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Drogas

O "Pai da Canábis". O cientista que descobriu os segredos da erva

No início do século XX, o mundo moderno virou as costas às investigações levadas a cabo em torno desta planta sagrada e poderosa, usada por médicos, xamãs e druidas ao longo de três mil anos.
Mechoulam dá uma aula, com as estruturas químicas da canábis atrás de si (1964). Cortesia de Zach Klein, do seu documentário 'The Scientist'.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Colômbia.

Em 1980, uma equipa de investigadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo publicou um estudo que deveria mudar a vida de 50 milhões de epilépticos em todo o mundo.

As descobertas da investigação, realizada em parceria com a Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, eram, no mínimo, encorajadoras. Os cientistas administraram doses diárias de 300 miligramas de canabidiol, o componente não-psicoativo mais importante da erva, num grupo de oito pacientes epilépticos. Quatro meses depois do começo do tratamento, quatro deles pararam de ter convulsões e três outros viram a frequência dos ataques diminuir.

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Parecia promissor, claro. Por muitos motivos, porém, as coisas não avançaram na direcção esperada. "Quem é que se importou com as nossas descobertas? Ninguém!", conta-me o químico búlgaro Raphael Machoulam, franzindo a testa, sentado no seu sofá. "Isto, apesar de muitos dos pacientes serem crianças que tinham 20, 30, 40 convulsões por dia. E o que é que se fez? Nada! Durante os 30 anos seguintes ninguém usou a canábis para tratar a epilepsia".


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Procurei Mechoulam durante um ano. Como qualquer pessoa interessada no uso médico da canábis, formei na minha cabeça uma imagem mítica deste cientista. Uma figura meio Karl Marx, meio Syd Barrett. Uma mente revolucionária que desafia as convenções do seu tempo e altera, para sempre, a nossa percepção do mundo.

Há alguns meses atrás, Norton Alberláez, o empresário colombiano que projectou o sistema regulatório da canábis medicinal no Colorado, nos Estados Unidos, tinha-me dito que as investigações do especialista em química orgânica tinham acrescentado um peso fundamental ao seu lobby de regulamentação em terras norte-americanas.

Enquanto isso, Juan Manuel Galán, um senador do Partido Liberal colombiano, avançou-me em Novembro último, que tinha viajado para Jerusalém, onde Mechoulam mora, para se encontrar com o cientista no seu laboratório, de forma a pedir-lhe informações para o seu projecto de lei, que tem como objectivo legalizar a erva medicinal – aprovado pelo Senado colombiano em Dezembro e que será debatido pela Câmara dos Representantes neste mês de Março.

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Todos aqueles com quem falei sobre o cientista estavam de acordo num ponto: Mechoulam é o pai da canábis moderna.

Mechoulam no seu laboratório, na Universidade Hebraica, Jerusalém. Fotografia de Elior Rave

Raphael Machoulam, de 85 anos, mora numa casa pequena, sóbria mas elegante, no oeste de Jerusalém, onde o prédio de mármore e as árvores no jardim da frente fazem com que te esqueças que Israel está em alerta militar permanente. Todos os dias conduz o seu Peugeot prateado pelos arredores da cidade onde passou as últimas cinco décadas a decifrar os mistérios químicos da erva, principalmente o modo como o corpo humano interage com os compostos encontrados na planta.

Raphie, como lhe chamam os seus colegas, isolou e especificou a estrutura molecular dos "canabinóides", os compostos químicos da erva. Em particular, decifrou o tetraidrocanabinol (THC), a molécula responsável pela moca da canábis, e o canabidiol, o principal composto não-psicoativo da planta, que carrega várias qualidade medicinais.

No começo do século XX, com a proibição gradual da canábis nos EUA, o mundo moderno voltou as costas às investigações levadas a cabo em torno da planta sagrada e poderosa usada por médicos, xamãs e druidas ao longo de três mil anos. A Pen-T'sao Ching, a mais antiga farmacopeia existente, regista o uso da cannabis na China por volta de 2700 a.C. para tratar dores reumáticas, prisão de ventre, transtornos reprodutivos femininos (como endometriose) e malária.


