Como o futebol brasileiro usa o big data para garimpar craques
Softwares usados para auxiliar desempenho de jogadores no Santos Futebol Clube. Crédito: Divulgação/ Santos FC

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VICE Sports

Como o futebol brasileiro usa o big data para garimpar craques

Munidos de incontáveis tabelas e plataformas digitais, os analistas de desempenho levam estatísticas de alto nível ao esporte mais popular do país.

O atacante Bruno Henrique estava no Goiás quando atiçou o interesse da direção do Santos. Era 2015 e no dia os esmeraldinos empurraram 4 a 1 no Peixe, dentro do Serra Dourada, pela rodada 12 do Campeonato Brasileiro. O jogador foi um dos destaques do duelo, com passe pro quarto gol da equipe e uma caneta em cima de Victor Ferraz, mas essa não foi a única nem a principal razão que o manteve no radar dos observadores até ele desembarcar na Vila Belmiro, vindo do Wolfsburg, da Alemanha, em janeiro deste ano. "Chamou a atenção a velocidade pelos lados e a questão de sua impulsão aérea", diz Lucas Matheus, analista de desempenho do Santos. Tal conclusão veio de uma das almas do negócio hoje: usar plataformas como o Wyscout e o InStat Scout para interpretar informações e buscar o máximo de acerto nas contratações.

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É assim, unindo futebol, tecnologia e big data, que possíveis reforços são monitorados pela turma que trabalha no setor de inteligência de um clube. Ao lidar com vários números individuais dos jogadores e apresentar vídeos de jogos do mundo todo, este combo dá farto material pro garimpo e pros bancos de dados montados pelos departamentos de analistas. "Na pesquisa começou a se desenhar que Bruno Henrique se encaixaria no perfil do time. Aí houve o acompanhamento, chegou o ponto em que Dagoberto [Fernando, superintendente de esportes] conseguiu um acordo e deu certo. Não esperamos o jogador chegar pra ver o que faria. Já tínhamos uma ideia dos atributos, de suas qualidades em campo", diz Matheus.

Lucas Matheus, de apenas 23 anos, usa dados para auxiliar jogadores do elenco e descobrir talentos de fora. Crédito: Twitter

Os analistas atuam num sistema que até lembra uma agência de espionagem. Eles resgatam o passado remoto, desvendam momentos que consideram chave pra entender uma trajetória e encontram como andam se comportando os jogadores. Tudo isso, porém, passando longe de disfarces e maletas com armas secretas. O que há aqui são exames minuciosos desses detetives da bola acrescidos a dados extraídos da internet e de programas de computador.

Entre as ferramentas está o Footstats, que ajuda a reunir e destrinchar todo tipo de estatística, desde passes errados, finalizações e dribles certos até mapas de calor.

Gustavo Nicoline, um dos responsáveis pelo CIP (Centro de Inteligência do Palmeiras), conta como o software auxilia em seu trabalho. "O cara aparece lá com '78% de passes certos'. Mas o que isso quer dizer? Tem de analisar o grau de dificuldade do passe, a posição em que o jogador atua, qual a média real dos atletas daquela função. Ali nós vemos porque alguém é bom em desarme, cruzamento, assistência. Por posição. Então, também sabemos que é diferente o aproveitamento de passe de um zagueiro e o de um atacante."

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Bruno Henrique, uma das descobertas de Matheus, com a camisa do Santos. Crédito: Santos FC/ Divulgação

Outra delas é o InStat Scout. Utilizada pelo Santos como uma das fontes para averiguar o desenvolvimento de Bruno Henrique, a plataforma tem fichas técnicas dos jogadores e oferece filtros com a capacidade de separar nomes por posição, por idade e que estejam disputando determinado campeonato no qual se quer prospectar talentos. Há mais: permite a comparação entre eles, num cruzamento de informações. Isso em diversas ligas do mundo e com o adianto de poder ver tanto vídeos de lances específicos quanto partidas inteiras pra sacar o que o cara já fez e pode apresentar.

Já no Wyscout, serviço assinado por clubes como o Sport Recife, o Botafogo, o Boca Juniors e o Real Madrid, dá pra baixar os jogos na íntegra, escolher ângulos das imagens que se quer assistir – pra ver como um lateral que vai muito ao ataque volta a seu campo após o apoio, por exemplo – e procurar um jogador, estudar sua carreira e navegar por tags relacionadas a ele. Neste caso, dá pra ver em dados e imagens situações em que ficou impedido, deu combate na defesa, fez gol, recompôs pra marcar, uma pá de coisa. Esteja o craque desfilando habilidade no Brasil, na Jamaica ou na China, jogando a Libertadores da América ou a Liga dos Campeões. Foi por esse mesmo serviço que o Corinthians encontrou um atacante cabeceador para a final contra o Chelsea em 2012. Era o até então pouco conhecido Paolo Guerrero, hoje no Flamengo, que, coincidência ou não, marcou o gol do título Mundial com uma boa testada.

