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Confissões do último homem sem telemóvel

Segui algumas tendências ao longo da vida, mas nunca tive telemóvel.

Illustrações por Jack Graydon

Segui algumas tendências ao longo da vida: os ténis Nike, dormir numa cama e ler Hunger Games. Este artigo está a ser escrito num MacBook, já conduzi um Jeep descapotável no verão, e até já comi pipocas de microondas. Tenho um blog, um Twitter, e às vezes trabalho mais de 50 horas por semana. Podemos dizer que sou um cidadão americano normalíssimo, à excepção de uma particularidade.

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Nunca tive telemóvel.

Eu sei, devia ter vergonha. As pessoas têm vergonha de mim. A minha irmã mais nova, por exemplo, apresenta-me assim aos seus amigos: “Este é o meu irmão Peter. Não tem telemóvel”. Aparentemente, é uma informação importantíssima.

A semana passada uma senhora perguntou-me se podia emprestar-lhe rapidamente o telemóvel.

Quando lhe respondi que não tinha nenhum ficou muito espantada.

Perguntou-me se estava tudo bem.

“Se está tudo bem? Olhe, agora fiquei na dúvida…”

Ás vezes sinto-me como o Holden Caulfield, do The Catcher in the Rye, naquela parte da prostituta. Sei que devia ter um orgasmo só de ouvir falar do novo telefone ultra-seguro da Boeing, mas a verdade é que esse tema não me entusiasma nem um bocadinho.

O quê? Com este telemóvel é possível codificar todas as nossas comunicações através de um sistema de numeração revolucionário, armazenar e ao mesmo tempo proteger todas as nossas informações, e tudo isto por apenas 629 dólares? Porque é que não disseram antes?

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Quando vejo um destes anúncios, ou ouço alguém falar sobre o 4G, pergunto-me: Será que há um 5G? Ou um 6G? Será que os espiões da CIA usam o 6G em segredo? E antes do 4G, houve um 4F, ou era o 3G? O 3,5F, talvez?

Quando começo a divagar sobre estas coisas, começo logo a pensar no uso do alfabeto, e nas suas limitações - são só 26 letras. Ah, mas por outro lado, os números são infinitos, mesmo na sua versão negativa. E além disso, entre o 4 e o 3 as possibilidades são infinitas.

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Penso no infinito e no facto de que, apesar da rotação terrestre, do dia e da noite, das estações do ano, e dos pólos opostos, não existe “de pernas para o ar” no universo. Só existe o universo por todo o lado, em todas as direcções.

Sempre com esta ideia na cabeça, vou até à cozinha beber um copo de água. Olho pela janela e penso: A distância é relativa.

Neste mundo dos telemóveis há muitas coisas que me deixam atónito. Como nunca enviei uma mensagem não entendo nada de linguagem SMS. Não sei o que quer dizer LOL ou YOLO. Ah, e ainda há o tema dos símbolos.

Por exemplo, fiquei a saber há pouco tempo que “<3” não quer dizer “menor que três”. Tinha esta dúvida. Não entendia porque é que, na internet, as pessoas comentavam “Adoro a tua voz menor que três”, ou “Estás super gira inferior a três”. Mas porque é que nunca dizem “maior que 100”, ou pelo menos “maior que 9”

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Tenho um amigo que começou a sair com uma rapariga há pouco tempo. Passam o dia naquilo, nas mensagens. Estou preocupado com ele, está sempre encurvado, vai dar um jeito ao pescoço. Está sempre vidrado no mini ecrã que tem nas mãos.

Quer dizer, peço desculpa: Está sempre vidrado no seu enorme ecrã Plus de 10,16 centímetros. Já me tinha esquecido de como 10 centímetros podem ser “gigantescos”. Quando vejo estes anúncios, onde te explicam a imensidão dos tais 10 centímetros, penso logo nos meus tempos de escola, e em como “ter” 10 centímetros entre mãos era mais motivo de vergonha que de orgulho.

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A minha irmã tem um iPhone 5S com Siri. Para além de ser táctil, também tem um sistema de reconhecimento por voz.

Ela fala com o telemóvel: “Encontra: Café Maravilhas”.

E continua: “Posso surfar à borla”. Então, só para chateá-la, mesmo que saiba perfeitamente o que é “surfar” respondo-lhe: “Mas tu nunca fizeste surf, pois não?”

