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Todas as fotos cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert.

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Cultură

Cinema ambulante em África e o português que quer melhorar o Mundo... um filme de cada vez

O Cinéma du Désert​ existe desde 2009. Viajam de camião pelo Continente Africano, plantam árvores pelo caminho para reduzirem a pegada ecológica e, nos sítios onde param, montam um cinema.

O projecto chama-se Cinéma du Désert e nasceu, literalmente, num camião. Os seus criadores acreditam no poder da imagem como ferramenta de ensino, capaz de fazer a ponte entre diferentes culturas. Defendem o acesso gratuito à educação e à cultura como a base necessária para um amanhã melhor e vivem pelo lema “Empowering people through storytelling”. Por isso, os filmes que escolhem projectar são, na sua maioria, documentários sobre sustentabilidade e consciência ecológica, sobre os perigos da imigração por terra ou, para os mais pequenos, desenhos animados.

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O Cinéma du Désert existe desde 2009. Viajam de camião. Fazem quilómetros e quilómetros por dia pelo Continente Africano, plantam árvores pelo caminho para reduzirem a pegada ecológica e, nos sítios onde param, montam um cinema - alimentado a energia solar - para proporcionarem a experiência a quem não lhe tem acesso normalmente. Com a única condição de serem aceites pelos chefes das tribos e pelas pessoas das aldeias, estacionam o camião e, ali, num deserto de informação, sob o calor africano e entre o fosso cultural, deixam o cinema falar por eles.


Vê: "'Balas & Ballet': dançar para sair da favela"


João Meirinhos, português e alfacinha, faz parte do projecto desde 2010. Firme crente no poder do audiovisual, defensor ávido do acesso à educação, crítico de qualquer discurso de ódio e grande viajante, realiza e edita filmes e organiza sessões de poesia com o Lab.I.O – Laboratório de Interacção e Oralidade. Isto, claro, quando não está a viajar por África, numa tentativa voluntária de enaltecer a cultura e iluminar o deserto com a luz do grande ecrã.

Falámos com ele sobre o projecto, sobre o dia-a-dia de uma vida num camião a percorrer as estradas africanas, sobre o aumento dos discursos de ódio na política mundial, as diferenças culturais que encontrou e sobre como quando todos nos ajudamos, quando tentamos remar juntos em direcção a um Mundo melhor, percebemos que “a identidade é plasticina, o nacionalismo é uma ilusão colectiva e somos todos meros viajantes no espaço-tempo".

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João Meirinhos, membro do Cinéma du Désert. Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

VICE: Olá João! De onde nasceu a ideia do Cinéma du Désert?

João Meirinhos: Surgiu de forma repentina, para agradecer a uma senhora no interior do Mali pela sua hospitalidade. O casal italiano que desde 2009 organiza e participa em todas as expedições, Davide Bortot e Francesca Truzzi, decidiram tirar o projector do camião e ver um filme com os habitantes da aldeia. Acabaram por se juntar centenas de pessoas e o serão durou até acabar a gasolina para o gerador - hoje em dia usamos energia solar para alimentar o cinema, já que era um pouco contraditório exibir documentários sobre sustentabilidade e usar gasolina. Infelizmente, o mesmo não é possível com o camião, mas tentamos compensar o nosso impacto ecológico plantando árvores ao longo do caminho.

Nos primeiros anos, providenciámos a várias pessoas aquele que foi o seu primeiro contacto com a imagem em movimento. Desde então, muita gente se juntou ao projecto em mais de 20 países, três continentes e 130 mil quilómetros. Desde activistas, voluntários, viajantes à boleia, pessoas que andavam a calcorrear o Planeta a pé, músicos, artesãos, grupos de teatro, de circo, cineastas, antropólogos, gente que se propôs a viajar grandes distâncias em camiões que servem de casa, de cinema e de escritório, ainda que depois algumas se tenham arrependido. E quem sabe quem vai aparecer por aqui amanhã de manhã…

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

Cada expedição assume um objectivo diferente. Começou de forma muito informal, muito livre, “sem bilhete de volta”. Podíamos ficar quanto tempo quiséssemos, desde que houvesse recepção positiva dos chefes da aldeia para mostrar filmes ou fazer qualquer outro tipo de trabalho que tivesse sentido naquele tempo e espaço. No nosso site podem explorar os projectos paralelos que foram desenvolvidos ao longo dos anos, graças ao acaso da estrada.

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O que esperam conseguir com este projecto? Estão ligados a alguma ONG?