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Essas verdadeiras capivaras digitais do futebol são fundamentais para tentar se descobrir um talento, pra achar aquele ótimo valor que agrega ao elenco. Online, os analistas passeiam por uma batelada de informações e diversas fichas na procura pelo próximo reforço. É tipo um álbum de figurinhas que serve pra saber quem pode ajudar a levantar taças.

Nessas, tudo é avaliado e acrescentado à pasta virtual que organizam a respeito do jogador.

"Fazemos um perfil, uma análise do atleta. Tanto quantitativa, do desempenho dele em números, quanto qualitativa, em termos de comportamento, de expressão física, técnica, tática e estratégica", explica Thiago Duarte, profissional da área no Sport Recife.

O resultado vem em forma de relatório e chega às mesas da cartolagem.

"Não falamos 'contrate' ou 'não contrate' o atleta. Emitimos um parecer escrito, padronizado, a respeito [do jogador]", diz Nicoline, do Palmeiras. "Nosso papel é ajudar a diretoria na tomada de decisões."

O processo inclui ainda a comparação com jogadores do clube interessado – pra ver se o nível do observado está acima, igual ou abaixo dos do elenco – e até incursões na vida pregressa do boleiro.

Nicoline, à esquerda, na época em que trabalhava com o técnico Eduardo Baptista.

"Levantamos características técnicas, o histórico, a carreira, o extracampo. Tentamos ligar pra profissionais com quem temos contato, de outras equipes pelas quais os atletas passaram, e ter informações detalhadas, tentando errar menos possível", enumera Vinicius Bispo, analista do Botafogo.

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NA HORA DO VAMOS VER

Engana-se quem imagina que a prospecção de jogadores bombe só em época de mercado aquecido e anúncio de contratações. Apesar de os observadores terem outras funções, como acompanhar o desempenho do próprio time e caçar jogadas dos adversários, a busca por reforços não termina. Pra Vinicius Bispo, do Botafogo, a palavra a defini-la é: incessante.

Vinícius Bispo, à direita, filma treinos de jogadores. Crédito: Botafogo de Futebol e Regatas

"Não para nas férias nem em datas comemorativas. Não tem período do ano em que não estejamos captando jogadores", afirma.

O analista cita o lateral-direito Arnaldo como exemplo do trampo dos cariocas. "Ele se destacou no Campeonato Paulista [de 2017, no Ituano], tinha números defensivos muito bons aliados a uma velocidade interessante pro nosso modelo de jogo. Foi um nome avaliado pela comissão e a diretoria, com potencial bom custo-benefício e que hoje está aqui conosco."

Estudar performances e contextualizar estatísticas é aposta de muitas equipes brasileiras pra rechear as opções de um técnico. No Grêmio, não é diferente. Lá, informa o vice de futebol Odorico Roman, é o CDD (Central Digital de Dados) quem cuida deste tipo de corre. O setor usa de banco de imagens, vídeos capturados pelo clube e adquiridos de outras empresas a olheiros que veem jogos de categorias como a sub-23 e a sub-20.

O diretor diz que o Tricolor Gaúcho criou até indicadores de desempenho montados a partir de dados comprados da Perform, uma produtora de conteúdo esportivo pra plataformas digitais.

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"Se quero alguém com desempenho em bola aérea e no enfrentamento um contra um similar, digamos, ao [zagueiro] Geromel, eu posso afunilar ou alargar a pesquisa por filtros. Consigo ver cinco, 40 ou até mais jogadores que tenham determinadas características, ganham 70% dos duelos aéreos, têm presença ofensiva, fazem gols de cabeça. Consigo selecionar e, assim, avançar numa contratação", afirma Roman, exemplificando o funcionamento da ferramenta.

Pra quem curte ficção científica, essa história parece aquelas sequências em que uma máquina amplia várias vezes o tamanho de uma imagem pra tentar se chegar a uma conclusão sobre a questão levantada. Ao menos em relação à prospecção de talentos, o futebol tem ido por aí. Aquele papo de "não é feitiçaria, é tecnologia", sabe?

