Matéria originalmente publicada no Noisey US .
Kevin Lyman está cansado. Na noite em que conversamos, Kevin teve um longo dia, cheio de emails e mensagens a respeito do grande anúncio que havia feito naquela manhã: a Vans Warped Tour, festival de raízes punk criado pelo próprio em 1995, terá sua última edição em 2018. Mas o cansaço de Lyman não é de hoje: ele está envolvido diretamente com a realização da Warped Tour há 22 anos e isso tem pesado em suas costas, hoje com 57 anos. Ele tem tinnitus, fez cirurgias no joelho e calcanhar, comenta. “Você se olha no espelho pensa: Onde foi parar todo aquele tempo?”.
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Ao longo de mais de duas décadas, a Warped Tour tornou-se uma espécie de rito de passagem para jovens curtidores de música, atraindo milhões, especialmente nas cidades pequenas dos EUA pelas quais passava, onde cenas musicais meio que inexistem. O que começou como uma reunião modesta de bandas punk e de ska como NOFX, Bad Religion, The Mighty Mighty Bosstones e Sick of It All, tornou-se uma operação multimilionária que incorpora uma ampla gama de gêneros, do hip-hop ao metalcore e pop mainstream. O evento ajudou a bombar a carreira de gente como Eminem, Black Eyed Peas e Katy Perry. Pro bem ou mal, a Warped Tour teve um impacto gigantesco na direção seguida pela música alternativa.
A Warped Tour também teve lá suas controvérsias, especialmente nos últimos anos. Em 2015, Lyman foi atacado por permitir que Jake McElfresh, que se apresenta sob o nome Front Porch Step, se apresentasse no show da tour em Nashville mesmo após denúncias de que McElfresh usava suas redes sociais para pedir fotos íntimas de fãs menores de idade. E agora, em meio à alegações de atos impróprios de natureza sexual mais frequentes à bandas que se encaixam nesse molde da Warped Tour, muitos acreditam que o evento estava rumando para um julgamento aberto nas redes sociais.
Apesar das histórias negativas que levaram a Warped Tour às manchetes, Lyman está otimista de que o legado do evento será o trabalho em prol de organizações sem fins lucrativos e sua filantropia. Lyman, que administra a empresa de talentos e estratégia de marca 4Fini Inc, também fundou uma organização chamada Unite the United, que já levantou grana para diversas outras entidades sem fins lucrativos. Além disso, ele recebeu o Humanitarian Award da Billboard em 2009 por seu trabalho filantrópico.
Logo após nossa entrevista, a assessoria de Lyman me enviou um email a pedido do mesmo, “das centenas que chegaram até então”, de um jovem fã que agradece à Warped Tour, mais especificamente à banda Handguns, por salvar sua vida após sair de um coma diabético. São estas experiências que fazem da Warped Tour um empreendimento que vale à pena para Lyman, mas agora é hora de seguir em frente. “Lembro que a primeira banda que vi na vida foi o Van Morrison e como aquilo me arrepiou”, comenta. “Sempre disse: quando não rolam mais esses arrepios, é hora de cair fora.”
Esta entrevista foi editada para fins de clareza.
Noisey: Você se lembra do momento em que decidiu que este seria o último ano?
Kevin Lyman: Provavelmente a coisa toda durou um ano a mais que eu acho que deveria, mas assim que se toma uma decisão, há um ano inteiro para levá-la adiante. Temos contratos com patrocinadores, tem toda uma conversa com as bandas, todos estão em cima disso no momento.
A Warped Tour está ligada a você em um nível muito pessoal. Você chegou a pensar no que aconteceria caso o evento continuasse? Você acha que algo de ruim aconteceria mais a frente?