Estamos ligados à ONG italiana Bambini Nel Deserto desde o início, apesar de a primeira iniciativa de viajar por terra até ao Burkina Faso (16 mil quilómetros em seis meses) tenha sido nossa, tal como a ideia do Cinéma du Désert. Aliás, acho irónico que o Cinéma du Désert receba mais visibilidade por parte dos media do que a ONG, que já desenvolve projectos há quase 20 anos. Construir poços, escolas, orfanatos e doar materiais de saúde básica parece que não é tão ‘sexy’ como uns jovens diagnosticados como excêntricos – meio hippies, meio punks – a viajarem pelo Mundo fora em camiões, a mostrar cinema nas aldeias mais escondidas que encontram.

O cinema abre as portas para nos começarmos a conhecer. Dentro da nossa experiência na África Ocidental – em particular, no Burkina Faso – no dia a seguir ao cinema, somos invariavelmente abordados com planos para novos projectos de desenvolvimento local, por exemplo de microcrédito, já que, por estes lados, ser branco é, automaticamente e aos olhos da maioria, um símbolo de riqueza. Em seguida, tentamos desenvolvê-los. São modestos, mas sinto que todas as iniciativas são frutíferas.

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

O que achas de todos os discursos anti-imigração que surgem hoje nas agendas de políticos pelo Mundo fora?

Acho previsível. Aproveitam-se do desespero provocado pelo crash económico para culpar o “outro” indiscriminadamente. Infelizmente, ainda temos uma mentalidade muito tribal e egoísta. Não é que seja a favor da aceitação cega de todo o imigrante, mas a total ausência de solidariedade de alguns políticos em relação a comunidades inteiras que viram a sua vida ser devastada pela guerra é… chocante. Guerras essas que, quase sempre, têm origem ou são fomentadas pela geopolítica europeia. Claro que temos de ajudar! É a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. E

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96 anos mais tarde, Bolsonaro ganha as eleições no mesmo dia em que Mussolini marchou sobre Roma (28 de Outubro), iniciando o primeiro de muitos regimes fascistas europeus. A história repete-se quando nos esquecemos dos erros do passado.

Conta-me tudo sobre a última digressão que fizeste com o Cinéma du Désert.

Foi na Costa do Marfim, de 10 de Novembro a 20 de Dezembro [de 2018]. O camião estava estacionado num convento de freiras e guiámos até à capital-metrópole, Abidjan (a 1.300 quilómetros) para produzir 27 serões de cinema, dança, debates e de música, no caminho até à cidade de Korhogo, que é um dos pontos de passagem da imigração clandestina na África Ocidental. O camião regressou, em seguida, ao Burkina ( mais 1.300 quilómetros, o que, para o que estamos habituados, é uma tour pequena).

Em média, costumam estar presentes cerca de 300 ou 400 pessoas. Houve dias de cerca de 700 - é impossível contar ao certo. Esta digressão chamava-se "CinemArena Côte d’Ivoire" e foi financiada pela Agência de solidariedade italiana AICS e pelo departamento da ONU dedicado à migração. A campanha consistiu na exibição de material de sensibilização sobre os perigos da imigração ilegal por terra, focando-se especialmente no perigo de passar pela Líbia. Isto porque continua a morrer gente no Mediterrâneo e, também, porque não se fala o suficiente dos raptos e das absurdas violações de direitos humanos que os imigrantes sofrem ao fazerem estas jornadas, principalmente em países como a Líbia, o Iémen, Eritreia, Tchad e Congo.

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

Como é o teu dia-a-dia numa digressão?

Primeiro café italiano. Este camião não tem casa-de-banho, pelo que o passo seguinte é encontrar uma, o que no Burkina não é fácil, devido ao calor, aos insectos e à ausência de sanitas a nível nacional. Encontra-se um buraco. Também não temos duche, aquecemos água em baldes ou arranjamos um parque que a disponibilize. Depende tudo dos sítios, claro, na Costa de Marfim é tudo mais fácil - aliás, os Burkinabé, quando para lá migram, pensam que chegaram à Europa, é a Suíça da África Ocidental.

Depois da massa que fazemos para o almoço, costumamos tratar das autorizações para a exibição seguinte, lidar com atrasos catastróficos, com uma luta tribal, uma tempestade, uma febre ou uma greve, porque há sempre algo que não vai funcionar como planeado - nada nunca acontece como planeado. Contactar os parceiros locais, distribuir material promocional, fazer repérage dos locais, alugar centenas de cadeiras, beber uns copos com os chefes das aldeias, passar tempo com a vizinhança e começar a montar o espetáculo, que começa sempre ao pôr-do-sol e termina pelas 22h00. Entre viagens e 26 projeções em 33 dias seguidos, desta vez não houve tempo para muito mais.

