Tudo o que comi quando pedalei na rota do Muro de Berlim

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Tudo o que comi quando pedalei na rota do Muro de Berlim

Ao longo de 170 quilômetros da Berliner Mauerweg rolou muito café, Club Mate e salsichão alemão.
TT
Traduzido por Taís Toti

Esta matéria foi originalmente publicada no Munchies UK.

Olho para a névoa e para as mochilas cheias de frutas em cima das minhas rodas traseiras, a Torre de TV visível entre a neblina, enquanto mastigo um pretzel, e penso no que me meti.

No começo da semana, naquele tipo de empolgação que faz as pessoas rasparem a cabeça ou pintar a porta de laranja, decidi pedalar o Berliner Mauerweg — a ciclovia que acompanha os 170 quilômetros do que era o Muro de Berlim. A maior parte da viagem segue por entre as estradas da patrulha da fronteira da antiga República Democrática Alemã, cercada por enormes carvalhos e campos sem cerca. Mas, nesse rolê, também passei por pequenas áreas residenciais, antigos postos de controle da rodovia, um conjunto habitacional nazista para feridos da Primeira Guerra Mundial, e distritos do leste da Berlim central.

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A Deutsche Bahn, bicicleta usada pela autora para pedalar a ciclovia de 170 km que percorre o antigo Muro de Berlim. Todas as fotos pela autora.

Mas afinal o que exatamente se come quando tentamos pedalar por parte da história? Vai ter pão — pelo amor de Deus, vai ter pão —, mas terá também maçãs colhidas na estrada, garrafas de Club Mate compradas nos biergartens no meio de milharais, pêssegos macios, um monte de Ritter Sport e, claro, para o bem ou para o mal: currywurst [um salsichão alemão servido com ketchup e curry].

Quando começo meu caminho, encontro placas com fotos e biografias de refugiados da Alemanha Oriental que perderam a vida tentando cruzar o território para o lado ocidental — homens jovens de olhos claros e boa aparência, a maioria da idade do meu namorado. Lendo sobre suas ousadas incursões em trilhas cobertas de areia, sendo perseguidos por cachorros enquanto guardas disparavam suas armas, não é difícil de lembrar que refugiados são quase sempre os mais corajosos. As fronteiras podem ter mudado, mas as histórias se parecem muito com as de Calais, Lesbos e Jordânia.

Marquei o despertador — talvez imprudentemente — para o torturante horário de cinco horas da manhã. (Não sabia quanto tempo exatamente ia demorar para pedalar 170 quilômetros em bicicletas alugadas da Deutsche Bahn e não queria voltar para casa no escuro.)

A maior parte da ciclovia do Berliner Mauerweg segue pelas estradas da patrulha de fronteira da República Democrática Alemã.

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Abastecida com muito café e levando mais um café da manhã na cestinha da bicicleta, fui em direção ao norte, passando pelo portão de Brandenburgo, o Tiergarten, os bairros orientais de Prenzlauer Berg e Pankow até que, em um amanhecer rosado e nublado, decidi parar para tomar café.

Queria começar com um ketwurst, uma combinação vertical de salsicha e pão que me lembra uma doença inflamatória cujo nome não vou citar e que era a resposta comunista ao cachorro-quente. Mas infelizmente não há muitos lugares abertos às 5h da manhã, ainda mais um que sirva salsicha soviética. Então me conformei com um pretzel salpicado de sal grosso como diamantes na capinha de celular da Paris Hilton e duas bananas que, após algumas horas dentro de uma mochila, ficaram amassadas e pretas.

Um café-da-manhã composto de pretzels e bananas.

Enquanto comia, duas mulheres de moletom passaram, com um Rottweiler gigante correndo atrás de uma bolinha de tênis.

"Guten morgen!", elas gritam, enquanto umas gotas de baba de cachorro voam nos meus olhos, logo antes de subirem a colina e desaparecerem na névoa.

Com o café da manhã terminado, pedalo por horas por subúrbios e caminhos entre a floresta. Na verdade, grande parte do Muro de Berlim não era aquela construção dividindo as ruas que imaginamos ao ver o centro da cidade. Na verdade, ele percorria as fronteiras de Berlim e a região ao redor de Brandenburgo. O Berliner Mauer era, em sua maioria, uma parede rural ao longo de campos e lagos, florestas e fardos de feno. Por aqui, o Muro deveria parecer mais uma divisão filosófica do que uma barreira física entre a Berlim Oriental e a Alemanha Ocidental.

