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Os EUA Ajudaram a Criar o Estado Islâmico

Bombardeios humanitários, pacificação pelas armas, imposição da paz e outros eufemismos americanos para seguir fazendo mais do mesmo mal pelo mundo.

Uma imagem postada pelo ISIS nas redes sociais: combatentes desfilando num veículo capturado das forças de segurança iraquianas.

Esse tipo de história tem rolado antes de qualquer intervenção humanitária atual. O cômputo geral e frequentemente comprometedor sobre os fatos que levaram à última guerra em algum lugar onde as pessoas sempre estiveram lutando – o registro de quem matou quem com armas de que governo – sempre acaba perdido no meio do barulho ensurdecedor da autossatisfação Ocidental. Os poderes imperiais ostensivamente “do bem” saboreiam a oportunidade de serem admirados como simples espectadores que não aguentavam mais testemunhar passivamente tanta violência. Sempre que estes ataques aéreos altruístas têm início, o consumidor comum de notícias – e eu confirmei isso com a minha própria mãe – fica com a impressão de que as bombas estão sendo jogadas nas pessoas que fazem coisas más (ninguém sabe o porquê) por gente boa tentando fazer o melhor.

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É assim com o Iraque, onde, mais uma vez, o bombardeio nos é apresentado em termos humanitários e sem muito contexto histórico. “Obama autoriza ataques aéreos no Iraque para pôr um fim ao genocídio”, diz a manchete do USA Today, o jornal que você lê nas férias. A matéria fornece alguns fatos básicos sobre o Estado Islâmico, o grupo extremista sunita que tomou boa parte do norte do Iraque e aproximadamente todos os campos de petróleo da Síria, mas sabemos pouco sobre suas motivações, como ele surgiu e o papel daqueles que agora o bombardeiam no nascedouro. O que aprendemos, cortesia do presidente americano Barack Obama, é que “os EUA estão vindo ajudar”.

Muito bonita essa oferta altruísta de ajuda do líder de uma nação motivada por interesses próprios racionais. Mas o que fica de fora – o que sempre fica de fora – é o contexto real. O que nos trouxe a esse momento particular da história? Alguma coisa que os benevolentes governos ocidentais fizeram antes, como, talvez, matar meio milhão ou mais de pessoas no Iraque, por exemplo, pode ter empurrado tantos para grupos militares islâmicos? Perguntar algo assim seria antiamericano, ou pelo menos te transformaria num grande estraga-prazeres, mas a resposta é inequívoca: sim, sim, pelo menos meio milhão de vezes sim. Os EUA criaram o problema que agora estão corajosamente “tentando ajudar” a resolver, e aqueles que argumentam que jogar ainda mais bombas agora é uma solução séria deveriam repensar isso.

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Quando digo que os EUA “criaram” o Estado Islâmico (ou “EI”, como ele é chamado às vezes), alguns podem pensar que vou começar a falar que combustível de avião não derrete metal e que foi o Bush que derrubou aquelas torres. Mas isso não é uma conspiração envolvendo hologramas e atores. É algo simples e trágico: os EUA invadiram o Iraque e mataram muitas pessoas que tinham amigos e família, desencadeando uma onda de terrorismo pelo Oriente Médio – porque ver sua mãe morrer num ataque aéreo americano não ajuda a cultivar a moderação –, depois instalaram e armaram um líder xiita sectário no Iraque, Nouri al-Maliki, que começou a matar, torturar e alienar a população sunita iraquiana, que agora está, não por mera coincidência, apoiando a marca cruel do extremismo sunita do Estado Islâmico.

Armando o Exército Iraquiano, os EUA armaram efetivamente o EI, que capturou muito do armamento de alto poder do Iraque quando atacou o norte do país. Os EUA também facilitaram o envio de armas para uma miscelânea de grupos rebeldes da Síria, e algumas dessas armas sem dúvida caíram em mãos de pessoas cujo comprometimento com a democracia liberal não é mais forte que com o ditador perpétuo Bashar al-Assad. Misture tudo isso e você tem, como com o Talibã e a Al-Qaeda antes, outro caso onde os EUA armaram futuros inimigos e depois criaram as condições necessárias para que eles prosperassem.