De forma alguma, pode bater na madeira aí. Pudemos prever tudo que estava rolando e promover um evento seguro para a molecada, só achei que era hora mesmo. A indústria musical mudou tabém. Quando começamos isso aqui, haviam poucos festivais itinerantes. Tínhamos o H.O.R.D.E., Lillith Fair e Ozzfest, hoje são mais de 900 festivais nos EUA e nem todos ligados a este tipo de som, mas as bandas se veem obrigadas a estar na estrada o tempo todo, pra compensar pela grana que não ganham com CDs, então é complicado montar algo único para rodar por uns dois meses.
Qual sua opinião sobre o legado da Warped Tour e que impacto você acredita que o evento teve no punk?
Criamos diversas entidades sem fins lucrativos que hoje tem atuação nacional. Tem muita banda que hoje cai na estrada direto. Creio que Katy Perry ter tocado na Warped Tour como sua primeira grande turnê a ajudou a se tornar uma boa artista ao vivo e também uma boa cidadã. Ela se envolveu com estas entidades. Eu faço parte da diretoria da MusiCares e naquele primeiro ano conosco, ela veio com a gente e tocou no show beneficente depois. Nem tudo são flores, mas nem tudo são espinhos também, a verdade é que estou cansado e tudo bem ficar cansado aos 57 anos quando ainda está naquele esquema jovem de fazer 18 shows seguidos. Já tive amigos que vieram trabalhar comigo por dias e disseram “Caralho, Kevin, não aguento mais não.”
As recentes alegações e denúncias contra bandas com rapazes na formação contribuíram para isso? A Warped Tour já teve problemas nesse sentido no passado.
É um problema com o qual lidei da melhor forma que pude. Eu sempre sou bastante proativo e por isso acabei me envolvendo com A Voice For The Innocent . Dei início a este festival para juntar um monte de bandas e skatistas, acabou virando todo um fenômeno cultural e eu lido com tudo do jeito que posso. Ao meu ver, isso consistia em envolver o pessoal da Voice For The Innocent e demais organizações, que agora viajam conosco. Eu os subsidio pra que venham conosco e estejam presentes para as pessoas, tratamos de tudo da melhor forma que pudemos enquanto evento que não faz parte da vida destas bandas o tempo inteiro — eles passam dois meses do ano com a gente e só.
Claro que integrantes de bandas sendo acusados de estupro não é um problema só da Warped Tour.
Não mesmo, dá uma olhada no que rola no hip hop agora. Mas a Warped Tour acaba ganhando destaque por um festival dominado por bandas formadas por rapazes, diante de um público adolescente, predominantemente feminino. É quase como uma receita pro desastre.
Indo fundo nisso tudo, quanto dessas coisas rolaram em uma Warped Tour? Sei de comentários sobre uma ocorrência que realmente ocorreu em um evento nosso, mas vale a pena investigar o quanto aconteceu na Warped Tour de fato.
Bom, talvez tais abusos não tenham sido denunciados? Creio que uns 80% dos abusos sexuais não são relatados.
Só dá pra saber se denunciam, não? Então lidamos com isso quando… No começo da Warped Tour, tinha um jeito de lidar com essas coisas.
E como era?
Digamos que um integrante de uma banda usasse uma camiseta com a palavra “cunt”, pegávamos esse cara e o alertávamos: “Você tem duas opções: ou come essa camiseta ou a tira não usa nunca mais e eis porquê.” A Warped Tour é tocada por mulheres, não sei se você sabe disso. Além de mim, a produção é… A Warped Tour deu mais vagas para produtoras que qualquer outro evento no ramo. É um ambiente extremamente seguro para uma mulher em turnê e nós ficamos em cima da banda provavelmente bem mais que qualquer outro evento que rola por aí. Mas se alguém quer mesmo arrumar encrenca, vai arrumar, né?
Eu sei que você sofreu represálias por chamar Jake McElfresh do Front Porch Step pra tocar. Você se arrepende?
Fiz o melhor que podia no momento, certo? Quando o tiraram da tour, seus conselheiros, um pessoal envolvido com a MusiCares que estava lidando com ele, chegou e me disse “Achamos que não tem problema se ele fizer um show”. São profissionais, você os ouve.
