Como foi viver às portas da Coreia do Norte em 2017
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Viagem

Como foi viver às portas da Coreia do Norte em 2017

O fotógrafo australiano Ashley Crowther conta como é viver a 60 quilômetros do Paralelo 38.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Austrália.

Foi um ano tenso na Península Coreana, com a Coreia do Norte a fazer grandes progressos no seu programa de armamento nuclear e a mostrar sinais de que não vai abrandar. Em 2017, a nação lançou 20 mísseis, levou a cabo o sexto e até agora mais poderoso ensaio nuclear e testou com sucesso mísseis balísticos intercontinentais, capazes de atingir território norte-americano. Estes actos continuados acenderam os alarmes por todo o Mundo e deram azo ao debate sobre como lidar com a Coreia do Norte e com o seu instável líder ditador.

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No entanto, a viver a menos de 60 quilómetros do Paralelo 38, que divide a Península Coreana, o fotógrafo australiano

Ashley Crowther garante que a vida às portas da Coreia do Norte não é tão tensa como alguns meios de comunicação podem fazer-nos acreditar. "Algumas coisas que leio têm um tom demasiado beligerante e não representam com exactidão o que se passa, dando uma sensação de que a guerra está iminente", conta Crowther. E acrescenta: "No terreno, aqui na Coreia do Sul, não há qualquer sugestão de guerra. A vida continua".

Pedi a Ashley que reflectisse sobre o ano que passou enquanto habitante de uma zona tão próxima da Coreia do Norte e que comentasse algumas das imagens que captou em 2017 e que o marcaram.

Ashley Crowther: Um homem empunha uma bandeira durante um protesto às portas do Palácio de Gyeongbukgung, na zona de Gwanghwamun, em Seul. A imagem foi captada poucos dias depois de um dos vários testes de mísseis nucleares levados a cabo a norte da fronteira. Este indivíduo fazia parte de uma manifestação nacionalista de extrema-direita, que defende um ataque à Coreia do Norte, caso o país continue a ensaiar armas nucleares.

Basicamente, apoiam a ideia de uma segunda guerra coreana. Senti que todo aquele protesto reflectia uma divisão entre velhos e jovens. Pelo que pude observar, nesta manifestação em particular não participaram quaisquer jovens.

Seong-yoel Lee, a preparar noodles caseiros no seu restaurante rústico na província rural de Gangwon-do. Apressou-se a convidar-me a entrar e não poupou na hospitalidade - que é uma característica maravilhosa da Coreia e das suas gentes. As nossas vozes ecoavam nas paredes do restaurante vazio, enquanto comíamos os noodles misturados numa sopa quente. Lee contou-me as suas preocupações acerca da subida dos preços dos bem essenciais no país.

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"Não tenho dinheiro, olha para o meu restaurante", disse. A Coreia do Sul é uma das nações mais ricas do Mundo; no entanto, conhecer pessoas como Lee é um lembrete de que muitos coreanos, como ele, t~em de fazer das tripas coração para sobreviverem som rendimentos mínimos e recursos limitados.

Jovens a cumprirem serviço militar na Coreia do Sul

Na Coreia do Sul é obrigatório o cumprimento de até dois anos de serviço militar para os rapazes. Ao longo do serviço podem ser colocados na fronteira com a Coreia do Norte, em postos da polícia civil, em posições de segurança. enquanto oficialmente a razão apontada para esta situação é a de que os homens devem ser treinados para responderem a um possível ataque norte-coreano, há argumentos contrários mencionados por vários jovens. Em coreano, a palavra para militar é guendae

, mas muitos rapazes utilizam o termo para explicarem como vão ser utilizados como escravos durante dois anos.

É comum que aqueles que estão a cumprir o serviço o vejam, essencialmente, como trabalho gratuito para o governo e para as forças de segurança, já que os salários que recebem rondam os 45 cêntimos à hora. Mas há outras teorias, que aprofundam a ideia de que o serviço militar é usado para, a longo prazo, condicionar os jovens coreanos a um estrito sistema hierárquico, em que têm de obedecer cegamente aos mais velhos e aos seus superiores. Esta ideia é um dos fortes fundamentos da cultura de Confúcio, extremamente enraizada na Coreia do Sul.

