melhores animações que já vi em um jogo. Em outras áreas The Last Guardian não tem como competir. O título surgiu como um projeto para Playstation 3 em 2007 e é exatamente com isso que se parece, com texturas borradas, framerate baixo e problemas com câmera. Em 2016 um game tem que ser excepcional para superar estas falhas e, adivinhem só, é exatamente o caso de The Last Guardian.

Me esforcei bastante para me importar com games nos últimos meses – a maioria deles sobre violência. Tentar fazer com que Trico me seguisse, assim como nos momentos que tenho que implorar a Gordo que não lamba tanto seu próprio traseiro, não é o que eu chamaria de fantasia de poder, e sim uma bem-vinda mudança de ritmo. No lugar de me fazer sentir poderoso, The Last Guardian se dedica mais a fazer como que me importe com algo além de mim mesmo.

Este clima mais vulnerável e sensível está no âmago dos outros títulos de Ueda, e não foi até começar a jogar The Last Guardian que percebi a falta que ele fazia durante esta última década.

Tradução: Thiago "Índio" Silva