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De maneira similar, o pai da cirurgia chinesa, Hua Tuo, desenvolveu um componente anestésico de vinho e erva durante o século I a.C. Registos semelhantes estão em documentos e relatos da Índia, Oriente Médio, África e até Europa, onde em 1838, William Brooke O'Shaughnessy, um médico irlandês, publicou – após experiências com animais e humanos – um livro intitulado On the Preparations of the Indian Hemp, or Gunjan. No Tibete, em 6 a.C., a canábis era usada em rituais budistas tântricos para "facilitar a meditação", enquanto os assírios a usavam como incenso.

Raphael Mechoulam não sabia nada disso quando começou sua pesquisa, há mais de 50 anos. Filho de um casal judeu búlgaro perseguido pelos nazis (o seu pai, um médico importante, sobreviveu a um campo de concentração), Mechoulam saiu da Europa em 1949, logo depois da formação do Estado de Israel. Lá estudou química, fez mestrado em bioquímica, serviu o exército, estudou pesticidas e completou o doutoramento em 1963 no Weizmann Institute em Rehovot – o mesmo lugar onde viria a descobrir os segredos da cannabis.

"Mechoulam tinha descoberto o composto psicoactivo responsável pela moca da erva".

"Tinha 34 anos quando comecei a procurar temas de investigação", diz quando lhe pergunto sobre a origem do seu interesse pela canábis. Confesso que esperava que me respondesse com algo relacionado com uma fase hippie dos anos 60 – "estava a fumar uma ganza no meu laboratório, quando…" –, mas Mechoulam deu-me uma resposta bastante directa. Disse que só consumiu canábis uma vez na vida e o que o motivou foi, na verdade, o facto de ser um assunto inédito no campo científico.

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"Um cientista tem que escolher um tema original, um que não tenha outras 50 pessoas a trabalhar nele", salienta. O tema também tem que ter um impacto substancial e social. Nessa época, li muitos artigos em inglês, russo, francês e alemão para tentar descobrir algum problema inexplorado, até que percebi que havia poucos conhecimentos químicos sobre os componentes da canábis. Achei isso surpreendente: enquanto a morfina tinha sido isolada do ópio e a cocaína da folha de coca, ninguém tinha estudado a química da planta da marijuana. Era muito estranho".

Um dia, o jovem químico apareceu no escritório do director da Faculdade e pediu que o ajudasse a conseguir um pouco de produto. O director não pensou duas vezes. Pegou no telefone e ligou para a polícia, que doou cinco quilos de haxixe marroquino que os oficiais tinham apreendido recentemente vindo do Líbano (Mechoulam conta este facto de uma forma bastante engraçada no seu documentário biográfico, The Scientist, realizado por Zach Kelin). Pouco tempo depois isolou, um a um, todos os componentes da planta.

Quais desses componentes eram a causa de toda a estimulação mental que aterrorizou os governos e legisladores no século XX? Era apenas um, ou a combinação de todos? Para responder a essa pergunta, Mechoulam e a sua equipa testaram cada um individualmente em macacos. A primeira descoberta surpreendente foi que apenas um deles, o tetraidrocanabinol (THC), tinha efeito único. Os primatas pareciam bêbados, sedados.

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"O crescimento da simpatia política em relação à canábis estava, segundo os membros do painel do debate, a gerar uma falsa sensação de segurança sobre a erva".

Mechoulam tinha descoberto o composto psicoactivo responsável pela moca da erva. Para confirmar, levou uma grande dose de THC para casa e pediu à sua esposa, Dalia, que a colocasse na receita de um bolo. Naquele dia, o pai da cannabis ficou mocado pela primeira e única vez. Também conseguiu provar um fenómeno que hoje guia as investigações sobre canábis medicinal: cada pessoa reage de forma diferente ao THC. Ele percebeu isso quando olhou à sua volta: um dos seus amigos falava sem parar, outro parecia em transe, um terceiro não conseguia parar de rir. Um deles parecia paranóico.

