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quadrinhos

Putarias de um vira-lata

O primeiro gibi erótico com supervisão científica do mundo ajudou a combater a AIDS no maior presídio da América Latina.
Putarias de um vira-lata

Quando a dupla de artistas visitou pela primeira vez a Casa de Detenção do Carandiru, no início dos anos 90, perguntou numa roda de detentos que tipo de gibi eles gostariam de ler.

“A gente é do crime. A gente gosta de coisa forte. Então não vem com história de Luluzinha, não, que vai para o lixo”, responderam os presos, sem olhar nos olhos de quem falava com eles.

“Os presos tinham o olhar do homem acuado. Um olhar baixo, meio embaçado, as mãos para trás”, lembra o roteirista Paulo Garfunkel, o Magrão, hoje com 54 anos. A única vez em que encarou o olhar de um preso foi na cozinha do presídio, num dia em que o clima estava tenso na unidade — prestes a ser fechada para dar lugar às quentinhas vindas de fora. Em meio à névoa dos panelões cheirando a gordura rançosa e às geladeiras esburacadas pelos ratos, um dos detentos olhou para Magrão olho no olho. “Fiquei com medo. Era como o Olhar da Penitência do Motoqueiro Fantasma”, lembra o roteirista, velho rato de quadrinhos.

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Aos olhos do ilustrador Libero Malavoglia, atuais 53 anos, o Carandiru parecia um endereço fora do planeta Terra. Como os presos arrancavam o que podiam do prédio (até os frisos antiderrapantes das escadas) para transformar em faca e outros utensílios, o chão e as paredes ficavam na pedra nua. Sobre a pedra, montavam fogõezinhos de tijolo para esquentar a comida, cercados pelas teias das gambiarras de fios elétricos que se espalhavam pelo presídio. “Era um ambiente muito diferente. Parecia o Planeta Bizarro das histórias do Super-Homem”, lembra o ilustrador, velho rato de quadrinhos.

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Era para aquele universo que os dois haviam sido chamados a produzir um gibi. E não qualquer gibi. Tinha que ser uma história poderosa, capaz de convencer os detentos a trepar de camisinha e largar de mão o pico na veia. Uma história em quadrinhos que ajudasse a reduzir a epidemia de AIDS do maior presídio da América Latina — era a missão de Magrão e Libero.

Tinha que ser “coisa forte”. E isso eles tinham. Desde 1991, quando publicaram a primeira história do Vira-Lata.

O filho da puta

O Vira-Lata. Um guerreiro paulistano, meio Estranho sem Nome, meio Lobo Solitário. Defensor de putas, presos, pobres e outros fodidos. Seus inimigos vestem terno e gravata: são playboys, autoridades, grupos de extermínio. Filho de uma menina pomba-gira, uma doce “putana” que trepou com cinco homens de diferentes raças nove meses antes de dar à luz o herói. Guerreiro de sangue misturado, filho de todos os povos, o Vira-Lata perdeu a mãe logo após o nascimento, sendo adotado por um terreiro de candomblé, onde aprendeu os toques de tambor e os mistérios do mundo invisível, e depois por um mestre japonês, que o iniciou nas artes marciais.

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O Vira-Lata vaga pelas ruas de São Paulo livre como um cão sem dono, cumprindo a sina do herói de consertar o que está errado e depois partir, deixando as coisas melhores do que encontrou. Sem desaparecer no pôr-do-sol, que o Vira-Lata prefere mesmo é fechar suas histórias trepando com alguma gostosa. Macunaíma sem preguiça e cheio de caráter, o Vira-Lata é um super-herói com um único poder: o de conseguir comer todas as mulheres que estão no gibi.

