Amantes Amazónia
Foto por Antonio Pedro Lopes

FYI.

This story is over 5 years old.

Cultură

Amantes Amazónia

Ao longo de 10 dias em Manaus e na Amazónia, Raquel André coleccionou novos amantes. Deparou-se com um mundo maravilhoso e assustador e guardou encontros, uma floresta e uma cidade a explodir de intensidade.

Manaus. Capital do Amazonas. O Estado que guarda em si a maior floresta do Mundo - a Amazónia. 40 graus. Sonos a ar condicionado, ventoinhas, calor muito calor. Alcatrão, milhares de carros, um carro por pessoa, estradas com seis faixas. Uma certa rejeição reinante da sua floresta e herança ancestral. Muitos condomínios fechados e as estatísticas que atribuem à cidade o título de uma das 30 cidades mais perigosas do Mundo.

Publicidade

A cada canto uma igreja em processo de evangelização, sanguessugas de cartão de crédito, mas também missionários do acesso, da educação e da medicina. Depois, uma cultura de sabores, mezinhas ancestrais, banhas de cobra e tartaruga, poções para todos os males e uma cena vibrante contemporânea de música, teatro e arte urbana.

Foto por Raquel André

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Por estes dias, uma cantora indígena (Djuena Tikuna) sobe pela primeira vez ao palco do world class Teatro Amazonas, em 120 anos de história. Uma notícia avassaladora aparece como anúncio de barbárie. O governo de Temer quer destruir 46 mil quilómetros quadrados de floresta, onde habitam índios e animais silvestres, para exploração de ouro.

Uma verdadeira reserva da humanidade do tamanho da Dinamarca, onde a mineração está proibida há 30 anos e que, senso comum, é imprescindível para que a vida possa continuar a prosperar no nosso Planeta para um futuro respirável. A ameaça vem com riscos de desmatamento, comprometimento de recursos hídricos, perda de biodiversidade, aumento dos conflitos fundiários e mete em causa povos indígenas e populações tradicionais. Uma calamidade.

Uma casa com muros altos e portão electrónico, sobrevoada por urubus famintos e paraquedistas a cair do céu. Tucanos, papagaios e pássaros verdes. Um jardim tropical com palmeiras, cactos e lagartos. Um espaço protegido, uma casa para receber. Raquel André está aqui para encontrar os amantes de Manaus e comprová-lo com pelo menos uma fotografia.

Publicidade

Cada encontro uma hora, muitas horas e histórias depois, novos amantes para a sua colecção. Vamos com eles Manaus fora e chamamos de amantes também àqueles que encontramos pela cidade e floresta. Apresentamo-los um a um, num cenário entre o encantamento, o espanto, o medo dos bichos, uma cidade imensa e intensa e o maior verde do Planeta Terra. Encontros que queremos guardar.

Amantes Amazónia #1: Ricardo Libertini

Foto por António Pedro Lopes

Nunca vamos saber a idade de Ricardo Libertini, nem o dia do seu nascimento, mas vamos sempre lembrá-lo como a primeira cara que vimos em Manaus. Sabemos que às vezes transforma os seus aniversários em performances duracionais de um período de um ano, ou então em rituais de celebração 24 horas, com uma hora por cada um, de 24 amigos seleccionados a dedo.

Grande, solar, barbudo, sorridente, generoso, reconhecemo-lo na força com que dirige, produz e gere o Grupo Garimpo, juntamente com Gabriel Morais, Jaqueline Valigura e Vanessa Silveira, artistas que vivem e trabalham um pouco por todo o Brasil. Como Grupo Garimpo, que agora celebra 10 anos de actividade, encontram-se e trabalham entre o Rio de Janeiro e Manaus para erguer um teatro que cria novos lugares e faz acontecer. Um teatro de pesquisa, escrito no plural, que se questiona perenemente enquanto problematiza a actualidade, atravessa culturas, forma públicos e traz à cidade o acesso a outras experiências e formas de fazer.

Publicidade

foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

A série "Professores", coloca um professor de português real em cena, num formato aula-teatro sobre compromisso político através da literatura. Já a peça em processo, "Vocês estão em Casa?", traz à tona o problema de insegurança na cidade, através de um recorte de uma classe média que se tranca cada vez mais em condomínios fechados e que deixa ao deus dará centenas de casas vazias.