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Uma amiga disse-me há pouco tempo: “Deve ser demais viver no seu próprio mundo, como tu”, mas eu sei que lá no fundo ela não pensa assim. Ninguém quer estar no meu lugar. É perigoso viver assim, sem telemóvel. Os meus amigos e família estão sempre a perguntar-me: “ E como é que fazes se tiveres um problema?”

Eu respondo: “Que tipo de problema?”

“Hmmm…por exemplo, se te perdes num bosque e precisas de ajuda.”

“Como é que um telefone me pode ajudar, se por acaso me perco num bosque e preciso de ajuda?”

“Com o GPS Pete. Os telemóveis agora têm um GPS incorporado.”

“Ah, claro, o GPS”, mas antes de terminar pergunto: “Porque raio é que me perderia num bosque?”

Eles desistem. Não gostam que eu não tenha telemóvel. Talvez achem que passo ao lado de qualquer coisa essencial. Muita gente me propõe emprestar-me um, daqueles que têm em casa e já não usam. É engraçado, são como uns dealers que me dizem todos o mesmo: “Experimenta, não custa nada.”

Eu entro no jogo: “Obrigada man, prefiro ficar fora dessa cena”.

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Quando conto ás pessoas histórias do tipo: “Tenho um amigo que no outro dia caiu da bicicleta, e sangrava do nariz, havia sangue por todo o lado. Eu pedia o telefone emprestado às pessoas que passavam para poder ligar às urgências, porque claro, eu não tenho, e o meu amigo, que estava completamente KO, começou a ter convulsões, pensei que ia morrer, e…”

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“Espera lá. Estás a falar a sério? Não tens telemóvel? Mas porquê?!”

Num do meus passeios encontrei um senhor na rua, com um cartaz que dizia: Tenho fome, não tenho dinheiro, ajudem-me por favor”.

Tinha um enorme telemóvel táctil, guardado num estojo que levava à cintura. Surpreendeu-me que alguém que pede dinheiro para comer também pague, todos os meses, uma factura de telefone. Quem é que lhe disse que era obrigatório ter um telemóvel? Sou fã desta cena americana, da terra dos livres, e não sou melhor que ninguém, mas será que esta liberdade implica que toca a gente pague uma fortuna por um telemóvel?

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Por outro lado, fiquei a saber que uns hipsters de Portland estão a voltar aos telefones old-school. É como dizer que os Green Day ou os Radiohead são “daquelas bandas que ainda ninguém conhece”.

O jovem Ashleigh, com óculos de tartaruga, uma lenço à volta do pescoço, e uma boina à la Che Guevara diz-me que o seu telemóvel não tem internet e não custa mais que 20 dólares. Está super emocionado com tudo isto, tanto que quase se engasga.

“Uau! Genial!”, respondo.

Ele abana o telefone, fecha os olhos, e faz caretas de felicidade: “Não dá para mais nada, só telefonar, mandar mensagens e tirar fotografias”.

Eu tento devolver o entusiasmo: “Uau. Que loucura”.

Mas depois pergunto-me. No meu caso, o que é que quer dizer voltar ao old-school?

***

Tenho que admitir, não acho que seja MESMO o último ser humano sem telemóvel.

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De certeza que há um senhor muito velho, no meio do nada, que não ouve bem e não percebeu quando os netos, preocupados, lhe disseram: “AVÔZINHO, É IMPORTANTE! PRECISAS DE UM TELEMÓVEL PARA PEDIR AJUDA QUANDO TE PERDERES NO MEIO DE UM BOSQUE”.

***

Ontem falava com um amigo sobre os óculos do google. Ele é a favor, eu sou contra, claro.

Ele perguntou-me: “Tens medo de voar demasiado perto do sol e queimar as asas, Pete?”

“Não, tenho medo de cavar demasiado perto duma canalização e acabar na merda”, respondi.

“Pete, tu não…”

Ele parou, levantou um dedo antes de baixar a cabeça, sinal universal para dizer que recebemos um SMS.

Estava ali, silencioso, como se rezasse. Eu não o interrompi claro, preferi respeitar o seu momento de devoção.

Não sou crente, mas não quis interrompê-lo, seria rude da minha parte.

Peter Brown Hoffmeister é escritor. Acaba de passar 5 semanas a escrever um romance, numa aldeia da América central de 200 habitantes, onde um rapazinho de 12 anos tinha um velho telemóvel do qual todos os meninos tinham inveja. Apesar de tudo, tem Twitter.