Mas ainda assim você está colocando o cara na frente de várias adolescentes.
Ele estava sendo monitorado. Chegou, tocou 25 minutos e foi embora.
Então era uma questão de reabilitação e nada mais? Isso-
Bom, foi como me trouxeram a questão e como disse, são profissionais. Tem vezes na vida que — eu já fui produtor do Jane’s Addiction — e consultei fontes externas, o tirei da Warped Tour e quando olho pra trás e não foi… Bom, levando em conta as milhares de pessoas e 11 milhões de fãs que temos pelo país, acho que mandei bem demais.
Com certeza os pontos negativos ganham destaque e claro que tudo sobra pra você, no papel de fundador. Mas uma banda que sempre pareceu fora da curva na Warped Tour, até por atraírem bastante gente, era o Falling In Reverse. O frontman, Ronnie Radke, saía da tour pra participar de julgamentos de um assassinato no qual acabou sendo acusado e foi convidado a tocar no evento de novo. Depois ele optou por um acordo quanto à acusação de ter batido em sua namorada e mais uma vez voltou a tocar na Warped Tour. Qual foi a motivação nesse caso?
Essa é uma conversa pra se ter com gente como Brett Gurewitz [fundador da Epitaph Records] e não Kevin Lyman, sabe? Ele também foi acusado de estupro ou agressão em Salt Lake City, lembra? A garota voltou atrás na história todinha. Sendo bem honesto, quem dirigia a van deles era um dos meus produtores que trabalha comigo há 20 anos, que me contou que eles estavam tentando levar a garota pra casa, enquanto ela tinha uma overdose. Nada disso é um ato aleatório de “olha só, vamos arriscar a vida dos outros”.
Não quis insinuar nada disso. É só que, com essa ficha corrida, foi mesmo uma boa colocar esse cara na frente de um monte de garotas?
Ele não interage com as mulheres, ele toca e vai embora.
Digo —
Acho que estamos entrando numa área meio esquisita porque você deveria estar entrevistando todo um outro pessoal — ele faz parte de uma gravadora, tem uma agência responsável por isso, que também trabalha com mulheres, mas continua trabalhando com o cara, certo?
Mas não é porque ele trabalha com mulheres que consegue se livrar desse tipo de coisa.
Não, não, não, estou falando que é o contrário e é preciso olhar o outro lado de um cara como Ronnie — ele é o que mais faz caridade na Warped Tour com a molecada de nossos projetos Make-A-Wish e Living The Dream. Não vejo ninguém falando disso.
É, tem bastante coisa ruim que acaba eclipsando isso daí.
É nisso em que focamos, como eu disse, focamos no que tem de ruim. E nós vemos aquele cara passando horas com moleques em cadeira de rodas que tem doenças terminais e ele faz um almoço especial pra eles, fica de rolê com eles, sobe no palco, deixa que cantem com ele. Não é um mundo perfeito, entende? Não mesmo.
Ele se meteu em uma bizarra controvérsia online em torno da Warped Tour no ano passado, com aquele incidente da Dickies, uma verdadeira tempestade que lembrava os velhos dias do punk de “Vou falar o que bem entender e que se foda” batendo de frente com a nova onda do gênero mais voltada para diversidade e questões sociais. Você tem pensado nisso após todos esses meses?
Com certeza. Tentamos ser um evento que engloba 40 anos de pessoas, pense só nisso. Acredite, eu pensei mesmo. Tenho 57 anos e posso bater um papo com esse pessoal e entender a deles, se em algum momento as pessoas sentassem pra conversar… A gente costumava fazer isso. O punk rock nem sempre foi controverso. Eu trabalhei em LA nos anos 80, mas rolavam essas discussões e agora tudo vira alvo de debate público muito rápido. Sentei no ônibus depois que tudo aconteceu pensando “Porra, se tivessem vindo na minha tenda…”. Um dos motivos pelos quais estou sempre presente é poder resolver as diferenças do pessoal, mas aí me liguei que tem caras de 60 anos em turnê com moleques de 20 e ninguém nunca fez isso antes. Muita coisa não foi feita até a Warped Tour acontecer. E foi aí que me liguei que talvez tudo tivesse ficado muito espalhado.
