Fique rico ou morra digitando: o mundo dos textcees, os rappers digitais
Uma batalha de rap da vida real. Crédito: Eli Duke/Flickr

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Fique rico ou morra digitando: o mundo dos textcees, os rappers digitais

Pelos mais variados cantos da internet, homens e mulheres cansam seus dedos em batalhas de raps textuais.

Há rappers como Lil Wayne que se orgulham de nunca ter botado um verso no papel; já outros, a exemplo de Frank Ocean, mais abertos ao processo criativo, compartilham todas suas letras na internet. Pelos becos digitais há também uma vertente de rimadores menos conhecida e, digamos, menos vaidosa: a daqueles que publicam letras, sem nenhuma base musical, em batalhas de rap escritas dentro de fóruns especializados.

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É provável que você nunca tenha testemunhado batalhas de "textcees", mas elas estão espalhadas por toda a internet. Todas acontecem por meio dos dedos rápidos de homens e mulheres anônimos de todas as idades que usam seus talentos de escrita e de rima para brincarem com seus avatares de rappers.

Em um fórum nigeriano chamado Nairaland, num tópico intitulado "Damnation Alley", um confronto se inicia. Os versos vêm em dísticos: a batalha entre "Ibime" e "Coogar", está sendo avaliada segundo uma série de critérios, entre eles a abertura, símiles, punchlines, jogos de palavra e flow.

Os competidores não têm medo de apelar para insultos pessoais, mesmo quando não sabem qual é a aparência de seu adversário. "Yet you continue to eat few more fries/Your huge circumference should be blamed ……..on too much pie" ("Você nunca para de comer batata frita/Sua circunferência é resultado de………torta demais"), escreve Coogar. Esse é um rap com hyperlinks: seu oponente pode não ter rosto, mas seu perfil está disponível, o que significa que os insultos mais ofensivos estão relacionados ao seu histórico digital.

"Click on his profile. . . and peruse through his stats/ 26,000 posts in 3 years. . . you do the Math/ That's roughly 24 a day. . . this dude truly is sad!/ Every hour of his life spent cruising for chats/ When Nairaland crashed. . . if Seun hadn't rebooted it back/. . . .he was 2 days away . . . from jumping off the roof of his flat!!"

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("Cliquem no perfil dele. . . e olhem seus dados/ 26.000 posts em 3 anos. . . façam o cálculo/ São 24 por dia. . . esse cara é um otário!/ Cada segundo da sua vida procurando papo/ Quando o Nairaland caiu. . . se Seun não tivesse arrumado/. . . . ele estaria a 2 dias . . . de pular do telhado!!")

Quando mergulhamos no mundo dos textcees, o seu vocabulário se torna cada vez mais familiar. Existem os textcees, os netcees (nome dado aos sites onde ocorrem as batalhas) e as keystyles, uma versão escrita do rap freestyle. Essas batalhas de rap tendem ao rizomático: elas estão presentes tanto em subreddits, como o /r/Cypher e /r/RapWars, quanto em lugares inesperados, como a seção de comentários de vídeos de música instrumental no YouTube. No Rap Genius, as batalhas acontecem espontaneamente nos fóruns para, depois, serem arquivadas no catálogo do site principal.

Há também comunidades criadas especialmente para esse propósito, segundo as tradições dos fóruns à moda antiga. Entre elas estão o Netcees.org, Spitsville, Lyrical Assault e o Rapnometry. Alguns desses sites abrigam centenas de textcees enquanto outros são tragicamente desabitados. Nesses sites, as "brigas escritas" e acusações de plágio são comuns — algo de se esperar, considerando que para copiar só é preciso apertar Ctrl+C/Ctrl+V.

Os nomes de textcees são uma arte em si. Misturam a grandiloqüência do rap com o humor bobo dos nomes de usuários de fóruns: encontrei pérolas como "Theodore Killingsworth", "GrimmZReaper", e "Jihad", nome este que deve ter parecido uma boa ideia em 2006, época de ouro desse usuário.

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Existem hierarquias e tópicos reservados somente aos membros mais importantes. Alguns, como essa seção do Rap Pad, são conhecidos como cypher, nome usado para designar um grupo de rappers, beatboxers e dançarinos que se reúnem ao redor do palco durante as batalhas de rap.

Esses cyphers dão origem aos tópicos mais ativos e acessíveis: lutas de rap abertas que funcionam como um exquisite corpse (um jogo de criação colaborativa) literário. Muitas vezes, esses tópicos são apenas uma série infinita de rimas ou uma corrente de usuários insultando a pessoa que escreveu o post acima do seu.

TJ é um dos moderadores do /r/Cypher, uma das várias comunidades de rap do Reddit. TJ começou a escrever por volta de 2007 e, em pouco tempo, ele estava "entrando em clubes de rimas, frequentando batalhas e escrevendo letras de músicas com outras pessoas", conta. "Uma das coisas mais divertidas é batalhar com seus amigos quando você está bêbado."