O herói apareceu na cabeça de Magrão no final dos anos 80. O universo do personagem nasceu com a atmosfera do Cotton Club, casa noturna em que Magrão trabalhava como músico nas madrugadas, tocando para executivos engravatados que pulavam a cerca com suas secretárias bilíngues e, depois do expediente, para policiais que cheiravam no balcão e gritavam “Alemão, toca aquela”. O Vira-Lata lembrava o segurança da casa, um negrão que contava ter disputado a Olimpíada de Berlim como boxeador, em 1936. Já a origem do personagem remetia a um causo contado por um amigo músico de Magrão, sobre uma garota que engravidou após dar para vários homens na mesma época (e a criança, naqueles tempos pré-testes de DNA, dera de nascer com a cara exatinha do músico).

A gênese do Vira-Lata foi o primeiro roteiro escrito por Magrão, que até então só tinha botado no papel canções, poemas e uma peça de teatro. Os quadrinhos, contudo, faziam parte da sua vida desde a infância, quando aprendeu a ler com as aventuras de Tintim. Depois vieram Asterix, Fantasma, Batman… Na adolescência, encantou-se com Corto Maltese, o aventureiro sedutor do italiano Hugo Pratt, ao mesmo tempo em que se iniciava na punheta com os catecismos de Carlos Zéfiro e sua turma.

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Quando criou o Vira-Lata, anos depois, resolveu juntar na mesma história os dois lances que mais curtia nos gibis. “Queria uma história que tivesse muita ação e muita sacanagem”, conta Magrão, sentado em um cômodo atulhado de instrumentos musicais e objetos misteriosos, nos fundos do estúdio musical que ele mantém em casa, num sobrado em Pinheiros.

Enquanto conversamos, o assistente do estúdio trabalha mixando um jingle que Magrão criou para uma empresa de informática. Um cachorrão preto se aproxima, um dos vários que Magrão abriga em casa, entre vira-latas e dachshunds. “Pode participar da entrevista se não atrapalhar, B.O.”, avisa Magrão para o vira-lata.

Observado por B.O., o roteirista saca da pilha de objetos misteriosos uma espada de madeira. Com movimentos precisos, mostra que o segredo da luta está no desembainhar da espada. Como o Vira-Lata, Magrão manja de artes marciais com espadas. Como o Vira-Lata, Magrão é ogã (tocador de tambor) de candomblé.

Depois de guardar a espada, Magrão mostra outras armas de seu arsenal: duas machadinhas “tomahawk”, daquelas que a gente vê os índios usando para partir crânios nos faroestes antigos. Ele crava um dos machados num pedaço de tronco guardado para isso e me entrega o outro:

“Mete aí na madeira. Faz bem para a alma.”

Pego o machado. Atiro com força no tronco. Faz bem, mesmo.

Sangue e putaria

Entre espadas e machados, Magrão segue contando que concluiu o primeiro roteiro do Vira-Lata em 1989, mas não conseguia achar quem pudesse desenhá-lo. Seu universo sempre foi o da música: instrumentista e compositor, tocador de flauta, clarinete e sax, tocou nas bandas de Elis Regina, Rita Lee e Ney Matogrosso; as canções que compôs com o irmão, Jean, foram gravadas por gente como a própria Elis, Pena Branca e Xavantinho, Maria Rita, Margareth Menezes, Renato Braz.

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Acabou sendo um músico, Skowa, quem falou para Magrão de um artista chamado Libero Malavoglia. Ligaram para ele e contaram do Vira-Lata, mas Libero disse que não poderia aceitar o projeto: estava de malas prontas para viajar à Europa e não sabia nem se um dia iria voltar. Podia indicar alguém. Que onda de desenho ele queria? “Hugo Pratt”, respondeu Magrão, e foi como pronunciar uma palavra mágica. “Hugo Pratt!? Onde vocês estão? Me espera que eu estou indo para aí”, disse Libero.

