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Um britânico que lutou contra o ISIS no Iraque analisa dois anos de califado

Dois anos depois da declaração do califado, conversamos com o professor de dança de 54 anos que foi voluntariamente para o front no Oriente Médio sobre a sua experiência lá e as chances reais de derrotar o ISIS.

O Mike no Iraque.

Matéria original da VICE UK.

Dois anos atrás, o Estado Islâmico instalou seu califado na Síria e Iraque ocupados. A declaração veio depois de um blitzkrieg de três semanas pelo norte do Iraque, que deixou milhares de mortos e acabou capturando Mossul, a segunda maior cidade do país.

Hoje, exatamente 731 dias depois, o grupo militar ainda comanda a cidade. O IE continua desavergonhadamente promovendo escravidão, estupro e crucificação. O grupo ainda satura a internet com pornô de assassinato em alta definição, e massacra civis nas ruas da Europa e EUA. Mas como é combater o ISIS? E seu culto da morte pode um dia ser derrotado?

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Falei com Mike, um professor de dança de 54 anos de Portsmouth, que passou seis meses — de junho a dezembro do ano passado — lutando contra o ISIS no fronte do Iraque. Mike, que pediu para não ter o sobrenome divulgado por razões de segurança, é alguns dos britânicos — quase exclusivamente ex-soldados — que ofereceram suas vidas, de graça, nessa batalha. Segundo eles, eles partem para a guerra porque o governo não está fazendo isso. Afinal, desde que o ISIS colocou uma recompensa de $150 mil por cabeça de cada ocidental derrubado lá, não há lugar na Terra mais perigoso para um britânico, literalmente.

VICE: Oi, Mike. O que faz uma pessoa viajar milhares de quilômetros, com dinheiro do próprio bolso, para a guerra de outro exército?
Mike: Não vejo isso como a guerra de outros. Criamos o vácuo de poder que impulsionou a ascensão do ISIS quando invadimos o Iraque em 2003 — a culpa é nossa. Então quando vejo um vídeo do massacre yazidi, penso "Por que ninguém está fazendo nada?" Passei quatro anos e meio nos anos 80 lutando na África Central com a Legião Estrangeira, então estou acostumado a combater insurgentes e tenho o treinamento necessário. Foi quando pensei "Essa é minha chance de fazer algo significativo".

Suas motivações eram mesmo puramente ideológicas?
Principalmente. Mas sendo honesto, eu também sentia falta do estilo de vida militar, da simplicidade. A vida moderna é muito complexa — e-mails, a corrida pelo lucro, problemas de primeiro mundo, toda essa merda. Na guerra, quando só precisa se preocupar em não ser morto, você se torna mais consciente. Isso te dá tempo de sentir prazer em estar vivo. Lembro de acelerar pelo deserto num veículo blindado a 130 km/h — para evitar morteiros — acompanhando a música do rádio a plenos pulmões e pensando "Porra, quantos caras de mais de 50 anos podem fazer isso?" É algo puro.

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O que as pessoas diziam quando você contava para onde estava indo?
Muita gente da comunidade da dança — dou aulas de West Coast Swing — não entendem por que alguém ia querer fazer isso. Elas diziam "Jesus, isso é uma crise de meia idade?" Tenho uma crise de meia idade diferente todo dia desde que fiz 30 anos, mas senti que essa é uma ameaça que tem um impacto sobre mim: meu futuro, o futuro dos meus filhos.

O que seus filhos disseram?
Sou divorciado e tenho dois filhos, de 30 e 28 anos. Eles não entenderam minha decisão, mas o velho aqui já fez muita coisa que eles não entenderam. Acho que eles costumam pensar "O que esse safado vai fazer agora?"

Como você conseguiu chegar lá?
Fiz alguns contatos pelo Facebook, comprei uma passagem para o Curdistão iraquiano, através da Turquia. Comprei todos os meus equipamentos e armas — uma metralhadora soviética RPK e uma pistola PPK — num mercado local em Sulaymaniyah e imediatamente consegui trabalho com uma ONG chamada Shadows of Hope, onde os Peshmerga treinam seus soldados. O que eu não entendia era como ia ser difícil fazer eles me colocarem na linha de frente.

Como assim?
Os curdos não querem ocidentais voltando para casa em sacos pretos — é uma publicidade ruim — e eu queria a coisa real.

E como você conseguiu?
Enquanto eu trabalhava com o 2º Grupo de Operações Especiais curdo, na linha de frente no sul de Kirkuk, cruzei com um grupo de soldados norte-americanos indo para a cidade sitiada de Sinjar — a mesma cidade onde aqueles pobres yazidis foram massacrados. Eles concordaram em me levar junto.

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Como eram os outros voluntários estrangeiros da sua unidade?
Típicos americanos, na maioria — muito escandalosos. Mas gente boa. Alguns eram ex-soldados das forças especiais, outros eram da Marinha, um ex-ranger… um casal, eu suspeitava, ainda trabalhando para o governo dos EUA. Eles eram muito hardcore e conheciam bem o trabalho.

