Saúde

Escritórios podem ser um inferno para pessoas com cérebros que funcionam diferente

Os locais de trabalho hoje têm cheiros e luzes fortes, muita conversa paralela e mensagens constantes por e-mail e outros aplicativos. Para pessoas neurodivergentes, pode ser pedir demais.
HF
ilustração por Hunter French
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Traduzido por Marina Schnoor
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
Recognizing Neurodiversity Makes for a Better Workplace_HunterFrench
Ilustração: Hunter French.

Cerca de duas ou três vezes por semana, num pequeno escritório aberto em Londres, Lilith* trabalhava com um computador no colo, sentada embaixo de sua mesa – uma escrivaninha retangular grande compartilhada por seis pessoas, com divisórias baixas entre cada estação.

“Fico facilmente sobrecarregada com barulho e muitas pessoas ao redor”, ela disse. “As pessoas trabalhando comigo geralmente achavam engraçado, ou um pouco estranho, mas não me confrontavam sobre isso.”

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Lilith tem transtorno depressivo grave, transtorno do pânico, TOC, e mesmo frequentando terapia e tomando remédios, seus sintomas ainda podem aparecer. Quando ela trabalhava na redação de uma empresa de mídia digital em 2017, só estar no trabalho podia ser um desafio.

Pense num escritório típico: mais de 70% do tempo, esses lugares geralmente são um espaço grande com várias mesas compartilhadas. Talvez tenha uma divisória entre você e seu colega, às vezes não. Alguns escritórios têm um lugar onde você pode ir para se concentrar, trabalhar em silêncio, mas muitos não têm. Há um espaço separado para comer ou fazer uma pausa e mudar de cenário? Se você tiver sorte. Há cheiros, barulhos, luzes, conversas paralelas e as navegações sociais complexas exigidas para ser parte de uma equipe, disponível 24 horas, 7 dias por semana por e-mails ou telefone, participando de reuniões e colaborando com colegas.

Para pessoas neurodivergentes, trabalhar num espaço assim pode ser pedir demais. Neurodivergência descreve variações no jeito como cérebros funcionam, e engloba pessoas no espectro do autismo e com DDA ou dislexia. O termo vem se expandindo para incluir pessoas com ansiedade, depressão, TOC e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) – qualquer coisa que faça uma pessoa pensar de maneira um pouco diferente.

Defensores da neurodiversidade no trabalho argumentam que em vez de esperar que neurodivergentes se conformem com o modelo tradicional de escritório, os locais de trabalho poderiam funcionar melhor acomodando essa variedade. Quando têm permissão para trabalhar em em seu próprio horário e em ambientes receptivos, neurodivergentes podem prosperar. Mas mesmo que empresas de tecnologia como Microsoft, HP e SAP estejam expandindo suas contratações e práticas de trabalho para serem mais inclusivas, para muitos neurodivergentes, conseguir e manter um emprego é difícil. Por volta de 50 a 75% dos autistas com ensino superior estão desempregados nos EUA. A taxa de desemprego para pessoas recebendo tratamento para saúde mental de serviços públicos é de aproximadamente 80%.

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Ilustração: Hunter French

Lilith, agora com 25 anos, disse que alguns chefes permitiam que ela se acomodasse do seu jeito. Quando ela tinha ataques de pânico no escritório, ela podia sair para respirar. Quando sair de casa parecia impossível, ela podia trabalhar remotamente. Alguns dias ela trabalhava das 2 até as 4 da madrugada, depois ia para o escritório no final da tarde.

Hoje, Lilith saiu daquele emprego e está novamente trabalhando como freelance. “Não respondo bem a rotinas inflexíveis e tendo a aguentar uns seis ou oito meses antes de começar a me sentir frenética e ver minha saúde mental desmoronando”, ela disse. “Então meio que tenho medo de pegar outro emprego, só para começar a ter vários ataques de pânico e me sentir desapontada por não estar melhorando.”

Duas semanas em seu primeiro trabalho de tempo integral depois de formada, como assistente editorial num jornal de medicina, Sara Luterman, 29 anos, disse que foi demitida por “não se encaixar na cultura”. “Não sei o que isso significa”, ela disse. “Provavelmente fiz algo socialmente inapropriado, mas ninguém me disse o quê.”

Luterman é autista, e apesar de ter um currículo impecável, ela disse que é muito difícil conseguir e manter um emprego. “Geralmente acabo estragando tudo na entrevista, e muito disso provavelmente tem relação com habilidades interpessoais, dicas não-verbais e linguagem corporal”, ela disse. Já disseram que o jeito como ela fala é rude e condescendente.

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“Muitos autistas têm um tom de voz ou cadência incomum”, ela disse. “Já me chamaram no RH antes e tive que falar com meus colegas sobre isso, o que foi desconfortável. Quer dizer, fico feliz que eles tenham discutido isso comigo, em vez de apenas me demitir.”

