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Música

Canções que salvam vidas: Gisela João

O fado nunca nos arrepiou. Nunca nos fez comprar um disco, ir a um concerto, ou a uma casa de fados. Nunca, até Gisela. "Nua" é o novo disco e é bom que se farta.
Estelle Valente

Está a chover que se desunha. Está um calor infernal. É sexta-feira e estás em pulgas para a rambóia logo à noite e para fritares a molécula. Por outro lado, é sexta-feira, estás em pulgas para a rambóia logo à noite e para fritares a molécula, mas não tens guito. Não te apetece ir trabalhar. Não te apetece estudar. Vais é dar uma volta pela cidade. Espera, está a chover. Pronto, vais ver o mar, que está um calor diabólico. Alto, que isto está cheio de turistas e não dá para ir a lado nenhum. Nunca mais chega a Primavera! Primavera é que não, que é só alergias.

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Um gajo nunca está contente. Se não é do cu é das calças. O que vale é que, como toda a gente sabe, há canções que salvam vidas (os Smiths cravaram-no a letras de ouro no cancioneiro pop para toda a eternidade). Semanalmente, e para que a tua vida ganhe um novo sentido e encontres a salvação possível, deixamos por aqui um desses bocadinhos de lírica e melodia (ou ruído e grunhidos selvagens, conforme a disposição) que têm a capacidade de, em pouco mais de três minutos, te salvarem. Se não a vida, pelo menos o dia.

Vídeo realizado, fotografado e editado por André Tentugal

A Gisela é uma deusa. Não há meias palavras. Não há necessidade de não o dizermos à boca cheia. Foram precisas várias gerações para o fado nos chegar. A nós, os que crescemos a renegá-lo. A não o querermos ouvir. Não nos dizia nada. Não o sentíamos. Como é que o podíamos sentir? Porque é que o haveríamos de ouvir?

A coisa do novo fado, das misturas, do fado a querer chegar-se às linguagens musicais ditas mais populares - ou, estupidez maior, mais jovens - também nunca funcionou. Meras curiosidades. Produtos sem alma, forçados. Chatos. O fado não tem de se misturar com nada. O fado é música, por si e não tem na junção com outras sonoridades, outras culturas, qualquer mais-valia. Ou se sente, ou não. Amália levou-o lá para fora e "vendeu-o" sem artifícios, sem fogo de vista. Mas depois dela, ninguém. E ela, para nós, para a construção da nossa cultura musical, pouco mais foi do que um sketch de humor num programa de televisão dos anos 80, repetido por todos os 90.

O fado nunca nos arrepiou. Nunca nos fez comprar um disco, ir a um concerto, ou a uma casa de fados. Nunca, até Gisela. Gisela João levou o rock ao fado. Não o rock literal, mas a postura, o espírito. E não o mudou, nem o quis mudar. O fado da Gisela é a canção, a alma tão cheia, tão intensa que te faz tremer até ao osso. Não é só a voz. É o que ela mete na voz, em cada palavra. Somos nós, as gerações pós Portugal obscuro, finalmente, a olharmos para dentro e a conhecermo-nos. A vertermos lágrimas com a nossa língua e o único som urbano que é realmente nosso. Os Dead Combo também o fazem, claro, e há mais. Mas como a Gisela…

Nua, disco novo, magistral, editado hoje, 11 de Novembro, é um clássico, cheio de clássicos. Já. Sem sambinhas, sem rockalhices esquisitas, sem os sons do Mundo que plastificam e escondem o que o fado é. Um disco que nos obriga a ir descobrir as Giselas que deixámos passar ao longo das últimas décadas. Sem arrependimentos. Gisela João salvou o fado para as novas gerações e isso não pode não ser dito, ou ser dito com vergonha. Salvou, salva e vai continuar a salvar.