Você conseguiu entender por que os outros decidiram arriscar suas vidas
Cada pessoa tinha suas razões. O motivo que unia todos nós era ideológico — éramos ex-soldados com habilidades que podiam ajudar. Mas indo mais fundo, você descobria que esses caras sentiam falta da irmandade. Outros eram viciados em adrenalina, ou não tinham nada em casa que preenchesse o vazio. Alguns tinham servido mas nunca viram nenhuma ação e queriam riscar isso da lista. Todo mundo tinha um um comichão para coçar.

Você chegou em Sinjar em outubro e ficou três meses lá. Como era sua vida?
Sinjar era um cerco ao vivo, com as linhas de frente a apenas 50 metros de distância em alguns lugares. A comida era péssima, a higiene eram horrível, infecções estavam por toda parte. Quase não havia eletricidade, fora alguns geradores. Ironicamente, meu 4G pegava melhor lá do que na Inglaterra. Dormíamos em casas bombardeadas, e com um prêmio de $150 mil por cabeça de ocidental, tínhamos que nos movimentar a cada sete dias.

Vocês lutavam o tempo todo?
Não. Durante o dia o ISIS se esconde em seus túneis, esperando a escuridão. Então saíamos em patrulhas de reconhecimento, treinávamos soldados yazidi e tratávamos os feridos. Mas o que ficou mesmo na minha memória foi assistir literalmente milhares de caminhões-tanque, com placas turcas, seguindo a Rodovia 47 em direção a Turquia vindo do território dominado pelo ISIS. O que eles estavam fazendo? E por que a coalizão não bombardeou a Rodovia 47? Eles podiam ter cortado grande parte da renda do ISIS apertando um botão, mas não fizeram. A cumplicidade na região é chocante, especialmente quando se trata de petróleo.

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O que acontecia à noite?
O ISIS atacava.

E como era?
Uma noite, eu estava de vigia com dois curdos. Estávamos relaxando, fumando atrás das mãos, quando, por volta das 23 horas, vimos uma tocha dançando num muro da linha do ISIS. Estávamos entediados então abrimos fogo. Essa era a deixa que eles estavam esperando. Gritos de "Allah Akbar" explodiram na escuridão, com ondas de soldados a pé vindo da terra de ninguém. Tiros, mais gritos, balas voando por cima das nossas cabeças como vaga-lumes sônicos; um pandemônio. Quer dizer, aqueles bastardos não ligavam se iam viver ou morrer. Não conseguíamos vê-los no escuro, então atiramos contra sombras e flashes de canos disparando. Você só sabia que tinha acertado alguém quando ouvia um grito. O trabalho deles era chegar até a distância do alcance das granadas; o nosso era atirar neles antes que eles chegassem. Eles nunca nos alcançaram.

Por que a coalizão simplesmente não bombardeou a cidade?
Eles tentaram, mas o ISIS sempre sabia quando os aviões estavam chegando, eles tinham algum sistema de alerta. Em Sinjar, era assim que sabíamos que os aviões estavam vindo — eles saíam da formação e corriam para seus buracos.

Nesses dois anos desde que o ISIS declarou o califado, como a situação mudou na sua opinião?
Em 2014, o ISIS era uma unidade militar mais convencional, o que permitiu que eles tomassem territórios antes de declarar o califado. Mas desde Sinjar, eles perderam tanto território que, tecnicamente, voltaram a ser uma insurgência. Agora eles estão em modo defensivo: atacar e correr, homens-bombas em mercados, ataques no exterior. Basicamente, acho que eles foram além de sua capacidade criando o califado, e agora só têm poder para defender o que resta. Isso não quer dizer que eles estão batendo em retirada — eles estão fechando fileiras e consolidando áreas que serão muito difíceis de retomar.

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Você acha que é possível derrotar o ISIS?
Na minha opinião, não como as coisas estão agora. O problema é: os exércitos iraquiano e curdo não se movem rápido o suficiente, e o Ocidente não parece disposto a realmente se comprometer. Todo mundo. Além disso, os curdos querem autonomia contra o Iraque, então provavelmente estão mais inclinados a fortalecer suas fronteiras do que se comprometer com uma ofensiva total no resto do Iraque. Se queremos destruir o ISIS, a OTAN precisa entrar no jogo. Precisamos de bombardeios aéreos significativos, diferente dos ataques aéreos francamente parciais que vi. Aí precisamos invadir. Precisamos parar de ver isso como a guerra dos outros. Essa guerra é nossa, e curdos, iraquianos e outros estão lá lutando, e morrendo, por nós.

Você não parece muito confiante.
Bom, só depende de nós. E como estamos agora, meu diagnóstico é que esse paciente está morrendo lentamente. Há uma cura, mas precisa ser decisiva, coordenada e em breve.

@MattBlakeUK

Tradução: Marina Schnoor

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