É nesse contexto que o Garimpo decide ocupar uma casa. Uma casa de família – três quartos, sala, cozinha, duas casas-de-banho. A casa da família do Ricardo que ele esvaziou e voltou a encher de novo, para se apropriar dela e a transformar num terreno de experiências. Rua Pirajuba, 43 – Complexo Duque de Caxias- Flores, uma casa cenografada e repleta de adereços em que o teatro se confunde com a vida e a ficção com o passado familiar.

Uma casa com um pátio e um jardim tropical que o Ricardo plantou e de que cuida religiosamente todos os dias, com o princípio holístico de valorizar o verde do seu Amazonas e começar algo de novo.

É nesse lugar que inventa uma série de intercâmbios – Agrupe - um programa de difusão, experimentação e formação de experiências em artes, onde chega o processo de "Colecção de Amantes" e a performance/conferência "Colecção de Pessoas", de Raquel André, para uma semana de residência e duas apresentações.

Oito amantes de Manaus, centenas de fotografias de todos os encontros e as histórias dos coleccionadores que coleccionou Europa fora. Lá encontramos um público próximo, emocionado, conversas sobre afectos, chopps, pirarucu de casaca e bolo de chocolate. Uma nova família.

Publicidade

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Amantes Amazónia #2: Deuza Silveira e Paulo Silveira

Foto por António Pedro Lopes

Uma história com 45 anos. Eles conheceram-se em 1972 no trabalho. Ambos funcionários públicos, eles são a Deuza e o Paulinho, os pais do Ricardo e da Vanessa. Ele é o satélite faz-tudo do Garimpo, ela é a mãe que se transforma em actriz quando é preciso, tão pronta para dizer um monólogo enquanto quebra garrafas e cria um ponto final com um sorriso maroto.

Para ela continuar amante "a vida é um mestre", prova disso foi ter pedido ao pai aos 12 anos que queria continuar a estudar. Uma de sete irmãos, mudou-se então do interior do estado para Manaus e, hoje em dia, tem duas pós-graduações. Ele processa dados e sabe que vive num dos lugares mais únicos e belos do Mundo. Regista cada reacção ao contacto do outro com o novo, surpreende-se e sorri.

Eles são suporte, apoio, força. Juntos são uma família que acolhe com um grande abraço, apaixonados pela Amazonas 40 graus, os mil peixes e sabores que vêm do rio e da terra e as mil frutas que só se comem quando caem das árvores.

Os peixes e os sabores: pirarucu, tambaqui, pacu, matrinxã, tacacá, jambo. As frutas: taperebá, cupuaçu, caju, buriti, açaí, tucumã. Guardam cada momento numa selfie, ou numa fotografia, multiplicam anedotas com animais e estão sempre prontos para pegar no volante para partir, experimentar, provar, com a atenção e cuidado ao próximo e um grande sorriso na cara.

Amantes Amazónia #3: Rai Campos aka Raiz

Foto por António Pedro Lopes

Aparece e desaparece em paz, sorriso de orelha a orelha, muleta e pé engessado e um corpo eléctrico. Ele é mais um amante. Ele é Rai Campos, ou Raiz, e pinta grande murais com a fauna, flora e os povos indígenas da sua Amazónia. Cresceu na vila minéria de Pitinga, que faz parte da reserva indígena Waimiri Atroari, onde pintou o seu primeiro graffiti no quarto.

Publicidade

O pai era mineiro mas também pintor, sendo ainda e sempre a sua principal referência e influência. Auto-didacta, Raiz pinta botos, árvores, céus, povos indígenas, muito verde, e a Amazónia em todo o seu esplendor, como forma de reconhecimento e activismo pela cultura e espiritualidade dos índios, os verdadeiros donos da terra.

Foto por Raiz Campos

Foto por Raiz Campos

Pintou em todo o tipo de lugares e ao lado de todo o tipo de pessoas. Para ele, pintar é a forma de viver para procurar um mundo mais humano e mais sensível. É a necessidade de preservação da floresta, é a luta contra a ignorância e demonização dos índios, é a admiração pela terra, pela sua ancestralidade e ensinamentos, é a crença pés-no-chão que ninguém é tão bom que seja mau e que ninguém é tão mau que não seja bom.