“Hugo Pratt é o cara que mais admiro nos quadrinhos”, conta Libero, minutos após chegar à casa de Magrão para a entrevista. O encantamento com os quadrinhos começou para Libero por meio das histórias mitológicas que Pratt publicava nas páginas do “Corriere dei Piccoli”, suplemento infantil do jornal “Corriere della Sera”, que o pai de Libero, jornalista italiano, costumava levar para os filhos. Depois vieram os heróis da DC e da Marvel, Jack Kirby, Hal Foster, o Lobo Solitário… Décadas depois, já trabalhando como artista profissional, bastou para Libero ouvir a menção ao nome de Pratt para decidir trocar uma ideia com Magrão. Acabou sendo o início de uma bela amizade.

Libero curtiu o personagem de cara: “O Vira-Lata tem a força do herói de quadrinhos que eu sempre adorei. Vi nele o que eu via no Batman, no Demolidor”. Mas ficou incomodado com a violência da história, achando que não seria capaz de dar vida a cenas tão sangrentas. “O Magrão me leu a cena do batismo de fogo do personagem: ele enfiava meio cabo de neon no pescoço de um cara, depois enfiava dois pedaços de guarda-chuva na barriga do outro e abria… Fiquei com a pulga atrás da orelha.” Quatro meses depois, de volta ao Brasil, começou a desenhar a história. E teve uma surpresa. “Vi que fazia as cenas de violência com o maior prazer”, comenta, com uma risada. “É como um despacho. Você bota algo para fora, e, depois que desenhou, acabou.”

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Cheia de sangue e putaria, a primeira história do Vira-Lata chegou às bancas em 1991, como um número especial da revista Animal, da editora VHD. A revista chamou a atenção de um médico chamado Drauzio Varella, que atuava como voluntário na Casa de Detenção, experiência que daria origem a dois livros: Estação Carandiru, que virou filme (com storyboards desenhados por Libero) e o recém-lançado Carcereiros.

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Na época, o doutor lutava contra a epidemia de HIV que atingia 17% dos detentos do presídio. Quebrando a cabeça em busca do melhor jeito de falar com os presos, encontrou a saída num dia em que visitava o Amarelo, pavilhão onde ficavam os presos jurados de morte pelos colegas. Drauzio reparou que vários daqueles homens, que passavam dia e noite espremidos em tranca permanente, até a pele amarelar pela ausência do sol, matavam o tempo lendo gibis. O médico resolveu procurar os criadores do Vira-Lata e propôs usar o personagem numa cartilha sobre os riscos da AIDS.

“Cartilha, não. Vamos fazer uma história, mesmo, instigantona”, propôs Magrão.

A boca que tudo come

Foi assim que o Vira-Lata acabou parando na prisão. Entre 1993 e 2000, Magrão e Libero produziram sete revistas com o personagem, voltadas exclusivamente para os detentos do Carandiru. Cada número tinha tiragem de 10 mil exemplares, que eram distribuídos de xadrez em xadrez a cada um dos presos — para evitar que o gibi, fonte inesgotável de aventura e punheta, virasse moeda no mercado negro local.

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Para poder frequentar o Carandiru, o Vira-Lata teve que passar por algumas mudanças. O herói deixou de fumar maconha — “pelo menos, nas páginas do gibi”, lembra Magrão. A violência foi suavizada: o Vira Lata continuou a descer a porrada em todos os filhos da puta — com o realismo que só um desenhista praticante de aikidô, como Libero, poderia garantir — mas agora seguia um juramento que o impedia de matar. Balas de revólver, ele só usava para enfiar no cu dos vilões. “Na cadeia, o Vira-Lata sofreu um puta policiamento moral”, resume Magrão. “Positivo”, ressalta Libero. “Positivo, claro”, concorda o roteirista.

Estamos agora no segundo pavimento do sobrado, Magrão nos leva para tomar uma cerveja preta. “Aprendi que a cerveja branca diminui o Chi (energia vital), mas a preta, não”, diz. Então, que venha a cerveja. Antes, porém, uma pausa. Primeiro, Magrão sai para ofertar um gole da cerveja a Exu.

“A boca que tudo come é a primeira a beber”, diz, ao voltar.

