Como ser o melhor time de basquete do mundo com um pivô de dedo quebrado
O lendário esquadrão do Esporte Clube Sírio de 1979, campeão mundial de basquete. Crédito: Acervo/ Esporte Clube Sírio

FYI.

This story is over 5 years old.

VICE Sports

Como ser o melhor time de basquete do mundo com um pivô de dedo quebrado

Nos anos 70, o Esporte Clube Sírio conquistou o campeonato mundial com direito à craque com fratura em quadra, médico torcedor e invasão de torcidas organizadas.

Uma estante de vidro, com fundo de feltro e ferro, protegida por um sistema de segurança, guarda a réplica do mais importante troféu conquistado por um time brasileiro de basquete. É uma taça pequena cujas proporções não superam os 20 centímetros de altura por 10 de largura. Em 1979, porém, conquistá-la era atingir o topo do mundo.

A miniatura é vigiada pelo alemão de origem húngara Arpad Molnar, de 70 anos, nos domínios do Esporte Clube Sírio. Responsável pelo acervo histórico, ele a mantém sob um rígido esquema de conservação no memorial do clube. Está ladeada por outras duas relíquias: as camisas dos alas Oscar Schmidt, então com 21 anos, e Washington Joseph, o Dodi, espécie de patrimônio do clube, onde jogou por cerca de 20 anos e ainda frequenta como sócio.

Publicidade

Assista também ao vídeo em 360 graus: Por dentro da escola da NBA na Rocinha

"Vi 10 mil pessoas no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, torcendo por um esporte, torcendo pelo Brasil", lembra Dodi, hoje um engenheiro civil de 66 anos que diz já ter levantado 10 mil casas populares pela construtora que teve por 15 anos em parceria com outro colega de time, o pivô Marquinhos Abdalla. Naquele sábado 7 de outubro de 1979, foram as centenas de bola que ajudou a levantar que consagraram o Sírio como o primeiro campeão mundial brasileiro.

Arpad com o Dodi, campeão mundial com o clube, na protegidíssima sala de relíquias do título de 1979. Crédito: Jardiel Carvalho

"Foi o momento mais emocionante da minha vida", diz Marquinhos Abdalla, 64, considerado o melhor jogador brasileiro em atividade naquela temporada. Ele havia acabado de retornar de um período nos Estados Unidos, onde obteve o feito de ser o primeiro brasileiro draftado na NBA, em 1976, pelo Portland Trail Blazers, enquanto jogava no basquete universitário dos EUA. Ele recusou o convite: aquilo significava a profissionalização e, por consequência, a renúncia à seleção brasileira, que na época apenas aceitava amadores. "Não poderia mais jogar pela seleção. Se fosse dispensado, teria que ficar um ano sem jogar para voltar à condição de amador. E todo ano eu retornava para o Brasil para disputar as finais do Campeonato Carioca enquanto o Fluminense ainda mantinha um time de basquete. Não queria abandonar aquilo."

Marquinhos foi considerado o herói daquela campanha de quatro jogos, sobretudo a final contra o Bosna, da então Iugoslávia (hoje, o clube, situado em Sarajevo, atua na liga bósnia). O pivô atuava com uma luva de esparadrapos com placas de acrílico para aliviar as dores de uma fratura em um dos dedos da mão esquerda. Mesmo assim, foi acusado de ser o responsável pela derrota para os americanos do Mokan por 98 a 91, duas partidas antes. Foi até chamado de "maneta". "Isso é sacanagem. Estou jogando com a mão quebrada. Tirei o gesso contra a vontade do médico. E vou ser campeão", disse, na época, para a revista PLACAR.

Publicidade

Flâmulas dos adversários durante a campanha épica. Crédito: Jardiel Carvalho

"Só movimentava os dedos daquela mão", lembra hoje. "Eu havia fraturado o dedo em um jogo do Campeonato Paulista, contra a Francana, uma semana antes da estreia no Mundial. Eu queria jogar, porque havia saído frustrado do Mundial que havia disputado antes, em 1973, quando perdemos a cabeça contra o Vaqueros de Guayamon, de Porto Rico, e fomos vice."