Você agenda os shows desde o começo. Como mudou esse lance todo punk desde o início com NOFX, Anti-Flag e Bouncing Souls?
O Anti-Flag ainda toca com a gente, tocaram no verão passado. Eu gosto quando eles tocam porque eles tem algo a dizer e não se importam de ser um público amplo já que esperam que eles possam querer ouvir o que tem a dizer.
Eu venho do punk, organizei todos os shows do Goldenvoice, esse é meu mundo. Quero que o punk volte, mas é estranho todo mundo me pedindo por NOFX, Bad Religion e Pennywise. Precisamos de bandas novas e é por que isso que acabo colocando bandas como Interrupters no evento, precisamos de bandas que tenham uma mensagem e é por isso que o Anti-Flag sempre é bem-vindo na Warped Tour.
Você acredita que a Warped Tour ajudou a definir os rumos do punk ao longo dos últimos 22 anos?
Acho mantivemos o estilo visível. Mesmo no início, bandas como Pennywise, Bad Religion e NOFX eram underground. Quando Limp Bizkit e aquele tipo de som entraram na moda, acho que mesmo aquelas bandas, se você fosse trocar uma ideia, viriam e tocariam pra renovar seus públicos.
Em termos de gosto pessoal, qual sua fase favorita da Warped Tour?
O início. Por isso fiz o It’s Not Dead Festival na costa oeste. Fiz por mim mesmo. Faz sentido? Percebi que a Warped Tour continua porque não estou botando só as coisas que eu quero ver.
Qual o seu objetivo ao marcar os shows da Warped Tour, então?
Tentar apresentar novas gerações a shows e rock e punk, esse tipo de som em vez, digamos, hip hop e EDM.
Quanto disso é ditado por “vamos dar à garotada o que querem” x “vamos falar pra essa galera o que eles devem curtir”?
Analisando a história da Warped Tour, sempre tem banda com influências punk e ska. Eu tinha esperanças nessa nova onda de hip hop, achei que seria como com as coisas que já trabalhei antes — Public Enemy e NWA, mas não é. É um negócio meio tonto, na minha opinião, com algumas exceções. Tenho que concordar com o Eminem com o que ele falou sobre esse mumble rap ser uma merda.
Qual você acha que será o legado da Warped Tour em um ano, cinco anos, dez anos? E o que você espera que seja?
As entidades sem fins lucrativos, sendo bem sincero. To Write Love On Her Arms, Hope For The Day, A Voice For The Innocent, todas essas entidades que começaram numa barraca e agora ajudam essa geração da melhor forma possível.
Do ponto de vista de um fã, certamente o mais memorável é a época em que viram a Warped Tour.
Recebo emails e mensagens todos os dias – a gente pode muito bem discutir todas as coisas negativas, mas pra cada um desses tem centenas de pessoas me dizendo “isso aqui influenciou minha vida positivamente”. E isso aí ajudou essas pessoas a montarem uma banda, uma marca, trabalhar em uma entidade sem fins lucrativos ou ver a vida de maneira um pouco diferente. E esse legado viverá porque sempre que vou a festivais agora, todas as equipes gigantescas de festivais como Coachella e Bonnaroo, a grande maioria começou no estacionamento da Warped Tour, seu primeiro trampo ali naquela tour. Fizemos um festival em Nashville — prestamos consultoria pra muitas coisas. Com aquele preço do Warped, tenho que trabalhar em outras coisas pra fazer tudo funcionar [risos].