Enquanto ouvia esta história, lembrei-me de um debate sobre cannabis medicinal a que assisti uma vez, integrado no Congresso Nacional de Psiquiatria na cidade colombiana de Armênia. Na ocasião, três psiquiatras disseram que estavam preocupados com como os media falavam sobre a marijuana medicinal, particularmente depois de o Ministério da Saúde colombiano ter assinado um decreto que regulamentava a droga.

O crescimento da simpatia política em relação à canábis estava, segundo os membros do painel do debate, a gerar uma falsa sensação de segurança sobre a erva. Para os psiquiatras, o novo foco de atenção da comunicação social gerado por esse debate político obscurecia os estudos, que provavam que um em cada 10 adolescentes que experimentavam marijuana desenvolviam episódios psicóticos e comportamentos abusivos em relação a drogas. Falei sobre esta discussão com Mechoulam.

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"Nem o THC nem o canabidiol são tóxicos. No entanto, desde o século sexto, sabemos que a erva pode causar episódios psicóticos. Além disso, há provas de que 10% dos consumidores de marijuana desenvolvem um vício, apesar de não ser tão forte quanto o da morfina, por exemplo. Mas além de transtornos psiquiátricos ou a possibilidade de vício, não há evidência de nenhuma doença causada pela canábis".

Todos os debates correspondem puramente ao uso recreativo da droga, refere Mechoulam. Para ele, uma coisa é debater os riscos envolvidos em fumar erva para apanhar uma moca e outra coisa muito diferente é explorar as aplicações medicinais dos seus componentes, em particular o THC e o canabidiol. A primeira é algo que Mechoulam prefere deixar para os sociólogos. Mas a segunda ocupou uma grande parte da vida dele e dos membros da Sociedade Internacional de Investigação dos Canabinóides, uma rede crescente de académicos que, sob a sua tutela, confirmaram em laboratórios as razões por trás do uso histórico da planta.

É provável que a maior descoberta de Mechoulam não seja nem o THC nem o canabidiol. Depois de um curto frenesim nos anos 70, e enquanto todas as forças policiais do mundo perseguiam o cultivo e consumo de erva, a ciência gradualmente perdeu interesse nos canabinóides. Mas Mechoulam não parou de fazer perguntas. No final dos anos 80, começou a investigar as formas como o THC interagia com o sistema nervoso.

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"Depois de descobrirmos o THC, começámos a estudar o metabolismo e as maneiras como o corpo humano reage aos seus componentes", recorda. "Uma equipa de Oxford afirmou que o THC trabalhava de uma maneira não-específica. Mas nós, com a ajuda de uma jovem investigadora, mostrámos que, na verdade, isso é muito específico".

A investigadora referida pelo cientista é Allyn Howlett, doutorada em neurociência, que em 1988 descobriu que o cérebro da maioria dos animais tem um receptor no sistema nervoso designado especificamente para interagir com o THC. Chamou-lhe CB1. Encontrar o CB1 foi como encontrar a fechadura para uma chave em particular – uma descoberta seguida por uma questão perturbadora: como era possível que o sistema nervoso tivesse um receptor designado especificamente para reagir a um composto da erva? O corpo humano evoluiu para interagir com uma planta específica? Deus (ou Darwin) estava a sugerir que homem e a marijuana foram feitos um para o outro?

"Em Dezembro de 1992, Mechoulam relatou a descoberta de um composto produzido pelo corpo humano, localizado dentro e à volta do cérebro, que se ligava ao receptor que ele tinha descoberto anos antes".