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É estranho pensar que cidadezinhas pitorescas como Kladow representavam uma das fronteiras mais amargas da Europa. Hoje, Kladow está recebendo um parque de diversões no fim de semana, e um homem de sunga senta-se num banco para tomar sol, rodeado de gente bebendo Coca-Cola e comendo salsichas. Mulheres de meia-idade exibem suas horríveis bijuterias de couro e, bem no caminho, um adolescente todo vestido de Adidas fica parado ao lado de 12 gaiolas cheia de coelhos fofinhos.

No entanto, não tenho muito tempo para observar as mudanças dessa fronteira, já que estou desesperadamente tentando pegar a balsa de 13h20 para Wannsee. Sim, o Muro de Berlim, em sua parte noroeste, passava por um lago. Pedalando furiosamente em estradinhas de areia, desviando de crianças, segurando o guidão como Harrison Ford em Risco Total, corro como louca para tentar chegar no píer a tempo. Porque, sabe, do outro lado da balsa está o almoço.

Wannsee é o antigo distrito britânico da Berlim Ocidental onde, em 1949, Herta Heuwer, dona de um quiosque de comida, pegou emprestado um pacote de curry em pó de soldados ingleses para salpicar em uma salsicha e assim inventou o currywurst.

Currywurst em Wannsee, antigo distrito britânico da Berlim Ocidental.

Se eu não tivesse pedalado 80 quilômetros, não sei se aquela carne macia seria tão tentadora. Mas, no calor escaldante, sentada em uma frágil cadeira de metal no terminal da balsa, comi aquela salsicha como uma mulher possuída. O homem que preparou o currywurst era exatamente tudo que eu imaginava: brusco, careca, segurando a salsicha com pinças gigantes em uma mão e balançando uma faca com a outra. O prato acompanha um pãozinho branco crocante, e eu bebi uma garrafa inteira de apfelschorle e dois copos de café para ajudar a descer. O casal de meia-idade que divide a mesa comigo come bratwurst e mostarda com um pouco mais de decoro; a mulher faz uma cara horrorizada enquanto eu pego ketchup que caiu na mesa e coloco na boca.

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De Wannsee, pedalo ao longo do trecho sul da trilha, com minha bunda doendo de uma jeito que nunca tinha visto antes. Não fazia ideia de que tem ossos enterrados profundamente dentro de minhas nádegas, mas agora só consigo pensar nos dois pontos gêmeos de dor profunda sob minha calcinha. O sal do almoço secou minha boca como o Saara, então na hora que vejo uma placa um tanto improvável para um biergarten [uma casa de cervejas], no meio da grama alta e dos tratores deste subúrbio rural, desvio imediatamente.

A autora segurando uma garrafa de Club Mate.

O que encontro é tipo um salão de festas que virou pub, com balões caindo do teto e um grupo de homens assistindo a um jogo do Huerta Berlin num telão. Peço Club Mate para uma mulher que precisa fazer as contas no celular, aparentemente sem conseguir fazer mentalmente o cálculo de 2 x €2,30 [cerca de R$ 16].

Se você nunca tomou Club Mate, ele é a mistura perfeita de chá gelado, água de bong e champanhe. Tem mais cafeína que um copo cheio de café, e eu amo essa bebida com a paixão de um início de relacionamento. Foi depois de pegar o drinque que parei ao lado de dois meninos chutando uma bola na parede e bebi uma garrafa inteira em menos de dois minutos; depois fiquei arrotando o Club Mate por duas horas enquanto ia para Schonefeld.

A fábrica de café Jacobs, em Neukolln, na periferia de Berlim.

Para completar a rota no sentido anti-horário preciso chegar a Berlim pelo lado sudoeste, passando pela gigante fábrica de café Jacobs, em Neukolln, e pelas largas ruas ao redor do canal do meu bairro. Decido, mais ou menos na hora do chá, que o único jeito apropriado de terminar essa aventura épica seria — adivinhou — com um kebab.

Por sorte, tem um lugar logo em cima do Gorlitzer Park, na esquina de onde estou me hospedando e do lado do local de devolução das bicicletas, que faz o melhor falafel, o melhor shawarma, o melhor halloumi, e as maiores porções dos três que já encontrei em Berlim. Me sento em um dos bancos de madeira do lado de fora, sentindo o sol da noite mais quente que o chutney de manga, e levanto a embalagem de papel até o meu nariz, inspirando profundamente. É o cheiro do sucesso.

Enquanto como, observo os moradores de Kreutzberg. Uma mulher usando hijab fuma um cigarro enorme, um jovem casal britânico mexe no celular enquanto come um prato enorme de carne e salada, um grupo de traficantes vestidos de jeans se reúnem em uma parede perto do parque. Famílias alemãs passeiam com seus carrinhos e bebês.

E no meio disso tudo estou eu, sentada, com as pernas doendo, a barriga inchada, pensando nas florestas e nos muros, nas fronteiras e na coragem, nos comunistas e no currywurst.

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