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Desporto

À cata de acidentes na Rampa da Falperra

Uma manhã entre montes e carros.

Eu não gosto de carros. Quer dizer, são porreiros para levar um gajo do sítio A para o sítio B, mas quando me aparecem com conversas sobre cilindradas e últimos modelos não consigo fazer mais do que bocejar à espera que o tema mude. Isto já vem de quando, com três ou quatro anos, o meu pai me trazia da França e Alemanha modelos em miniatura que eu acabava por espatifar do primeiro andar de casa da minha avó. Com aquela idade quem é que consegue ficar a olhar para um brinquedo numa prateleira? Além do mais era a única maneira de ver o que raio tinham por dentro: ninguém no seu perfeito juízo confia uma chave de fendas a um puto, mas, para bem das minhas asneiradas, a força da gravidade já é um bocado mais complicada de esconder. Rapidamente a prateleira onde mantinha as minhas cinco ou seis miniaturas passou de stand de luxo a exposição de sucata, com um intacto Dodge Viper amarelo lá pelo meio porque até na altura já tinha percebido o quão brutal esse carro é. Passadas cerca de duas dezenas de anos o meu interesse por veículos motorizados mantinha-se inalterado, mas a massificação da utilização do YouTube trouxe consigo uma nova vaga de vídeos bem portugueses, não tanto sobre carros mas mais sobre espatifanços e respectiva reacção do público. Primeiro veio o “tu bates mal, man” e, já no auge do meu delírio, enviam-me o clássico "Entre os Montes". A amostra não era grande coisa, mas horas e horas a ver ambos os vídeos em loop convenceram-me a escrever “ir a um rali” na minha lista de coisas a fazer, mais ou menos entre o “andar de elefante” e o “deixar de fumar”. Deixei passar uns tempos com a ideia de ir a um rali em hibernação, mas a oportunidade surgiu finalmente quando, numa daquelas viagens sem rumo pelo maravilhoso mundo da internet, dou por mim no site do Clube Automóvel do Minho, onde para meu deleite descubro que havia corrida nesse fim-de-semana, a 33.ª subida da Rampa da Falperra. Tinha aqui a minha oportunidade de ouro e não a ia deixar escapar. Não deixei. No dia seguinte tentei convocar o maior número possível de gente para partilhar comigo esta empreitada, mas como a subida calhava em duas manhãs consecutivas de fim-de-semana, com previsão de chuva, respondiam-me (com alguma razão) que não devia estar no meu perfeito juízo para acordar cedo a um domingo de manhã para ir a um rali ou, com mais razão ainda, que há esplanadas jeitosas à berma da estrada se o que queria era ver passar carros. Resignei-me, nem toda a gente passou tanto tempo como eu a ver vídeos de rali. Azar o deles. Acabámos por ir três, a conta que Deus fez, uma santíssima trindade que contava nas suas fileiras com um Espírito Santo que há-de ser médico. Estava a chuviscar naquele domingo e, resolvidos os atrasos do costume que combinações matinais envolvem, chegámos finalmente à recta de partida, imbuída num manancial folcloricamente kitsch de carros tapados de publicidade, camiões de transporte de veículos enfeitados de logótipos com as palavras “motor”, “speed”, “auto”, “race” e “car” combinadas aleatoriamente, pequenas oficinas ambulantes e tantas outras coisas que só imaginava existirem no Sega Rally. Encostámo-nos ao rail ao lado da largada para tentar visualizar alguma coisa de interesse, mas ver carros a partir é uma seca e ouvir um megafone debitar nomes de condutores e modelos de veículos entre techno chunga não proporcionava entretenimento suficiente. Tínhamos de mudar de sítio e a única maneira de avançar sem correr o risco de cair monte abaixo era dar a volta ao presépio de onde partiam os carros. Lá fomos nós, monte acima, por entre urtigas e lama e pessoal silvestre, até chegarmos a uma ravina com vista para outra recta. Se o que queríamos era ouvir um “tu bates mal, man!”, íamos ter de apanhar um despiste, logo havia que encontrar a curva mais apertada do monte inteiro. Passámos por mais urtigas, mais lama e mais pessoal silvestre (de onde vinha esta gente?) até encontrarmos a primeira curva a sério, onde estava instalada uma pequena romaria, mas nem aí tivemos sorte. De volta ao monte, às urtigas e ao resto, até que começámos a ouvir um alvoroço. “Será que alguém se espatifou agora que saímos dali?”, a resposta viria em breve, a cinco à hora. Um carro conduzido por Paulo N. teve uma avaria e percorria desconsoladamente a subida perante insultos, uivos e algumas graçolas imemoráveis do público. Encostou o carro à berma, enquanto um gajo a quem suponho que cabia o título de TRACK MANAGER interrompia as próximas partidas até que o reboque chegasse. Quando finalmente chegou, Paulo N. ainda soltou um “se me foderes o pára-choques, pagas!”. Foi a coisa mais parecida com um despiste que iríamos ver nesse dia e já não tínhamos pachorra nem genica para subir mais monte, por isso esperámos que a corrida acabasse e demos um salto ao Sameiro, onde nos infiltrámos no hotel em que se realizava a entrega de prémios só para apanharmos uma seca à espera que começasse a cerimónia, enquanto ouvíamos os lamentos de desespero de vários condutores, jornalistas e outros profissionais de alguma coisa. Se eles tinham de esperar, nós não, por isso aproveitámos a deixa para nos pormos ao fresco. Já tinha tido a minha dose de monte. Aprendi algumas coisas com esta brincadeira. Primeiro: não gosto de ralis. Segundo: apanhar um despiste não é tão fácil em prova como no YouTube, tem de se estar no sítio certo no momento exacto. Terceiro: a julgar pela quantidade de gente a observar a prova em curvas, era óbvio que o que o pessoal queria ver era alguém a espatifar-se. Ah, as melhoras para um amigo de um colega meu que foi parar ao hospital por ter levado com um carro em cima. Fotografia por Teresa Almeida