A longa e estranha relação de Street Fighter com o hip hop

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A longa e estranha relação de Street Fighter com o hip hop

A franquia de jogos de luta mais conhecida da Capcom tem um relacionamento de décadas com a música e a cultura do rap.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Dois caras se aproximam. Um está sem camisa, mostrando os músculos. Ele se inclina para frente, seu afro obscurecido mas ainda impecáveis, brilhando no sol. O outro usa uma camiseta branca. O cabelo loiro descolorido lambido para trás. Olhos azuis determinados brilham sob as sobrancelhas marrons. Ele olha para o oponente. Ele dá um soco. O afro do oponente aparece totalmente na tela enquanto o golpe o lança para trás e fora do quadro. A câmera abre. Bem-vindo ao mundo de Street Fighter, a série de videogame favorita do hip hop.

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Uma escolha estranha. Street Fighter II, o maior sucesso da série e game mais mencionado, não compartilha nenhuma afinidade básica com o hip hop. O jogo tem mais de vinte anos, sua música se baseava em dancepop dos anos 80, e os únicos dois personagens negros são ultrajantes: um tem uma linha do cabelo que parece cortada por um velociraptor e o outro é Billy Blanks reimaginado como um rapper boxeador. Ainda assim, Street Fighter II e sua progênie perduram, aparecendo em letras, batidas, clipes, filmes, merchandise e show. Mesmo que jogos de luta rivais e eventualmente jogos de corrida, esportes e crime tenham abraçado mais diretamente o hip hop (como Midnight Club, Grand Theft Auto, Shaq-Fu, NBA Jam, NBA Street), Street Fighter continua o rei.

Para traçar a rota desse reinado, falei com músicos, empregados da Capcom, um ex-executivo de gravadora e os fundadores de uma empresa de produção criativa. Também investiguei três décadas de trabalhos de arte, marketing, jogos, música e filmes. O que se segue é um conto de coincidências, nostalgia, rimas bestas e algumas rimas surpreendentemente boas. Acontece que Street Fighter e o hip hop não têm uma afinidade inerente. Mas têm uma história, e no hip hop, história é sempre possibilidade.

Asfaltando

O hip hop tem um jeito muito único de elevar elementos do cotidiano para novos reinos. Tênis se tornam declarações de missão. Apelidos se tornam personas. Bairros se tornam nações, ilhas. Ad infinitum. Street Fighter não é imune a essa alquimia, mas sua relação com o hip hop é mais completa. Street Fighter não é apenas outro pedaço de cultura pop jogado por aí que foi recolhido e transformado em ouro. A relação entre Street Fighter e hip hop vêm de ainda mais longe.

Antes de Street Fighter aparecer em referências de Nicki Minaj e Lupe Fiasco (e Dizzee Rascal, Lil B, Sean Price, Madlib, etc.), o jogo tinha seus próprios samples. O Street Fighter original era cheio de grafites e pichações, e o swag que os acompanhava. O logo do jogo é apresentado por um punk sem nome que dá um soco numa parede com tags, depois se vira e revela o logo do Street Fighter na sua jaqueta. Ele está literalmente lutando com as ruas. Dentro do jogo, a primeira fase do personagem Joe é uma área de treino com um vagão de trem grafitado. O envolvimento geral do jogo com o hip hop é superficial, mas alguém da Capcom estava claramente assistindo Style Wars.

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O hip hop virou mais que um sample durante o desenvolvimento de Final Fight, que originalmente deveria ser uma sequência de Street Fighter e por um tempo teve o título "Street Fighter '89". Final Fight acontece numa Nova York ligeiramente ficcionalizada cheia de grafite, lixo, gangues e um suprimento inconcebível de barras de ferro. O design dos personagens é mais informado por Gun N' Roses e Run DMC, e muitos elementos do enredo foram inspirados no bizarro musical neo-noir Ruas de Fogo, mas sua visão de Nova York não existiria sem o hip hop. As ruas são simultaneamente ameaçadoras e emocionantes, a maioria das fases acontece nas periferias da cidade que o rap tornou famosas. Um dos chefes é um policial corrupto. Final Fight é basicamente um clipe dos Beastie Boys dirigido por Spike Lee.