Mas todo nível de sofisticação tem início. Pra começar, rolam o instinto e a interpretação de informações dos analistas para engatilhar uma pesquisa em cima de um talento. Por vezes, no entanto, aquela fagulha de querer contratar alguém vem de outras bandas e é bem mais prosaica. Pode nascer dos olhos de um cartola ou surgir de um empresário cuidando dos interesses do boleiro. Na hora do vamos ver, as indicações seguem em voga.

"Sugestão tem, claro. E vamos olhar. Se for um cara de quem gostamos muito, passamos pra diretoria. Chama e fala 'dá uma olhada pra ver o que acham'", diz Nicoline, do Palmeiras.

"Não para nas férias nem em datas comemorativas. Não tem período do ano em que não estejamos captando jogadores"

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No Sport, observa Thiago Duarte, além da prospecção feita pelo departamento do qual é integrante, recebe-se dicas de mais gente da comissão e do técnico. Chegam também pedidos de avaliação de atletas vindos de terceiros. "Nomeadamente, mais de empresários", afirma.

Mesmo o vídeo com lances positivos de um jogador pode dar as caras em clube com analistas. Aconteceu nesta temporada no próprio Grêmio, que levou o lateral-direito Leonardo Gomes do Boa Esporte (MG) com o empurrãozinho de uma edição de melhores momentos.

Agente do atleta, Sineis Lima relata que foi o ex-atacante Roni, seu sócio numa empresa de consultoria esportiva, quem entregou um material com jogadas de Leonardo à comissão técnica. Seu relacionamento com o outrora parceiro de elenco no Fluminense, nos anos 1990, e agora treinador do time de Porto Alegre Renato Gaúcho o ajudou na hora de apresentar o ala.

Lima ressalta, contudo, que o jovem de 21 anos já vinha sendo monitorado por profissionais no país. "Tínhamos condição do São Paulo e do Sport. Preferimos a do Grêmio", lembra ele.

Questionado a respeito do uso de um vídeo para uma contratação, o dirigente Odorico Roman respondeu que o atleta também foi avaliado por outras ferramentas no clube e que a mídia serviu como forma de introdução. "Pode ser o início de uma pesquisa no caso de um jogador que não é muito conhecido."

Atualmente, esse tipo de indicação via DVD acontece mais em times com menos grana e recursos humanos. Neste ano, para montar o grupo do Juventus na A2 do Paulistão e o do São Bernardo na série D do Campeonato Brasileiro, o técnico Wilson Junior recorreu a seu banco de dados e também a nomes enviados a ele pela internet.

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Wilson Junior, técnico do Juventus e do São Bernardo em 2017. Crédito: Ale Vianna (C.A.Juventus/Divulgação)

Dessa forma, além de um mapeamento feito com o auxílio de amigos analistas de desempenho, incluindo em seu trabalho assistir a partidas para listar jogadores que gostaria de comandar, o professor se viu com a caixa de mensagens do celular cheia de ideias. O recurso dos DVDs se modernizou, ganhou a net, foi pro YouTube, entrou em aplicativos de mensagens.

"Hoje, recebo muito link [de vídeos] por WhatsApp. Na montagem de um elenco, olho todos. Mesmo de quem não conheço. Na medida do possível, respondo todos", diz Junior.

VIAJAR É PRECISO

Para tentar prever possíveis sorrisos da torcida no futuro, mantém-se uma tradição que vem da época em que o Maracanã tinha geral e chegou aos tempos do notebook e do smartphone (e das câmeras portáteis pra gravar material).

"Quando viajamos pra assistir ao adversário, vemos vários jogadores da série A in loco. Aí aproveitamos pra ver se se destaca alguém", conta Nicoline, do Palmeiras.

Observar o atleta jogando ali pertinho continua sendo importante a quem vive de prospectar talentos. E se um nome ganha lugar destacado no banco de dados digital, o próximo passo pode ser pegar mais estrada, como lembra Vinicius Bispo.

Ele relata que viajar é preciso no Botafogo. "Já fui a São Paulo, a Minas Gerais, ao interior do Rio de Janeiro, rodei muito pra ver jogadores e ter mais certeza da indicação. Ou não. De repente, você acredita que ele pode ajudar, vê um, dois, três jogos e aí não é tudo isso."

Seguir crendo na amplitude do que se vê dentro das quatro linhas é necessário, pois números são úteis e o cruzamento de dados, uma mão na roda, mas não explicam o todo.

O processo é longo e cada etapa tem seus responsáveis. "Precisamos entender que o futebol é tão complexo que é impossível colocar a culpa numa pessoa [se algo dá errado]. Os analistas têm suas avaliações técnicas, mas não são os únicos nem os últimos a serem consultados. Estão dentro de uma estrutura maior", frisa Thiago Duarte, do Sport.