“Que bagunça”, disse Peter Van Buren, ex-oficial do Departamento de Estado Americano que supervisionou os esforços de reconstrução do Iraque (uma experiência que o transformou em informante). Quando perguntei se ele concordava que o governo americano ajudou a criar o EI, Van Buren foi contundente: “Com certeza.” A invasão de 2003 transformou o Iraque num campo de treinamento para grupos islâmicos radicais e deu a legiões de jovens uma razão para lutar por eles, uma receita para o desastre agravada pelo apoio dos EUA ao governante sectário. “Maliki tem sido nosso homem no Iraque, ou pelo menos temos acreditado nisso, desde que o governo americano o instalou no poder em 2006”, ele me disse. “Desde o primeiro dia, Maliki alienou e perseguiu os sunitas.” Então não deveria ser surpresa que muitos deles preferiram um grupo extremista sunita a um governo repressivo xiita.

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Foto via WhiteHouse.gov.

Algumas figuras do mainstream culpam os EUA pelo EI, mas por todas as razões erradas. Hillary Clinton, futura candidata a presidente, disse a um ex-guarda de prisão israelense que se tornou jornalista do The Atlantic que os EUA criaram o EI porque o país não se comprometeu o suficiente com a guerra na Síria.

“O fracasso em ajudar a criar uma força de combate crível a partir das pessoas que originaram os protestos contra Assad – muçulmanos, secularistas e tudo que fica no meio disso – criou um grande vácuo, que agora os jihadistas preencheram”, disse Clinton. Um editor do Wall Street Journal sugeriu da mesma maneira que o EI ganhou poder por causa do fracasso em tomar uma “ação decisiva” na Síria, sem se importar que a “ação decisiva” que políticos como Clinton tinham em mente visasse Assad, e não o EI, um grupo de combatentes lutando contra o regime.

O presidente Obama também estava ocupado massageando sua biografia recente com ajuda de uma imprensa complacente de elite. Numa entrevista com um bigodudo do The New York Times, Obama rejeitou a ideia de que a venda insuficiente de armamentos americanos criou o EI, argumentando que a “ideia de que poderíamos fornecer armas leves ou mesmo sofisticadas” para a oposição síria, e que isso poderia levar a algo bom, “nunca esteve entre as nossas cartas”.

O que Obama não mencionou, e seu entrevistado também não se preocupou em perguntar, foi que os EUA realmente armaram a oposição Síria, na maior parte por processo. Em março de 2013, a própria Times reportou: “Com a ajuda da CIA, os governos árabes e turcos aumentaram sua ajuda militar aos opositores na Síria”. A “escala dos despachos”, de acordo com os oficiais do governo citados no artigo, “era muito grande”, embora alguns membros da oposição síria tenham expressado mal-estar na época, dizendo à Times que “quem quer que esteja vetando grupos para o recebimento de tais armas está fazendo um trabalho inadequado”.

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Mas esses detalhes se perderam no afã da guerra humanitária, já que sugerem que a intervenção passada, vendida como humanitária, falhou em evitar o mal que existe hoje – e provavelmente piorou isso – a tal ponto que o presidente dos EUA não vai nem tentar refutar seus críticos apontando que sim, que armou os rebeldes sírios.

“Se assim é, professor, o que devemos fazer agora?”, um cidadão preocupado pode perguntar. “Deixamos as pessoas morrerem porque você odeia a América?”

Bom, amigo: há uma crise humanitária genuína no Iraque e, como ajudou a criar o desastre que agora se desenrola, os EUA têm mesmo o dever de ajudar. Mas – e isso é muito importante, gente – bombardear o país nunca melhorou a situação. Na verdade só piorou tudo, levando a uma contagem de corpos além dos sonhos mais selvagens do jihadista mais comprometido (enquanto cria muitos outros novos jihadistas, que serão citados como justificativa para a próxima intervenção).

A falta de uma boa resposta para um problema como o EI não é uma boa razão para se abraçar uma cura à base de óleo de cobra, que já se provou várias vezes pior que a doença. O Exército Americano não é uma organização humanitária, e não deveríamos esperar que agisse como tal. Se os EUA querem ajudar, o país deveria oferecer àqueles que estão fugindo da violência no Iraque a possibilidade de procurar refúgio em solo americano – e prometer àqueles que ficarem que nunca mais vai bombardeá-los de novo.

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Tradução: Marina Schnoor