Street Fighter II abandonaria esses elementos do hip hop, trocando as ruas de Final Fight por paisagens cênicas do mundo todo. Mas as fundações já tinha sido plantadas, enquanto Street Fighter se tornava um sucesso de fliperama e console, as ruas começaram a fazer seus próprios samplers.

Buracos na via

Falando estritamente, o personagem Dee Jay, introduzido na terceira versão de Street Fighter II, Super Street Fighter II: The New Challengers (1993), é o primeiro da série a se envolver diretamente com o hip hop. Seus diálogos no jogo fazem referência a ritmo e música, ele faz raps para os outros personagens e seu final depois de derrotar Bison mostra sua carreira musical. Mas esses detalhes são principalmente floreios genéricos. Seu nome na verdade é uma referência a seu criador, James Godard, que desenhou sob o nome DJAMES, e Dee Jay foi diretamente inspirado no personagem Khan do filme de 1990 O Rei dos Kickboxers, interpretado por Billy Blanks. (Blanks tentou fazer rap e seu infame programa de fitness Tae Bo confia inteiramente em batidas de hip hop genéricas mas vigorosas. Mas isso é só coincidência.)

A primeira união significativa de hip hop e Street Fighter vei através da "Track 10", da mixtape de 1994 de DJ Qbert Demolition Pumpkin Squeeze Muzik. "Track 10" não é a primeira música a usar um sample de Street Fighter II (essa honra vai para "Swing'n" de Hi-C), mas é a mais memorável. A faixa mistura sons do jogo e de Mortal Kombat, comentários do Super Bowl, um loop de bateria do Wild Magnolias e um loop de baixo de Roy Ayers. A mixtape em si é um emparelhamento bizarro, mas fico surpreso quando Qbert me conta quão casualmente surgiram os samples de Street Fighter. "Jogamos tanto o videogame que pensamos 'Caramba, o que a gente pode samplear? Sei lá, cara. Street Fighter!' Foi isso que fiz e saiu bem legal", ele me diz. Qbert basicamente via Street Fighter como apenas outra coisa para samplear, mas insisti: Por que Street Fighter em particular? "Acho hip hop uma coisa legal, acho Street Fighter uma coisa legal", ele diz.

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A resposta de Qbert é simples, mas faz sentido. O marketing de Street Fighter II não apontava diretamente para o hip hop, nem em propagandas de revistas ou nos comerciais, e a "rua" do título era mais um produto da franquia que o design do jogo. Para ele, Street Fighter II e hip hop se juntaram porque ele os juntou, não porque eram feitos um para o outro.

Andrew Shack, ex-A&R e presidente da gravadora Priority Records, teve uma experiência similar. Quando estava fazendo a produção-executiva da trilha sonora do filme Street Fighter, que é quase totalmente hip hop, ele não estava pensando se hip hop e Street Fighter tinham uma afinidade natural. "Era tudo que a gente conhecia. Meu mundo era o mundo do rap", ele ri quando pergunto por que a trilha é tão baseada em hip hop.

Shacks se diverte ainda mais quando explica como a Priority conseguiu esse trabalho. "O que aconteceu foi que decidi que precisávamos entrar no negócio do cinema, estávamos desenvolvendo o filme Sexta-feira em Apuros e não sabíamos o que estávamos fazendo. A gente só pensou 'Como vamos entrar no negócio do cinema? As pessoas estão fazendo trilhas sonoras, então precisamos achar uma para fazer'", ele lembra. E a trilha sonora que eles acabaram encontrando foi a de Street Fighter. Sim, você leu direito: A trilha de Street Fighter era rap apenas porque um selo de rap queria fazer uma trilha sonora, qualquer trilha sonora, como introdução para sua entrada no cinema.