Mas você estava indo bem com a Warped Tour, não? Não dava pra se manter só com ela?
De jeito nenhum. A Warped Tour só lucrou com ingressos em um ano.
Certo, mas tem outras formas de ganhar dinheiro, não? Ela não era lucrativa o bastante?
Sendo sincero, não ganho grana com a Warped Tour há três anos, mas amo fazê-la. Tinha uma cervejaria que vendemos pra MillerCoors. Foi demais. Um monte de surfistas e skatistas fundaram uma cervejaria, a que crescia mais rápido na história norte-americana, o que foi bem foda. Agora eu estou trabalhando num esquema de água de coco, ajudou Hayley Williams com sua empresa de tintura pra cabelo. Vou ter tempo livre pra isso. Nos últimos anos todo mundo recebia direitinho, mas é não como se eu estivesse rolando na grana.
Parece que desde os primórdios a Warped Tour foi um imã de controvérsia. Por que você acha que as coisas são assim?
Era assim lá atrás?
Lembro que nos primeiros anos de Warped Tour, diziam que ela estava tirando das cenas e bandas locais ou casas de show locais.
Éramos o único evento de porte nacional que metia uma banda local no line-up. Sempre tivemos um palco local. É só olhar pra trás — o Godsmack já tocou num palco menor desses, mas eu também queria mostrar que as bandas que faziam esses shows em casas noturnas e davam o sangue pra fazer a parada rolar, que se unissem pra mostrar o quão importante a música era. Mas se você não sai do esquema das casas de show e boates — tem quem queira tocar nesses lugares pro resto da vida — independente do que dizem, todo mundo ama tocar pra um público maior. Parecia que tínhamos como fortalecer a cena, então me juntei à SideOneDummy Records e se a galera admirava Epitaph Records e Fat Wreck Chords, todos nos juntávamos pra mostrar o quão importante o som era e mais gente prestaria atenção, então qual o problema? Daí rolou coisa tipo o Blink-182, que pegou carona nessa, mas não tinha como se bancar na Warped Tour.
Sério isso?
O pagamento deles naquele verão foi pra bancar o ônibus e pra isso tiveram que usar camisetas da Hurley no palco.
Uma coisa que sempre me intrigou foi a Barbeque Band. Como funciona isso?
O Lagwagon, que certamente você conhece, fazia um churrasco e distribuía uns cartões que diziam “Lagwagon Barbeque” e somente com um desses você podia comer o churrasco dos caras. Porra, somos todos amigos e achava meio merda, as outras bandas mereciam um churrasco, o Sugar Ray merecia comer um churrasco, então que comam! Daí mandei tudo à merda e começamos a promover o Warped Tour Barbeque. O problema é que às vezes saímos correndo pra chegar na próxima cidade, o que complica com a adição de churrasco quente no meio da parada. Então tive que comprar um daqueles trailers de churrasco enormes. O primeiro acabou numa vala, quebrou uma roda. Mas o segundo, PBR, quando a PBR estava voltando à ativa, eles construíram um que parecia uma lata da cerveja, da Pabst Blue Ribbon. E o trabalho da Barbeque Band é fazer churrasco toda noite e levar esse churrasco pra próxima cidade, tudo isso enquanto tocam no evento e tiram uma grana.
Então eles trabalham pra tocar?
É por aí, ganham tempo de show completo, vendem merchandising, discos e ainda os pago.
Mas eles também tem que fazer churrasco.
Isso aí, eles correm no Sam’s Club, Costco ou qualquer outro lugar pra comprar uns hambúrgueres vegetarianos e cachorros-quentes. A ideia do churrasco era reunir todo mundo mesmo. Trabalhei como gerente de palco no Lollapalooza e tentava reunir os patrocinadores no backstage e as bandas não topavam, e aí eu dizia que éramos todos parte de uma só comunidade. A ideia era juntar todos ao final de um dia duro de trabalho, pro pessoal se conhecer. E foi assim que a Vans — quando eles entraram na Warped Tour, não colocaram banners no palco — foi conhecendo a galera e ganhando esse direito.