O médico do clube, doutor David, havia recomendado imobilização com gesso de 25 dias na região afetada. Ele respeitou o conselho por cinco dias. O desejo de disputar o torneio era mais forte. A luva especial foi então confeccionado pelo departamento médico. Saindo da quadra, a mão era mergulhada em um balde de gelo para segurar o inchaço. "As dores eram alucinantes", diz hoje. "Mas o objetivo era o título. Podia piorar a situação, mas queria aquilo de qualquer maneira." O médico continuou aconselhando descanso. Até o dia da final, quando disse: "Quero mais é que você se dane. Agora sou Sírio também".

Fotos e recortes históricos guardados no clube até hoje. Crédito: Jardiel Carvalho

O técnico era Claudio Mortari, quatro anos mais velho que Marquinhos. Coube a ele participar da decisão de poupar ou não o craque do time. "Fizemos um teste no Ibirapuera um dia antes do primeiro jogo. Foi como o Ronaldo, em 1998: se o craque quer jogar, temos que colocar."

Formado em economia, Mortari tinha no basquete uma atividade paralela. No Mundial, tirou alguns dias de folga no banco de investimentos em que trabalhava para ocupar o espaço em outro banco, o do ginásio do Ibirapuera. "Aquele time dos sonhos, com Marquinhos, Marcel e Oscar, foi uma coincidência muito grande. Formamos o melhor time do Brasil e ganhamos praticamente tudo naquele ano. Como o Sírio praticamente só tinha essa modalidade, isso ajudava. O título veio por interesse comum: todos, no grupo, queriam conquistar aquilo."

Publicidade

Alguns conselheiros tinham ligação com o Corinthians, e a Camisa 12 foi até o ginásio prestigiar. No fim do jogo, houve a invasão da quadra

Embora o formato do torneio não previsse uma final 9 (era um pentagonal, em que todos os times se enfrentavam), calhou de o time a ser enfrentado na última partida fosse exatamente o Bosna, o único que poderia tirar o título do time de São Paulo. "Foi um jogo tão maravilhoso que quem vencesse aquela partida mereceria ficar com o título", diz Marquinhos. Houve seis trocas de liderança no placar e um empate ao final do primeiro tempo e do tempo normal. Na prorrogação, o Sírio venceu por dois pontos: 100 a 98. Nas arquibancadas, organizadas de três das quatro maiores torcidas de São Paulo: Corinthians, Palmeiras e Santos. Os corintianos eram maioria. "O Sírio tinha uma legião acanhada de torcedores. Quase todos eram parentes de jogadores. Mas alguns conselheiros tinham ligação com o Corinthians, e a Camisa 12 foi até o ginásio prestigiar. No fim do jogo, houve a invasão da quadra", diz Dodi. "Eu temi pela minha mão", lembra Marquinhos. "Mas, tão logo o jogo acabou, esqueci que ela não estava boa."

A estátua que simboliza as glórias do clube. Crédito: Jardiel Carvalho

Por 25 anos, o Sírio se manteve como o único brasileiro a conquistar o Mundial Interclubes. Em 2014, o Flamengo quebrou a escrita ao também conquistar o troféu. No entanto, há uma grande diferença nas fórmulas de disputa. Em 1979, o torneio contou com o campeão e o vice da Europa (o Bosna da então Iugoslávia e o italiano Emerson Varese, respectivamente), o porto-riquenho Piratas de Quebradillas, considerado o melhor da América Central, e o Mokan, do basquete universitário norte-americano. O Sírio disputou como o campeão sul-americano vigente. Quando o rubro-negro venceu, disputou duas partidas contra o israelense Maccabi-Elektra, campeão europeu. Nas duas situações, os torneios foram disputados no Brasil – o de 1979, em São Paulo, e o de 2014, no Rio. Os times da NBA nunca disputaram o torneio.

Aqueles heróis da quadra – além dos citados Oscar, Dodi, Marquinhos e Marcel, também os norte-americanos Larry e Mike, e Agra, Marcelo Vido e Saiani, considerado o homem que deu novo ritmo à partida ao entrar em quadra –, ainda frequentam as instalações do clube de colônia árabe na região de Moema, em São Paulo. Eles estão representados pela estátua de bronze no jardim do clube que simboliza o basquete. O Mundial de 1979 transformou-se em estrela no uniforme vermelho da agremiação. E o esporte jamais sairia do sangue daqueles jogadores, como atesta Marquinhos. "É a minha cachaça. Sem o basquete, não saberia o que é viver."

Dodi relembrando os bons tempos como se deve. Crédito: Jardiel Carvalho