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O mais impressionante é que apesar dessas origens arbitrárias, e o fato de que a trilha sonora foi feita com quase nenhum conhecimento sobre o filme, a música e o conteúdo realmente conseguem se alinhar. Algumas faixas são um tanto óbvias demais ("It's a Street Fight" e "Rap Commando") e MC Hammer e Deion Sanders nunca deveriam ter feito música juntos (ou sozinhos?), mas o conceito geral funciona. A mistura de Street Fighter de competição, bravata e individualismo facilmente se traduz nas provações e desafios de um rapper. "Niggas respect violence so I become it", Nas canta em "One On One", fazendo uma ponte perfeita entre os dois mundos. O disco pode ter sido um passo pequeno num esquema maior, mas a Priority não pegou leve.

Street Fighter e hip hop se sincronizaram pra valer na terceira versão de Street Fighter III, Street Fighter III Third Strike: Fight For the Future, que conta com grandes arranjos do compositor Hideki Okugawa. Okugawa também trabalhou nas primeiras duas versões do jogo, mas aquelas trilhas se baseavam mais nos filhos e primos do hip hop: house, jungle, techno, drum n' bass. Para Third Strike, Okugawa reconstruiu e remixou músicas anteriores e recrutou o rapper de Toronto Infinite para servir como artista e narrador no jogo. Várias músicas contêm o Amen break, os raps são naturais, e a breguice geral que caracterizava os flertes passados da série com o hip hop está totalmente ausente. Infinite teve uma única tarde para escrever suas três músicas, e teve apenas uma sessão de estúdio com a equipe de som de Third Strike, com quem quase não pode conversar, mas a química estava ali. Okugawa queria fazer uma trilha realmente infundida de hip hop e fez.

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Mas novamente, isso não foi produto de uma sinergia inata. Não só as outras duas versões anteriores de Street Fighter funcionaram bem sem hip hop, como Infinite também me disse que participou do projeto principalmente pela oportunidade. "Eram só negócios", ele diz. Como tinha crescido jogando Street Fighter, Infinite tinha algum apego com a série, mas isso não foi decisivo. "Eu provavelmente ainda teria feito se fosse um jogo que eu nunca tivesse jogado", ele admite. Quando a Capcom foi para Toronto procurando um rapper, qualquer rapper canadense poderia ter ganhado essas audições – Devon, Choclair, Saukrates. Infinite foi escolhido porque estava confortável em rimar sobre músicas de videogame. Seu conhecimento de Street Fighter era uma coincidência. O que fez o jogo transcender suas circunstâncias aleatórias foi a audácia de seus produtores. Eles nunca perguntaram se Street Fighter e hip hop eram compatíveis: eles só apertaram o Start.

Um Street Fighter chamado desejo

Se Street Fighter e hip hop não são naturalmente compatíveis, por que aparecem constantemente emparelhados? Super Street Fighter IV foi promovido com música original de Just Blaze. Drake e Lil' Wayne fizeram turnê usando um aplicativo de show especial que apresentava conteúdo licenciado da Capcom. Um cara fez esta música. Outro cara fez este disco. Esta página do Bandcamp não pode ser só um acidente do universo. Tem que ter alguma coisa aí, certo?

John Diamonon, o diretor de licenciamento e produtos para o consumidor da Capcom [EUA], oferece uma ideia. "Nossas pesquisas de consumidor mostraram que [Street Fighter] tem um alcance tremendo entre hispânicos, asiáticos e negros", ele me diz por uma chamada de vídeo. Considerando isso, faz sentido que a Capcom venda os jogos Street Fighter com comerciais com Just Blaze e versos de Black Thought. Mas isso não explica exatamente por que o marketing se traduz.

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Acima: A música de Just Blaze baseada em 'Super Street Fighter IV'.