Uma coisa que sempre vejo reclamarem é das tendas de recrutamento do exército no evento. Isso parece ir contra os princípios do punk.
É uma pegadinha porque logo no começo da tour, tivemos uns problemas — muitas vezes você acaba tocando num pico da Live Nation e eles têm seus esquemas com o exército. De primeira trabalhamos com a Guarda Nacional e tudo bem, mas… Quando foi lance no Iraque mesmo?
2003.
Aí em 2003 viramos uma nação guerreira de novo. O Exército me abordou e me mostrou que estavam usando um game pra recrutar gente. Rolava tudo num caminhão preparado pra rodar esse game em 3D e eu disse que não rolaria, que não poderiam mais fazer isso, porque não estavam mostrando os ideais do exército. Porque se fosse pra mostrar aqueles caixões voltando pra casa… Com um game, me parecia mais um golpe. Não tivemos nada a ver com o exército por uns 10, 11 anos, e a única vez que apareciam era por conta de algo com a Live Nation, AEG e os promotores locais — então tinha que deixar os caras entrarem.
Mas aí o Exército apareceu com uma artista que adorava a Warped Tour.
Foi Corrin Campbell?
Ela mesma. Nunca tinha nenhum problema com o exército, mas sim com nossos governantes e o que eles fazem com a instituição às vezes. Além do que, eu viajo pelo país e e vejo toda essa molecada sem opção. Então lá por 2012 ou 2013, sabíamos que íamos a outros países e teria gente morrendo, então o exército apareceu com Campbell e eu aceitei que participassem da tour por uns anos. Ela tocou e fez muito trabalho de caridade por um tempo, mas sendo bem sincero, no terceiro ano que deveriam participar, pisaram na bola.
Como assim?
Foi bem pesado… Eles deveriam participar mais um ano e eu tirei os caras do esquema no dia 3 de julho e nunca mais trabalhos com os militares.
Alguma das bandas lá, como Anti-Flag, NOFX e outras bandas políticas tinham algum problema com esse recrutamento rolando?
Conversávamos sobre tudo isso na minha barraca. Anti-Flag e NOFX iam lá e faziam seus sons — nem sei se o NOFX ainda participava, tem que verificar os anos aí — mas o Rise Against tocou uma vez quando o exército estava no meio. Era tipo ter um açougue e a PETA no mesmo lugar.
É, mas parece que você estava criando uma indústria em que está preparando jovens pro exército.
Eles não são obrigados a irem à tenda do exército, só se quiserem. Não estou preparando ninguém. É uma plataforma, e o punk rock era uma plataforma, há uns anos o Students For Live queria participar de uma Warped Tour.
Aquela organização pró-vida?
É, e aí começaram a falar “Kevin Lyman é um apoiador subversivo do movimento pró-vida”. Nem fodendo. Eu fui o primeiro a fazer shows pró-escolha em Los Angeles. Lembra do Rock For Choice, essas coisas? É isso que eu apoio. Mas ainda assim troquei uma ideia com aqueles moleques do Students For Life e te digo que são boa gente. Não concordo com o que pensam, com exceção de um ponto: eles são pró-adoção. E quer saber? Eu fui adotado. Permitir que eles estivessem ali trouxe o pessoal do Planned Parenthood e gente da região, para que tivessem suas vozes ouvidas. Sempre ligávamos primeiro pro pessoal do Planned Parenthood, todo ano. Não buscávamos os Students For Choice. Conseguimos fazer com que mais gente se mexesse e apresentassem um contraponto ao permitir que eles estivessem ali.
É, mas nós dois somos adultos que conseguem fazer esse tipo de separação, já adolescentes são muito mais impressionáveis.