Juntou-se à Greenpeace numa campanha contra a construção de um complexo hidroeléctrico no Rio Tapajós, alertando sobre as potenciais consequências dessa construção na floresta. Precisamos dele. Precisamos de ver o seu trabalho muitas vezes no Mundo todo. A Amazónia que transporta nesse trabalho pertence à humanidade, ao nosso futuro, à Terra. Que não nos esqueçamos da nossa raiz, que não descuidemos o dia de amanhã, quando tudo for depois.

Amantes Amazónia #4: Kennedy Williams

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Chama-se Kennedy. Kennedy Williams. É macuxi, uma etnia indígena sul- americana. O seu nome macuxi é Pinó. Nasceu e cresceu na floresta e foi o avô que o ensinou a ouvi-la com os sentidos todos. Sabe dar o nome aos sons de todos os animais e de todas as árvores. É um ser da floresta, gentil e bem humorado, que sabe onde encontrar formigas que se tornam repelente, formigas 24 horas que deixam qualquer um com febre durante 1440 minutos, flores de cacau, árvores que servem de aviso ou um palmito de açaí para uma fome de sobrevivência.

Publicidade

Trabalha como guia turístico na maior floresta do Mundo e passa os dias no Lago Juma, entre águas espelho, assembleias de pássaros, pequenos almoços de macacos ou pescas de piranhas. De manhã revela ballets de botos, golfinhos cor-de-rosa alienígenas, que dançam rio acima rio abaixo em danças circulares e, à noite, com a sua lanterna, faz focagens de jacarés escondidos com olhos brilhantes na margens do Rio.

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

Foto por António Pedro Lopes

O seu sentido de tempo e calma transmite confiança e conhecimento, não é um curupira, o defensor das florestas e animais que tem os pés voltados para trás, mas a sua lucidez e sagacidade evidenciam um domínio singular do Mundo e um respeito pelo outro e pela natureza. Talvez seja por isso que, dentro das suas histórias, as personagens principais sejam sempre animais ou seres do além.

A história do americano sem noção, que se colocou em pé no barco e acabou por cair ao rio para descobrir que no outro lado da margem estava uma anaconda a devorar um jacaré. A história de duas islandesas que vieram à procura de uma montanha em forma de cruz no fim da floresta, com muita comida enlatada e dinheiro para fretar aviões, helicópteros, barcos e guias para ver aterrar uma nave que lhes mostraria a luz e as conectaria com a vida e essência extraterrestre. Acabou por chover, ficaram sem comida e tiveram que atravessar a selva durante uma semana para escaparem vivos.

Publicidade

Em ambas as situações, o Kennedy salvou. Ele é a mão que mostra o caminho de volta e nos faz sentir menos aliens na nossa natureza-cultura, principal pulmão da humanidade. Ele é o homem do leme através dos rios, mestre do sensível. Teremos em vida o Mundo todo para aprender com ele. No Rio Juma.


Em Agosto, a VICE Portugal acompanhou o processo de colecção e apresentação das colecções em Niterói, Rio de Janeiro e Manaus na Amazónia, que contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Abaixo podes ver a agenda de apresentações de Raquel André para os próximos tempos:

Colecção de Coleccionadores e Coleccão de Amantes de Raquel André, são apresentados durante o mês de Novembro na Sala Estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II. Ambos os espectáculos são uma co-criação de Raquel André, António Pedro Lopes e Bernardo de Almeida. Além dos espectáculos, Colecção de Amantes, vol. I é lançado em formato livro com textos de Gregório Duvivier e Tiago Rodrigues.

2 Novembro, às 21h30 estreia Colecção de Coleccionadores, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, que fica em cena até dia 12. Quarta às 19h30, de Quinta a Sábado às 21h30 e Domingo às 16h30.

9 Novembro é lançado o livro Colecção de Amantes Vol.I, às 19h00 no Átrio do Teatro Nacional D. Maria II

PUBLICIDADE

15 Novembro, às 21h30, o regresso da Colecção de Amantes, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, que fica em cena até dia 22. Quarta às 19h30, de Quinta a Sábado às 21h30 e Domingo às 16h30.

22 de Novembro, no âmbito do LEFEST sessão às 19h30 e 21h30.

25 Novembro, Colecção de Amantes - Teleteatro - Estreia na RTP2.

3 Março 2018, Colecção de Amantes, BIT Teatergarasjen, Bergen, Noruega.

8, 9 Março 2018, Colecção de Amantes, Findlay-Sandsmark, Noruega.