"Quando escritores muitos bons começam a postar versos fodas, dá vontade de sentar e escrever umas loucuras…"

Ele contou uma versão resumida da evolução do rap escrito, que nasceu no início dos anos 2000 e começou a dominar a internet por volta de dez anos atrás. Os sites especializados costumavam dividir suas seções entre "temas" (onde os escritores escreviam sobre um tema específico), cyphers ("tópicos mais flexíveis e colaborativos") e batalhas de rap oficiais cujo objetivo era inventar os insultos mais criativos (o /r/RapWars ainda atende a este mercado). Embora muitos desses sites tenham desaparecido, a comunidade de rap do Reddit ainda resiste.

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Outro membro do /r/Cypher, Jamhank, mencionou a natureza arquivológica do subreddit — cada perfil narra uma história de evolução. "É legal ver o quanto você evoluiu desde seus primeiros posts", disse. Jamhank afirma que a força da comunidade, que ele compara ao Wu-Tang Clan, é sua principal motivação. "É a comunidade que impulsiona o fórum; é por isso que precisamos de mais pessoas", diz ele. "Quando escritores muitos bons começam a postar versos fodas, dá vontade de sentar e escrever umas loucuras…"

No centro dessa prática há uma enorme contradição: para uma comunidade baseada na arte do insulto, seus membros são surpreendentemente acolhedores e educados. TJ diz nunca ter visto briga de verdade. "Existem algumas pessoas que precisam humilhar os outros para alimentar seus egos, mas acho que isso faz parte da diversão", diz. Da mesma forma, as regras do Rapnometry enfatizam o respeito entre os membros. O fórum proíbe insultos a parentes (nada de piadinhas do tipo "tua mãe") e recomenda que os membros evitem arranjar briga com rappers mais habilidosos. A última regra da lista é um pouco ameaçadora: "Não seja um dedo-duro".

Também conversei com Amir, fundador do RapPad, fórum que nasceu de um app criado por ele em 2013. O aplicativo possui um editor de texto, um dicionário de rimas e uma série de batidas. Ao longo dos anos, Amir foi criando funções que permitiam que os usuários compartilhassem suas letras e, em pouco tempo, o RapPad se tornou uma rede social para rappers. Amir diz já ter visto "várias 'grandes batalhas', que acontecem porque o site permite que os usuários conversem entre si". "Eles fazem amigos. Eles se aproximam. As batalhas se tornam mais interessantes porque as rimas são mais pessoais e os ataques, mais diretos", conta.

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Embora a comunidade do Reddit favoreça raps mais civilizados, as batalhas do RapPad tendem à perversidade. O próprio Amir já inspirou raiva — e rimas nada elogiosas — por sua atuação como moderador. Em suas palavras, "quando as rimas ficam mais pesadas, tipo, 'Vou matar você e sua família', qual é a diferença entre isso e cyberbullying? É difícil traçar essa linha, porque eu quero que o site seja um espaço positivo, mas ainda assim propício à batalhas".

Ao longo do tempo, Amir notou tendências curiosas entre os usuários: muitas vezes um textcee recusa um desafio para depois postar ataques velados a seu adversário em outros tópicos — o equivalente rapper de um sub-tweet. Às vezes, usuários que afirmam ser menores de idade entram no fórum pedindo para que os raps sobre eles sejam deletados. "O que mais me surpreende é a diversidade entre os membros do fórum. Um bom exemplo foi uma batalha épica entre um garoto negro de 17 anos de Nova Iorque e uma mãe de 30 anos de Kentucky. E se você pensa que eles se controlaram, bem, você está enganado", afirma Amir.

Atualmente o rap está ao mesmo tempo mais comercial e mais nerd. Toda e qualquer referência obscura é analisada no Rap Genius, no Twitter e na seção de comentários do YouTube; enquanto isso, o YouTube se enche de vídeos com letras de rap, muitos deles postados pelos próprios artistas. Quantos rappers aposentados existem por aí com seus melhores versos guardados em documentos empoeirados do Word?

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RT if you were EVER a textcee
— #wemakesentz (@Sentz) 31 de outubro de 2012

Para muitos, os dias de textcees são um sonho antigo, enterrados em fóruns há muito desativados. No Twitter, muitos falam sobre o passado com nostalgia: "Lmao meus dias de textcee foram divertidos", diz alguém que atende pela alcunha de "Tha Beast" e que se descreve como "rapper e psicopata". "#AntesdoFacebookEuEra uma rapper/textcee/femcee", diz uma usuária cuja bio diz "Earl Sweatshirt é meu mozão". "Foi-se o tempo em que eu participava de batalhas de rap", escreve outro usuário, marcando algumas pessoas que não possuem contas no Twitter. Outro diz: "RT se você já foi um textcee". Há apenas um retweet.

A prática do textcee não se adequa às redes sociais de hoje: sites como o YouTube e o Instagram incentivam rappers a mostrarem seus rostos e exibirem suas personalidades. Mas, para muitos, a prática era uma forma de entrar no mundo do rap incognitamente, sem precisar se comprometer com uma identidade. Você podia participar mesmo sendo tímido demais para rimar em voz alta. Esses rappers nunca associaram um rosto, ou mesmo uma voz, às suas letras, mas isso permitia que eles assumissem qualquer identidade.

Como um usuário do Twitter relembra: "They ain't even know I disguised me/ My ghost account ghostwrote for people who criticized me!" ("Eles nem sabem que eu me disfarçava/ Minha conta secreta escrevia para quem me zoava!").

Tradução: Ananda Pieratti