
Foto: Reprodução / Facebook
Há 14 anos, o fotojornalista Alex Silveira cobria uma manifestação grevista na Avenida Paulista para o Agora São Paulo (jornal em que trabalhava na época) quando, por conta do conflito que se deu entre a Tropa de Choque e os manifestantes, uma bala de borracha disparada por um policial causou na hora a perda de 85% da sua visão.
Em uma entrevista cedida à Ponte.org, Alex conta que sempre dependeu do seu olho esquerdo para trabalhar, visto que o direito nasceu com uma deficiência congênita. Com isso, sua vida mudou consideravelmente, impedindo-o de exercer sua profissão e, consequentemente, afastando-o da redação em que trabalhava.
Alex entrou com uma ação de indenização contra a Fazenda Pública de São Paulo pedindo 100 salários mínimos mais o pagamento das despesas médicas decorrentes do ferimento que seguirá com ele pelo resto da vida. O pedido foi aceito pelo juiz, mas o Estado de São Paulo recorreu da decisão, e o desembargador Vicente de Abreu Amadei, da 2ª Câmara Extraordinária de Direito Público, relator do caso, negou o pagamento da indenização a Alex.
Segundo o acórdão da decisão, o fotógrafo "colocou-se em quadro no qual se pode afirmar ser dele a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima", e isso foi suficiente para provar a "ausência de elementos para se afirmar, no caso, ocorrência de abuso ou excesso na referida conduta policial atrelada ao tal disparo que o feriu". Resumindo, a Justiça de São Paulo acredita que a integridade física do jornalista que está cobrindo uma situação de risco é plena responsabilidade do mesmo. Independentemente de haver uma atuação ostensivamente violenta da polícia ou de quem estiver presente no local.
"Amortecido". É assim que Alex descreveu sua sensação quando recebeu a notícia da decisão do acórdão, que também reverteu o pagamento das custas judiciais. E ele acredita também que essa decisão pode servir de precedente para outros casos como o do fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu a visão do seu olho esquerdo graças a uma bala de borracha da disparada pela PM enquanto ele cobria as Jornadas de Junho do ano passado.
Apesar das dificuldades, Alex não deixou de trabalhar com fotografia. E após cinco cirurgias que teve de passar por conta do descolamento de retina que a bala de borracha causou, foi buscar outras linhas de trabalho para continuar se sustentando. "Nunca vou me considerar como um inválido," ele disse à VICE. Hoje (15/09), termina o prazo para recorrer da sentença do TJSP, o que Alex afirma que seus advogados vão fazer.
VICE: Você pode contar como foi o dia em que tudo aconteceu?
Alex Silveira: Bom, vou tentar ser preciso, porque isso aconteceu há 14 anos. Eu estava na Paulista fazendo uma cobertura da manifestação, e, até então, a [Tropa de] Choque estava agindo normalmente. A rua estava muito cheia de gente, e os manifestantes começaram a passar para o outro lado da pista. Com isso, percebemos que começou uma certa agitação, e um amigo repórter chegou dizendo que a Cavalaria e a Choque estavam na rua debaixo já fazia um tempo. Ou seja, a Choque e a Cavalaria já esperavam por aquilo, e foi aí que começou o quebra-pau.
Não fui o único jornalista agredido no dia. Tinha gente fotografando comigo, todo mundo estava trabalhando. E a polícia estava agredindo todo mundo, tanto os manifestantes quanto os jornalistas. Na hora em que eu estava praticamente em frente ao MASP (na mesma pista que, diga-se de passagem, era a rua permitida para o manifesto), a polícia deu uma investida mais forte e veio para o nosso lado. Nos afastamos. Eu estava com uma outra fotógrafa amiga minha, que na época era do Diário. A polícia jogou uma bomba de gás que explodiu do meu lado. Não tinha visto nada, a bomba estourou e, logo em seguida, veio o tiro que acertou não só o meu olho como também a lateral das minhas costas, porque eu estava meio de lado e não de frente de quem jogou.
Resumidamente foi isso. Depois do tiro, alguns manifestantes, junto com o Jamil Murad, que na época era deputado, já me pegaram e me levaram para o hospital. A minha visão foi perdida exatamente na hora, sumiu tudo. Ficou só um canto do olho, que, digamos assim, só conseguia enxergar 20%. E aí me pegaram, me levaram para o hospital e detectaram que eu estava com descolamento de retina.
Você fez alguma cirurgia?
Fiz quatro cirurgias por causa do descolamento da retina, porque ela colou e descolou algumas vezes. Fiz uma cirurgia por causa do tratamento da retina que acabou me dando catarata, então tive que tirar o cristalino. Foram ao todo cinco cirurgias que tive de passar.
Você conseguiu identificar o policial que atirou em você no dia da manifestação?
Não posso dizer com precisão, mas diferentemente deles eu não quero ser injusto com ninguém. Até posso dizer que sei quem é, mas não tenho nada a ganhar com isso. Eu sei quem foi, se olhar hoje para ele vou reconhecê-lo. Nem quis saber o nome dele, nem procurei. O que eu ganharia de um cabo de polícia a não ser uma ameaça e uma bala de verdade? É uma questão muito óbvia.
E como tudo isso mudou a sua vida prática no geral?
Olha, fiquei seis meses afastado da Folha por licença médica. Na época, trabalhava na redação do Agora e na redação da Folha também. Quando retornei, por razões óbvias e mais do que lógicas, eles começaram a me tirar das pautas mais interessantes, as pautas que a gente gosta de fazer, e começaram a me colocar para fazer pautas mais simples como donas de casa reclamando de buracos na rua.