“Provavelmente fiz algo socialmente inapropriado, mas ninguém me disse o quê.”

Essas interações sociais também já afetaram Sonny Hallett, 32 anos, que é autista e trabalha como ilustrador em Edimburgo. Hallett disse que não consegue manter um trabalho por mais de nove meses. “O dia a dia num escritório aberto é muito desafiador sensorialmente – o barulho, a luz, estar constantemente cercado por outras pessoas são coisas que vão se acumulando, até que estou exausto o tempo todo, sempre no limite.”

Hallett disse que quando trabalha, ele acaba superfocado num projeto, então parar para conversar com alguém – algo que acontece muito num escritório – pode ser estressante e perturbador. Quando consegue manter o foco, ele continua numa tarefa até que ela esteja completa. Isso significa que muitas vezes ele termina seu trabalho mais cedo, e alguns gerentes se irritavam vendo ele sentado lá, aparentemente sem fazer nada.

Carly*, 27 anos, que tem ansiedade, depressão e TEPT, e trabalha como diretora de arte numa agência criativa, disse que seus comportamentos para lidar com isso nem sempre recebem aprovação. Se há muito pensamentos ansiosos em sua mente, ela acha útil usar um brinquedo de stress durante reuniões ou brainstorming.

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“O feedback do meu gerente era que eu devia tomar mais a iniciativa e parecer mais interessada, o que é muito difícil por causa da minha ansiedade”, ela disse. “Posso estar realmente interessada em alguma coisa, mas muitas vezes estou sobrecarregada e distraída, o que não significa que não me importo.”

Claro, todo neurodivergente é diferente, mas há tendências comuns para o que muitas pessoas querem e precisam. Rob Austin, professor de administração da Ivey Business School no Canadá, documentou o progresso de programas de neurodiversidade, e disse que mudanças ambientas podem ser um ótimo primeiro passo: cores mais suaves, mais luz natural, plantas e criar espaços de silêncio ou sem barulhos que distraiam. Em alguns casos, Austin disse, empregadores devem fornecer escritórios individuais ou espaços privados aos funcionários.

David Ballard, chefe do Programa Local de Trabalho Psicologicamente Saudável da Associação Psicológica Americana, disse que neurodivergentes apreciam mais tempo trabalhando em casa, ajustando a hora de chegada e de saída. Permitir essa flexibilidade no horário e deixar as pessoas fazerem o que precisam para lidar com o barulho e o ambiente – sem julgamentos – é a chave.

Isso funcionou para Tyler*, um ex-soldado de 32 anos que passou duas temporadas no Iraque e agora é um profissional de sustentabilidade. Ele já trabalhou com o surto de Ebola na África Ocidental, resposta a desastres no Haiti e no desenvolvimento de instalações de reciclagem em Serra Leoa. Ele tem TEPT e problemas de sono devido ao seu tempo de serviço. “Normalmente, consigo ser produtivo e ir trabalhar depois de uma noite sem dormir, mas chegando a três ou quatro noites, fico paralisado”, ele disse. Nesse ponto da semana, ele geralmente já trabalhou por volta de 30 horas. Então quando ele precisa se afastar, gerenciar suas horas de sono e ficar com seu cão de serviço, ele precisa que seus chefes confiem que ele fará seu trabalho, em seu próprio tempo.

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Daniel Gritzer, 40 anos, tem misofonia, também chamada de síndrome seletiva de sensibilidade a sons. Como o nome sugere, pessoas com misofonia não conseguem tolerar certos sons. Sons que incomodam Gritzer são sons de boca, como mastigação, e também barulho de teclado muito alto. Para alguém que não tolera o som de mastigação – mesmo ver a mandíbula de outra pessoa mexendo enquanto masca chiclete no metrô pode ser perturbador – ele escolheu uma linha de trabalho contraintuitiva: ele é o diretor de culinária do site Serious Eats. [Nota do editor: Gritzer é marido de uma editora da VICE.]

Quando Gritzer está na cozinha de testes cozinhando, ou filmando vídeos, há barulho ambiente suficiente para bloquear sons ofensivos. No resto do tempo ele usa fones de ouvido e ouve música para evitar sons gatilho. Uma acomodação simples – usar fones na maior parte do tempo – permite que ele passe sem problemas pelo dia de trabalho. A carreira de Gritzer revela mais uma coisa: só porque um neurodivergente é perturbado por alguma coisa, isso não quer dizer que ele não possa prosperar num emprego específico.

“Em empregos passados, eu me sentia um pouco constrangido com isso”, ele disse. “As pessoas provavelmente pensavam que eu estava sendo antissocial ou que eu não conseguiria fazer meu trabalho usando fones constantemente – elas ficavam imaginando 'O que ele está ouvindo?'”

Só porque um neurodivergente é perturbado por alguma coisa, isso não quer dizer que ele não possa prosperar num emprego específico.