Ninguém é forçado a nada. Alguém te acertou com uma lata de Yoo-hoo na cabeça?
Tem uma diferença enorme entre o complexo militar norte-americano e a Yoo-hoo.
Essa é a sua opinião, mas ninguém te obrigou a ir até eles. Não tenho o número certo, mas de 18 a 20% do público é militar.
Já eram militares?
Já eram militares e vinham aos shows. Recebemos muitas cartas de pessoas dizendo que este é um show em que podem ir, onde vão ver música. Com o salário de um soldado, não sobra pra ir em outro lugar, então eles economizam e aproveitam a folga na Warped Tour. Quando Chuck D esteve na Warped Tour, sentamos na mesma tenda e ele debateu com um monte de fuzileiros. Ele dizia “Não sou contra vocês, mas nossos governantes”. E muitos diziam “É, mas eu preciso cumprir minhas ordens”. Fizemos várias coisas de forma não-controversa. Punk rock — você parece já estar nessa há um tempo — punk rock era colocar coisas em evidência e debatê-las, mas não dá pra fazer isso nas redes sociais porque não tem como debater e educar ali, então botar as pessoas para falarem não é algo ruim.
A Warped Tour tem sido um imã mesmo. Eu ganhava muito mais fazendo turnês mundiais pro Jane’s Addiction, Nine Inch Nails e Stone Temple Pilots. Fiz três turnês mundiais ao mesmo tempo pra eles. Ganhei muita grana e tudo que fazíamos era vomitar o mesmo show todos os dias. A Warped Tour é diferente todos os dias, e por vezes isso acaba incomodando. Eu mesmo não fiz tudo certinho e desafio qualquer no mundo a fazer o mesmo que eu de uma maneira melhor.
Fazer um festival não deve ser nada fácil
Não mesmo, e todo mundo pode virar especialista do conforto do sofá.
Qual foi a barra mais pesada que você teve que aguentar?
2015 foi foda. E eu realmente achava que era preciso responder qualquer um tuitando. Pensava que se alguém te mandou uma mensagem daquelas, responder era o mínimo.
E como mudou essa visão das coisas?
Você não deve nada e eu ainda nem sei como faz pra mandar DM, mas me manda um email, me liga. Quer chegar junto e trocar uma ideia? E teve uma galera que veio mesmo e tive excelentes conversas com essas pessoas, aprendi com elas e acho que elas comigo, mas quem continua atacando — e acredite, foi bizarro ser um homem de 54 anos nesse mundo, eu sinto por esses jovens. Eu vi o que acontece nas redes sociais e também percebi que todas as ameaças de morte vem depois da meia-noite.
No verão passado, descobri que uma pessoa que me atacava tinha 221 perfis. E num desses, acabou deixando escapar seu nome e endereço, então fui atrás da mãe dela, uma corretora em Indiana.
Meu deus, pra dar uma bronca nela?
Pra informar a responsável, não dar uma bronca na filha, que vinha ameaçando a mim e minha família. Liguei pra mãe e disse “Sua filha é a fulana?” e então “Entenda, eu não sou um esquisitão, sou pai também”. Criei meus filhos em meio à Warped Tour e são pessoas excelentes — um cuida das minhas organizações sem fins lucrativos, outro está se formando em física. Disse à ela “Queria só lhe informar que, não sei se você sabe, mas tenho certeza que enquanto você passa o dia trabalhando, sua filha fica ameaçando famílias de morte”. E quer saber? Três dias depois a mulher me ligou agradecendo.
Quando você acordar na manhã depois da última Warped Tour, vai fazer o que?
Desta vez, encerraremos na Flórida. Então vou pescar com uns amigos, como faria normalmente, então voltar pro trabalho. Tenho muita coisa pra fazer fora a Warped Tour. Ficarei triste. Pude ver 43 pôres do sol diferentes por 20 e poucos anos, todo verão. Mas também cansei de atrair problemas.
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