Diamonon menciona "autenticidade" e fala da sua ligação íntima com o hip hop (vi que ele estava falando sério quando mencionou Dan the Automater) e a comunidade dos jogos de luta, que ele diz que consegue "sentir no ar quando algo não é autêntico". Matt Dahlgren, o diretor de marketing da Capcom nos EUA, o apoia, explicando: "O cerne da marca é sobre se aperfeiçoar e se tornar um verdadeiro guerreiro", uma busca por autenticidade. Não duvido da experiência deles, já que Dahlgren é um ex-jogador competitivo. Mas sentado do outro lado de um mergulho profundo na história do hip hop e Street Fighter, sou mais cético. Não só seus envolvimentos com o hip hop foram acidentais, como Street Fighter é um jogo que mistura artes marciais e mágica. Ele condensa estilos de luta reais com bolas de energia e frases gritadas. Ele reduz países de verdade a panoramas bizarros. São todos os filmes de artes marciais dos anos 80 em um, uma antologia de esteriótipos, clichês e fantasia. Ele é inautêntico desde a criação. E essa falta de autenticidade é um dos seus maiores charmes.

Quando falei com o DJ Sokai, um músico de Riverdale, Georgia, especializado em mash-ups imprevisíveis, ele menciona uma palavra mais convincente: potencial. "Veja Chrono Trigger, ele não era realmente hip hop. Era mais orquestral, bem-arranjado, muito clássico. Mas quando acrescento Project Pat nele e recontextualizo o hip hop com esse som, as pessoas dizem 'Caralho! Você pode mixar Project Pat com isso?' Então há um potencial escondido aí. Às vezes você tem que rearranjar as sequências e quebrar os sons para conseguir encaixar direito, mas é um som muito modular e quando feito direito se torna um hit hip hop", diz Sokai. Para ele, o hip hop e Street Fighter (ou Chronos Trigger) são peças de quebra-cabeça que se encaixam nas condições certas. E que essas condições sejam autênticas ou imaginárias não importa: A compatibilidade só aparece quando você martela as peças juntas.

"O atributo chave de Street Fighter é sua capacidade de possibilidade."

E é aí que está a verdadeira afinidade entre Street Fighter e hip hop. Street Fighter não é o videogame favorito do hip hop por causa da equipe de marketing da Capcom, das batidas de Kideki Okugawa, do produt placement de John Singleton ou das ambições de Ryu. Nem é o videogame favorito do hip hop por causa dos paralelos entre luta e batalhas de rap (se fosse esse o caso, Tekken, Dead or Alive, Virtua Fighter, Guilty Gear e Smash Bros. poderiam aparecer tanto quando Street Fighter). Não, Street Fighter reina supremo porque repetidamente, por capricho, design, nostalgia e ambição, os dois sempre mergulham no abismo – da memória, da possibilidade, da curiosidade, do marketing – e sempre acham que podem tirar alguma coisa diferente de lá.

Street Fighter pode ter todas as armadilhas de continuidade – personagens estáveis, comandos que não mudam, música em loop fáceis de reconhecer – mas seu atributo-chave é sua capacidade de possibilidades, seu potencial de criar algo inesperado e emocionante. Essas emoções podem ser baratas como vencer seu irmão mais velho no sofá de casa ou espetaculares com como o jogador profissional Daigo buscando a vitória num torneio (ou Daigo perdendo uma partida para Lupe Fiasco ou dois cosplayers se casando). Às vezes essas emoções nem vem, mas os jogadores não se importam tanto; desde o começo, Street Fighter vem insistindo que o sucesso está a uma ficha ou um "Continue?" de distância. O que não é muito diferente da atração do jogo do rap.

Apesar de Street Fighter II ter sido construído para devorar fichas e o hip hop ter nascido para escapar da breguice da disco, o que os impulsionou além desses primeiros objetivos, juntos e separadamente, é uma crença inabalável nas possibilidades. A maioria dos jogadores não se tornam verdadeiros guerreiros, a maioria dos rappers não se tornam famosos, o Max nunca vai se desviar daquele soco, e a maioria das músicas sobre Street Fighter são ruins pacas. Mas, né, a gente nunca sabe.

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