No último trabalho num escritório de Luterman, ela tinha um cubículo, e as pessoas frequentemente paravam na mesa dela para tentar conversar. Para se acomodar melhor, ela colocava um cartaz na parede que podia ser vermelho, amarelo ou verde. Vermelho significava que ela estava focada e não queria ser interrompida, amarelo significava que ela estava trabalhando mas podia parar para falar de algo necessário, e verde indicava que ela estava livre. Quando não era interrompida, ela conseguia terminar seu trabalho no tempo esperado.

“Acho que o autismo me torna uma editora muito boa porque tenho um bom padrão de reconhecimento, sou muito boa em seguir regras, noto discrepâncias com facilidade e não me importo de fazer trabalho chato e repetitivo”, ela disse.

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Em vez de servir apenas alguns indivíduos, Austin disse que sua pesquisa descobriu que todo mundo num escritório se beneficia de acomodações assim: espaços físicos melhores, mais flexibilidade e comunicação sobre as necessidades dos funcionários. Mas alguns chefes podem não se sentir assim, disse Ballard, e ficam hesitantes com flexibilização. “Alguns empregadores pensam que fazer esses ajustes e acomodações é permitir que as pessoas façam menos, ou baixar seus padrões”, ele disse.

Empresas como IBM e Yahoo já tentaram tornar toda sua força de trabalho remota – a IBM se gabava de que “40% dos 386 mil empregados da IBM em 173 países não estão num escritório”, segundo o The Atlantic. Isso até a produtividade e lucro da empresa começarem a despencar e eles reverterem a decisão, trazendo os empregados de volta para os escritórios.

Ballard acha que histórias assim criam conceitos equivocados sobre horários flexíveis e acomodar pessoas neurodivergentes. Criar acomodações para tornar um ambiente de trabalho melhor é diferente de acabar totalmente com um escritório. Um relatório de 2017 do Gallup sobre “O Estado do Local de Trabalho nos EUA” falou com 7 mil pessoas sobre seus empregos, e descobriu que as pessoas mais “envolvidas” no trabalho eram aquelas que passavam três ou quatro dias trabalhando remotamente – não aquelas que passavam todo o tempo em casa, ou aquelas que passavam todo o tempo no escritório.

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O layout de um escritório aberto. Imagem: Wikimedia Commons.

“Acho que há um equívoco de que quando você faz essas coisas, você está desistindo, e deixando as pessoas se safarem fazendo menos, ou que a qualidade vai ser prejudicada, o que é totalmente errado”, disse Ballard. “Quando aquilo aconteceu com a Yahoo e a IBM, acho que havia problemas com a flexibilização do trabalho. Acho que foi um problema gerencial. Se a performance estava sofrendo, não era porque as pessoas estavam trabalhando pela internet ou remotamente, foi porque os gerentes não estavam equipados ou não sabiam lidar com uma força de trabalho remota.”

Mas ele admite que é preciso acertar um equilíbrio. Para pessoas com problemas de saúde mental, é importante não perpetuar o comportamento disfuncional. Se alguém tem ansiedade social, por exemplo, pode ser útil não colocá-la numa posição onde ela ficará sobrecarregada. “Mas se você cria um ambiente que permite que alguém se isole completamente, não tenha nenhuma interação social, na verdade você está empurrando a pessoa para estratégias negativas para lidar com o problema, e não a ajudando a longo prazo”, disse Ballard.

A solução provavelmente está em algum lugar no meio disso: um fluxo de trabalho que mantêm pessoas no escritório, ou grupos menores de interação, enquanto se abstém de outras interações sociais desnecessárias. Por isso é importante que gerentes sejam treinados para trabalhar com todo tipo de neurodivergências, disse Ballard, para que eles possam notar se alguém está tendo problemas. E esses diálogos, como as mudanças ambientais, acabam tendo um impacto positivo nos gerentes também, disse Austin.

“Um grande momento da pesquisa que estamos fazendo é que quando empresas fazem acomodações para pessoas em programas de neurodiversidade, e boa parte dessas acomodações são úteis para outros empregados também”, ele disse.

Há uma analogia que a SAP Tech usa: pensar nos empregados num escritório como um quebra-cabeça, disse Austin. Todo mundo é como uma peça, com formato irregular de maneiras diferentes. “O que fazemos historicamente quando empresas competem em eficiência e produtividade é pedir para as pessoas cortarem ou deixarem em casa suas formas irregulares”, ele diz. “Porque queremos que todo mundo se conforme.”

Mas quando se trata de ter novas ideias, Austin disse que as empresas estão percebendo que essas partes irregulares podem catalisar originalidade e inovação: “Para mim, isso a uma abordagem mais iluminada do gerenciamento, onde vemos acomodações não como um fardo, mas como algo que fazemos para acessar novas oportunidades de criação”.

*Os nomes foram mudados para proteger a identidade dos entrevistados.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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