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Vista aérea de Seul, com a cidade e estender-se até para lá de onde a vista alcança

Perto de metade da população sul-coreana de 50 milhões, vive em Seul e na sua área metropolitana. É um dos locais do Planeta com maior densidade populacional e merece mesmo a etiqueta de "megapolis". A dimensão só pode mesmo ser entendida quando se vê a cidade de cima. Gente de todo o lado, principalmente jovens de áreas rurais, é atraída para Seul, em busca de carreiras profissionais e educação, ou pelo simples desejo de viver numa grande cidade. A competição é feroz. Devido a este magnetismo, as zonas rurais em todo o país estão em declínio.

VICE: Os cidadãos sul-coreanos que encontras no teu dia-a-dia enquanto fotografas nas ruas têm medo da ameaça da Coreia do Norte?
É como aquela coisa que se diz do "cão que ladra não morde". É uma descrição que ouço com frequência de muita gente, especialmente dos mais novos, em relação à situação com a Coreia do Norte. Na minha opinião, esta explicação é baseada na história. A maioria dos coreanos que cresceram no pós-guerra, conviveram toda a vida com as constantes ameaças da coreia do Norte, que nunca se materializaram. O que, de certa forma, as normalizou. De um ponto de vista geral, as pessoas preocupam-se com as suas carreiras, preocupam-se em terem boas notas nos estudos e em tentarem ganhar a vida. Tal como acontece na maior parte das sociedades industrializadas.

No entanto, isso não quer dizer que os sul-coreanos não se preocupem com a ameaça norte-coreana. Preocupam-se. Por exemplo, um jovem estudante universitário que fotografei, Earl Han, explicou-me que votou no actual presidente,

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Moon Jae-In, por uma razão: a sua posição contra o conflito com a Coreia do Norte. Disse-me ainda que é a obrigação de qualquer presidente faze tudo o que for possível para evitar uma guerra. Do outro lado da barricada, todavia, há um número significativo de pessoas de gerações mais velhas, convencidas de que é necessária uma acção imediata.

Falei com estas pessoas mais velhas em recentes manifestações que pediam abertamente que os Estados Unidos liderassem um primeiro ataque nuclear. É preocupante, tendo em conta o número potencial de vítimas e o tremendo problema geopolítico que ocorreria. De uma perspectiva nacional, consegues encontrar quase sempre histórias sobre a Coreia do Norte, mais curtas ou mais longas, nos meios de comunicação social. É um assunto regular em termos nacionais e, por vezes, a política doméstica foca-se fortemente na situação norte-coreana.

Uma idosa no metro de Seul

Na Coreia, tal como em muitas outras culturas do Leste Asiático, a idade é muito importante. A linguagem e a forma como as pessoas falam umas com as outras depende muito da idade. É uma característica cultural. Em coreano, Joendet Mal (honorífico) é um termo usado para alguém se dirigir a outra pessoa mais velha e, por sua vez, Ban Mal (casual) é usado para falar com alguém mais novo ou um amigo chegado.

Por vezes, pode até ser considerado rude não concordar com alguém mais velho, esteja essa pessoa errada ou a ser mal-educada. Dos adultos às crianças, estas ideias têm ainda uma forte presença na cultura coreana contemporânea.

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Heeja Choi

Na foto acima, Heeja Choi, 72 anos, está no seu apartamento a colocar maquilhagem, nenquanto na sua antiga televisão samsung passa um documentário sobre a Coreia do Norte. Heeja pertence à geração pós-guerra da Coreia, não tem opinião sobre a solução para o problema entre as duas nações. Logo depois de esta imagem ser captada, virou-se para mim e disse: "Agora, a Coreia do Norte é mais perigosa, mas sempre foi… é demasiado complicado".

VICE: Achas que há alguma coisa que os meios de comunicação ocidentais estejam a interpretar de forma errada sobre o que se passa na Coreia e sobre a forma como o conflito afecta as vidas dos sul-coreanos?
Acho interessante receber mensagens de pessoas do meu país ou de outros países ocidentais a perguntarem-me se está tudo bem, ou se coloco a hipótese de me ir embora. Para mim, isso torna claro que os media ocidentais estão a encobrir o actual clima político com uma espécie de sentimento de medo crescente.