Eu passei cinco anos estudando em Nova York, trabalhando que nem condenado e fiz tudo que podia para pagar minha faculdade - e imagina o que passa na sua cabeça quando uma coisa dessa acontece.
Enfim, fiquei mais dois anos na Folha e aquilo foi me remoendo, me fazendo mal e não estava mais bem. Pedi para sair e comecei a buscar outras coisas. Fui muito bem atendido e auxiliado por eles, a Folha foi maravilhosa comigo quanto a isso. Até hoje meus advogados são do escritório que atende a Folha, eles são ótimos. É uma coisa que muda totalmente a sua vida. Não posso dirigir, por exemplo. Afetaram meu olho bom para você ter ideia. Eu já nasci com um problema no outro olho. Você não faz ideia como é para uma pessoa que trabalha com fotografia perder o olho bom, meu equipamento de trabalho.
Você trabalha com fotografia ainda?
Sim, trabalho com fotografia, cinema em 3D. Hoje em dia estou fazendo faculdade de arquitetura, porque obviamente nunca mais fui contratado. Para ser sincero, ninguém nunca mais me contratou. Não que meu trabalho seja ruim - eu sei que não é, porque já fui chamado para várias entrevistas -, e quando ficam sabendo o que aconteceu, eu não sou chamado para trabalhar. Não fico pensando muito nisso, mas o fato é que eu tive uma perda muito grande. Tanto física quanto propriamente material, no caso no dinheiro, deixei de ganhar muita grana obviamente.
Mas eu parei, né, cara. Saí da Folha, fiquei oito anos na Amazônia e já estou cinco anos aqui no Rio de janeiro. Estou voltando para a Amazônia agora no dia 24, porque a situação lá é muito melhor para mim do que aqui. Aqui estou basicamente vivendo de migalhas.
Você acha que ficou marcado de alguma forma?
Marcado não, mas obviamente quando existe um fotógrafo que não enxerga e um que enxerga perfeitamente procurando o mesmo emprego, quem você acha que vão contratar?
Me nego a acreditar que sou um inválido, consigo produzir e sou bom no que eu faço. Já me perguntaram se quis me aposentar, mas eu não vou e não quero fazer isso. Não sou um inválido.
Você vai recorrer às instâncias superiores dessa decisão que saiu no Tribunal de Justiça de São Paulo?
Claro. Temos até segunda (15/09) para isso.
No acórdão da decisão, parece que a Justiça de São Paulo deixou muito claro como ela entende que é o trabalho de um jornalista. Então me parece que jornalista não pode cobrir nenhum conflito sem sofrer sozinho pelas consequências.
É exatamente isso. Isso não é uma coisa que afeta só a mim. Obviamente eu sou a peça de ferro da coisa toda, sou o para-choque. Na verdade, eles estão ditando o trabalho de todo mundo. E outra - sem querer ser mal compreendido aqui -, nas manifestações do ano passado o cinegrafista da Band, que Deus o tenha, levou um rojão na cabeça. E eu te pergunto, ele é o culpado por estar lá? Quem é o culpado foi o cara que estourou o rojão. Então qual é a diferença disso? Para mim, parece mais um "cala boca" para a imprensa ficar quietinha no seu lugar. Na verdade, essa minha causa é umas das primeiras logo após o fim da ditadura militar. Então isso significa que o que foi dado para mim, no final das contas, pode ser precedente para o próximo que vier. Tem o Sérgio, que ano passado perdeu o olho, e está cheio de repórteres que apanham da polícia. Ou seja, nós não deveríamos estar lá. Isso dá uma liberdade absurda para a polícia. Estou começando a ficar com medo de, daqui a pouco, eles mandarem a conta da bala que eles mandaram retirar.
Você recebeu algum tipo de ameaça por ter entrado contra o Estado de São Paulo na Justiça?
Não, nenhuma.
Isso está tão fresco na minha cabeça, caiu como uma paulada tão grande em mim que realmente estou sem chão. O que eu acho, na verdade, é que isso é um absurdo não só comigo e com a profissão, mas também com a própria constituição que nos dá direito de falar. Então três senhores desembargadores entenderam, entendem ou vem ao caso entender - o que acho que é mais isso - que eu sou culpado por estar lá, apesar de eles também terem entendido que foi a Polícia que atirou a bala de borracha. Ou seja, não podemos mais cobrir nada. Olhando por essa lógica, o jornalista é o culpado por perder a cabeça no Iraque e jornalista da Band é culpado pela sua própria morte por ter estado na manifestação. Entendeu? Todos nós somos culpados, sempre somos. Eu não tenho mais muito o que falar, porque minha cabeça está meio dormente com tudo isso.
O acórdão também comenta que não havia provas suficientes para demonstrar que você levou mesmo um tiro de borracha. Isso confere?
Vou responder sua pergunta com outra pergunta. Você já ouviu falar de alguém que tenha armazenado uma bala de borracha dentro do corpo? Não. Então isso significa que ninguém nunca levou um tiro de borracha? Não, né? Então é isso.
Você tem vontade de cobrir algum protesto de novo?
Não.[risos] Eu variei bastante o meu mercado de trabalho, fiz Amazônia, fui fotografar bicho, índio. Trabalho agora com outra linha, National Geographic, publiquei como freela na revista. Fiz coisa para a GEO da Espanha também, para a Viagem & Turismo, trabalhei para a WWF, para o Ibama e para vários outros lugares, enfim.
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