As referências ao candomblé também foram quase todas cortadas nas edições da cadeia, para que o gibi pudesse circular também entre os presos evangélicos — os “irmãos” podiam até aceitar um gibi com cenas de surubas, boquetes e sexo anal, mas não com menções a Ogum e Iansã.

Um lado em que o policiamento moral passou longe foi o da sacanagem. Os gibis continuaram cheios de mulheres maravilhosas desenhadas por Libero, todas sendo devidamente traçadas pelo Vira-Lata em algum momento na história. “Esse Vira-Lata está sempre no cio”, diziam os presos. Os detentos curtiam as musas (“melhor do que mulher de verdade”, chegou a dizer um deles), mas faziam um pedido: “Não mostra o pinto do Vira-Lata. Estamos cansados de ver homem pelado”.

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Muita sacanagem, sim, mas sacanagem segura. A camisinha aparece em todas as cenas de sexo, acompanhada de uma caricatura do doutor Drauzio dando dicas como “tem que ser lubrificante à base de água” ou “tem que tirar com ele ainda duro”. O Vira-Lata também não perdia a chance de detonar quem tomasse pico na veia. Tudo com o acompanhamento médico do doutor Drauzio. “O Vira-Lata talvez seja o primeiro gibi erótico com supervisão científica do mundo”, comenta o médico num depoimento sobre a aventura.

A putaria das histórias gerou incômodo quando as Secretarias de Saúde e de Justiça do Paraná resolveram seguir o exemplo paulista e negociaram a distribuição do gibi para um presídio. Foram impressos cinco mil exemplares, que nunca chegaram aos presos. “Rolou uma impressão moral de alguma mulher de secretário e decidiram queimar todos os exemplares numa fogueira do pátio”, conta Magrão.

Pior para os inquisidores do Paraná: pesquisa feita por Drauzio mostrou que o índice de infectados com o HIV caiu de 17%, no começo dos anos 90, para 8% em 2000. Muita coisa ajudou nesse processo (inclusive a troca do pico na veia pelos cachimbos do crack), mas o Vira-Lata teve também o seu papel, como herói de papel e tinta que ajudou a detonar um inimigo real.

“Pode comer a Nina, B.O.”

Agora o Vira-Lata foi tirado da cadeia pelas mãos de Toninho Mendes, editor que entrou para os anais do quadrinho brasileiro nos anos 80, quando editou Chiclete com Banana, Geraldão e Piratas do Tietê pela editora Circo, e que nos últimos anos vem resgatando a memória da putaria impressa com a editora Peixe Grande. Seguindo o padrão das outras publicações da editora, o livro O Vira-Lata é bonitão, cheia de informações e custa sugestivos R$ 69. Ali estão reunidas a primeira história do Vira-Lata e todas as edições da cadeia, incluindo uma inédita, Na Amazônia — que não chegou a ser impressa porque o Carandiru foi implodido antes, em 2003. É a história em que Libero encontrou o próprio traço. “Até então, eu testava várias técnicas e misturava estilos. Essa história eu resolvi fazer correndo e soltei a mão. Acabei achando o meu próprio estilo. Foi como uma formatura”, conta.

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De volta às ruas, o Vira-Lata se prepara para o futuro. Magrão e Libero têm planos de levar o herói para um longa-metragem, de preferência sem pedir emprestada a carinha de um ator de carne e osso para encarná-lo. “O Vira-Lata merecia um longa em animação, para preservar o traço do Libero”, diz Magrão. Enquanto isso, o roteirista permanece atento aos sinais. No ano passado, um projeto de roteiro do Vira-Lata foi contemplado por um edital do Programa de Ação Cultural (Proac), do governo paulista, bem no dia em que Nina, a princesinha da sua matilha, entrava no cio. Magrão não teve dúvidas e atendeu aos ganidos de B.O., seu vira-lata preto: “Tá bom, B.O., pode comer a Nina”. A bela noite de amor gerou seis filhotes de sangue misturado.

O Vira-Lata
Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia
Editora Peixe Grande
442 págs.
R$ 69

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