A resposta que Mechoulam encontrou gerou um turbilhão científico que, até hoje, é abastecido com biliões de dólares da indústria farmacêutica. "O nosso sistema nervoso tem muitos receptores neurais e esses receptores estão ligados a algumas substâncias produzidas pelo nosso corpo [dopamina, ou serotonina, por exemplo]", explica. "Mas esses receptores não foram criados para terem uma ligação com um arbusto. Se esse fosse o caso, teríamos milhões deles, cada um para uma espécie de planta da Terra".

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Por outras palavras, se o corpo humano tem receptores específicos para isso, significa que o nosso corpo produz canabinóides.

Em Dezembro de 1992, Mechoulam relatou a descoberta de um composto produzido pelo corpo humano, localizado dentro e à volta do cérebro, que se ligava ao receptor que ele tinha descoberto anos antes. Foi como se, de repente, tivesse descoberto outra chave que se encaixava perfeitamente na fechadura. A descoberta era tão importante que a molécula merecia um nome à altura. Um membro da equipa, entusiasta do misticismo hindu, baptizou-a de anandamida, do sânscrito "ananda", que significa alegria suprema.


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Com a descoberta do CB1 e da anandamida (e mais tarde a descoberta de um receptor similar, o CB2), tornou-se evidente para Mechoulam e para a sua equipa que o corpo humano continha um sistema de receptores e compostos muito similares aos encontrados na erva. Deram-lhe o nome de sistema endocanabinóide. Desde então, duas perguntas não têm deixado dormir os investigadores: que função preenche esse sistema dentro do equilíbrio frágil e quase perfeito que mantém os humanos saudáveis? E como pode a erva ser usada para tratar doenças relacionadas com esse sistema?

"O sistema endocanabinóide é muito importante. Quase todas as doenças estão ligadas a ele de uma forma ou de outra. E isso é muito estranho. Não temos muitos sistemas que estejam envolvidos com todas as doenças", diz Mechoulam, explicando pacientemente o que, sem dúvida, já explicou muitas vezes antes. De que doenças estamos a falar?

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"Mechoulam é um activista da ciência da canábis. O homem sábio, apesar de ignorado durante décadas, insiste que a humanidade não é digna do que os canabinóides têm para oferecer".

"De todo o tipo! Doenças do pulmão, coração, fígado, rins: tudo depende de quão intensamente os receptores são estimulados. Veja-se a dopamina, por exemplo. Se o nosso corpo tem pouca dopamina, podemos desenvolver Parkinson; se tem muita, podemos sofrer de esquizofrenia. É a mesma coisa com os canabinoides. O receptor CB2 é um protector. Isso protege o corpo de várias coisas. O CB1 trabalha de maneiras diferentes, dependendo se a dosagem é alta ou baixa.

Por outras palavras, desde que os níveis de anandamida – e outros endocanabinóides descobertos desde então – se mantenham estáveis, o corpo humano realizará as suas funções correctamente. Se esses compostos se desequilibram, a ciência pode usar canabinóides como o THC e o canabidiol para curar muitas doenças".

O professor garante que há pistas de que esse sistema está relacionado a certos tipos de cancro. "Mas não temos ainda a certeza", salienta, franzindo a testa. "Não temos provas, porque os estudos clínicos sobre isso não estão a ser feitos! Conhecemos pessoas que estão a consumir THC e dizem que se curaram de cancro. Mas além disso, não sabemos nada. Precisamos de mais investigações! Precisamos de mais estudos clínicos".

Esse é um sentimento que repete em todas as conversas, entrevistas ou aulas que dá. Mechoulam é um activista da ciência da canábis. O homem sábio, apesar de ignorado durante décadas, insiste que a humanidade não é digna do que os canabinóides têm para oferecer. Hoje, soa ligeiramente mais optimista, graças ao interesse recente de académicos e empresas farmacêuticas pelos seus estudos.

"Estou curioso", digo no final da nossa entrevista, "como é que uma máquina de lucro como a indústria farmacêutica ignorou todas essas descobertas?". "É simples", responde, "quem quer uma primeira página do New York Times a dizer: 'Merck factura milhões com erva'?".


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