No entanto, por outro lado, muito do que leio nesses mesmos meios, são bons argumentos contra a guerra. O artigo de Mark Bowden no Atlantic, "How to Deal With North Korea"

é bastante óbvio no que diz respeito à falta de boas opções se o conflito for a política escolhida. Seja lá por que lado se olhe para isto, o custo de vidas humanas seria inimaginável caso uma segunda guerra coreana viesse mesmo a acontecer. Desde uma crise de refugiados de tal ordem que faria com que a Síria parecesse uma brincadeira de crianças, à possibilidade de Seul, uma cidade com 15 milhões de habitantes, ser bombardeada.

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Se tivesse de apontar o dedo a alguém, não o apontaria aos media ocidentais, mas sim à actual administração norte-americana. A retórica da guerra debitada é extremamente desestabilizadora e demonstra uma total falta de compreensão da situação na Península Coreana, quer na actualidade, quer no passado. Tal como disse correctamente Barbara Demick, autora de Nothing to Envy: The Ordinary Lives of North Koreans, numa recente entrevista, a Coreia do Norte entende que ter armamento nuclear é a única forma que o regime tem de se agarrar ao poder… é fácil acicatar a guerra quando se está a um oceano de distância da devastação massiva que essa mesma guerra causaria. É uma situação muito complexa; não há respostas fáceis. Julgo que os coreanos do sul também o sabem e é por isso que a vida continua, quase sem interrupções.

Uma funcionária de elevador ajeita o cabelo enquanto leva a cabo o seu trabalho e ajuda as pessoas a deslocarem-se para cima e para baixo

A cultura corporativa coreana pode ser dura. A Coreia do Sul ocupa o terceiro lugar a nível mundial no que respeita a horas de trabalho. Em média, os sul-coreanos trabalham duas mil horas por ano, quase o dobro da média na Alemanha.

Também não é anormal que trabalhem uma número impressionante de horas extraordinárias por pouco ou nenhum dinheiro. Estas horas extra, muitas vezes, não são incluídas nas estatísticas. Ainda é prática comum em algumas empresas que, se um funcionário superior não tiver ainda saído do escritório, os funcionários de nível inferior não possam também sair.

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Zona Chojidong, em Seul

A gentrificação em Seul está em rápida aceleração. Na zona de Chojidong, integrada na grande área metropolitana da cidade, faz parte de um grande projecto de reabilitação, situado junto a uma nova estação de comboios de alta velocidade que faz a ligação ao sistema ferroviário nacional.

Em breve a maioria dos edifícios antigos será demolido para que se construam blocos de apartamento de luxo, tal como os que já se avistam ao fundo. Os pobres estão a ser empurrados a uma escala alarmante para cada vez mais longe. Para fora da vista. Para onde vão e o que vão fazer das suas vidas passa claramente despercebido.

Na foto acima vê-se uma cena urbana, numa zona de Seul que mudou relativamente pouco. Grande parte da cidade foi devastada durante a guerra coreana e a maioria da área urbana foi construída depois do conflito. Os bairros antigos parecem labirintos cheios de gente e sem qualquer organização. Passaram-se mais de 50 anos desde a guerra e a Coreia continua a modernizar-se.

Ainda há, no entanto, aqueles resquícios belos e pouco trabalhados do passado. Muitos restaurantes e lojas, tal como aquela que se vê na imagem, estão, todavia, a desaparecer e a ser substituídos por espaços novos e menus caríssimos.

Um homem de luto, sozinho. Vagueava por uma estação de metro no centro de Seul, a perguntar a estranhos se tinham visto a sua mulher. "Esta é a minha mulher. Esta é a minha mulher" Viram-na? Esta é a minha mulher".

Eram as únicas frases que dizia às pessoas enquanto lhes mostrava o retrato. Partiu-me o coração ver este idoso neste estado. Pareceu-me viver assim há vários anos.


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