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

Conta-me uma história que te tenha chocado e que sintas que precisa de ser contada ao Mundo.

Nem sei por onde começar, o que realmente me choca é a discrepância das coisas. O valor da vida humana ser tão diferente consoante o local ou a situação em que nos encontramos. No ano passado, por exemplo, estava a andar em Ouagadougou, capital do Burkina, quando vi uma grande confusão na rua, centenas de pessoas à volta de um homem que tinha as mãos atadas atrás das costas e sangrava da cabeça, enquanto um outro homem, de pé e armado, lhe dava pontapés. Chegou até a disparar extremamente perto da cabeça dele. Quando perguntei o que se passava, disseram-me que era um ladrão, um nigeriano que tinha sido apanhado a roubar uma mota. Já tinham chamado a polícia mas, se eles não viessem rapidamente, iam prendê-lo no meio de uma torre de pneus e pegar-lhe fogo.

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Perguntei se podiam explicar-me isso para a câmara e responderam-me imediatamente que sim, para mostrar o que acontece aos ladrões em África. Tenho esse depoimento registado, em que, com a maior naturalidade, um local me dizia como os europeus são esquisitos, porque tinha ouvido dizer que nós dávamos comida aos nossos ladrões e os mantínhamos na prisão. Se alguém rouba, dizia ele, deve morrer – que é assim a lei da vida. Quando a polícia apareceu, nunca vi ninguém correr com tanta vontade para a caixa aberta de uma carrinha da polícia, ainda de mãos atadas atrás das costas. Provavelmente, a polícia não o tratou muito melhor que aqueles juízes da rua. Nunca saberemos.

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

Como tem sido, como português, viver tudo isso?

Falo italiano ou francês o dia todo. Penso e sonho numa mistura de inglês com português. Quando comecei a viajar não me identificava tanto assim com Portugal, mas por mais que viajemos, a nossa genética é informação pura e importante. Só pertencemos a 100 por cento ao local onde nascemos. Contudo, no Planeta Terra, ninguém é estrangeiro - somos todos terráqueos. Foi sozinho na Amazónia há quatro anos atrás que me apercebi que ali seria sempre um gringo. Aqui sou um Tubab, ou um Názára – palavras locais para branco. No Brasil sou um colonialista, na Grécia chamam-me turco e na Turquia pareço grego. Uma vez, na Sibéria, disseram-me que tinha feições típicas do Azerbeijão e, na Estónia, chamaram-me macaco e preto e, ainda, houve um nazi local que me atirou com o gás de um isqueiro à cara enquanto me perguntava se me era familiar, porque pensava que eu era judeu.

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Em Inglaterra, já no pós (pseudo) Brexit, abordaram-me à noite, dizendo-me para sair dali, que aquele bairro não me pertencia. Várias vezes se riram na minha cara por eu me considerar branco, “But, you do understand that you’re not exactly white, right?”. E ainda, que nem cereja no topo do bolo, um português disse-me recentemente que eu tinha um sotaque espanhol, que acentuava as palavras de maneira estranha. Percebi assim que, antes de ser português, sou aquilo que os outros vêem em mim, sendo que isso é muito mais mutável do que gostamos de admitir. Hoje, acho que só nos podemos conhecer verdadeiramente quando compreendemos como somos vistos, que a identidade é plasticina, o nacionalismo é uma ilusão colectiva e somos todos meros viajantes no espaço-tempo.

Uma última e simples questão: porquê o nome Cinéma du Désert?

Porque tudo começou no Sahara. E depois fomos ao Gobi. Mas, o deserto é também a ausência (de cinema, neste caso). O deserto pode ser um aviso para que o sistema capitalista global dê primazia aos problemas ambientais. Para que tudo seja taxado de acordo com o impacto que tem no ambiente e não consoante os acordos transnacionais entre empresas cujo único valor moral é o lucro… o crescimento e a aglomeração per se. O deserto também pode ser visto, não como um local árido, mas como um espaço em aberto, em potencial, aberto à ideia de preenchimento.

Vê abaixo mais fotos das viagens do Cinéma du Désert por África.

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert

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Foto cortesia João Meirinhos/Cinéma du Désert


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