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Por que ‘GTA’ ainda é tão sexista?

GTA XX é a série especial da VICE Brasil, com entrevistas e análises exclusivas, que celebra os 20 anos da franquia que mudou tudo nos games.

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Estamos quase no fim do mês especial que dedicamos a falar de GTA e já ficou meio óbvio que amamos os games da franquia. Também achamos todo o lance da Rockstar de criar narrativas, personagens e cidades fantasias que nos permitem desde descobrir a história sombria de um personagem, até catar um helicóptero e atirar a esmo em direção da polícia. Inclusive, gosto tanto do trabalho da Rockstar que passei alguns anos fingindo que o sexismo descarado nos seus jogos era apenas um fator cômico. Até que uma hora me enchi o saco.

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Eu tinha apenas 13 anos quando joguei pela primeira vez o GTA: Vice City e sequer notei como as mulheres são retratadas nele. Era apenas uma moleca espinhenta gastando as férias para zerar o jogo e me emocionando toda vez que roubava um conversível e saía atropelando pessoas ao som de “Out of Touch”, do Hall & Oates. Hoje admito que não jogo mais tanto quanto antes e sou mais chegada em jogos de celular, mas a questão vive retornando quando tenho a oportunidade de revisitar algum jogo da série.

‘GTA: Vice City’.

A gota d’água foi ler as resenhas e jogar um pouco de GTA V, a última edição da série lançada em 2013 com um mapa muito maior, três personagens principais intercambiáveis e uma experiência multiplayer online mais complexa em comparação aos outros games da série. No entanto, foi difícil de engolir ao ver que as figuras femininas do jogo são limitadas, burras e só estão lá para incentivar o comportamento misógino dos personagens. Claro que isso não tirou o brilho e a genialidade da edição, mas emburreceu a história.

Não tenho problemas com a presença de personagens ou situações machistas em games ou outras peças de ficção, mas ela precisa ser bem colocada senão só parece gratuita. E de sexismo gratuito já basta a vida real e isso não combina com a própria Rockstar, apesar de a franquia ser construída com base em clichês de cinema norte-americano que crescemos assistindo.

O submundo do crime de fato é um universo masculino, mas por que então vender o jogo como algo subversivo se ele só reproduz a mesma ladainha de sempre?

“[O GTA] tem muita influência do cinema policial, que é bem sexista e herdou alguns estereótipos como femme fatales, aproveitadoras, esse tipo de coisa. (…) O que é mais preocupante é o lance com as prostitutas. É algo muito popular no jogo, muita gente faz pela ‘zueira’: contratar uma prostituta, matar e pegar o dinheiro dela de volta. Isso em termos de gameplay é péssimo, porque o que o game faz é recompensar o jogador por mata-las”, analisa Beatriz Blanco, professora universitária.

Embora a maioria das minhas lembranças em GTAs antigos não envolver mulheres fazendo algo além de serem mortas ou servindo como isca de abusos, GTA V conseguiu pesar a mão mais ainda espalhando propagandas de rádios e outdoors nos lembrando que o jogo é um mundo de homens. Ok, porque o submundo do crime de fato é um universo masculino, mas por que então vender o jogo como algo subversivo se ele só reproduz a mesma ladainha de sempre?

“Quase não há personagens femininas fortes no jogo”, conta Ana Passos, designer gráfica e bartender. “Em sua maioria não passam de estereótipos lascados: a negra periférica barraqueira, a madame branca, rica e meio tonta, a filhinha mimada e estúpida, a viciada em esportes solitária. [Porém], a ex-namorada do Franklin [um dos protagonistas de GTA V] é uma mina com inteligência emocional exemplar, mas a dita cuja só aparece em SMS e e-mails respondendo o ex-namorado que não para de encher o saco.”

Liz, a namorada de Franklin em ‘GTA V’.

Beatriz engrossa o caldo das críticas lembrando também que o problema pode ser que a própria Rockstar parece não decidir se é uma sátira de estereótipos ou se está fazendo uma crítica séria. Essa indecisão, proposital ou não, acaba por colocar o sexismo inserido nos jogos como algo dispensável e bobo. “Seria ruim se o jogo ficasse didático, porque não é a proposta, mas pra quê fazer uma sátira que reforça o status quo? Perde todo o valor de subversão dela”, questiona.

As missões raramente – ou nunca – dão algum tipo de protagonismo fora do padrão para as mulheres. No GTA V houve até uma tentativa de sanar isso, permitindo que você criasse um avatar feminino, mas não passou de um esforço mínimo. “Essa é a proposta do jogo? É, sim, ele nunca se propôs a ser um jogo isentão ou com traços feministas, até porque o que ele pretende reproduzir é um lifestyle misógino e machista para um público que pode se identificar. É extremamente incômodo ver qual é a posição feminina dentro desse universo. Meu sonho de princesa seria ter uma assassina louca como personagem principal”, diz a jornalista Bianca Castanho.

‘GTA IV’.

Às vezes, quando escapo para jogar o GTA IV no Xbox 360 que peguei emprestado, penso que o sexismo dos jogos está lá também para a própria comunidade gamer encarar como um espelho de si mesma: muitas vezes preconceituosa, sexista e violenta sob a desculpa de ser tudo em nome da zoeira. O lado positivo é que a Rockstar parece ciente das coisas que faz. O Bully, embora ter criado uma polêmica e ser impedido de ser vendido no Brasil nos anos 2000, foge da cagada da franquia GTA de recompensar o protagonista (e, por extensão, o jogador) quando ele machuca elementos vulneráveis do jogo.

Em todas as edições que joguei, o elemento satírico, uma característica da Rockstar, está lá. O gangster falastrão, o imigrante de Leste Europeu com cara de vilão, o italianão subindo os degraus da Cosa Nostra e até o traficante malucaço de metanfetamina louco por violência. Todos são estereótipos exagerados de figuras montadas pelo imaginário norte-americano, porém o twist da Rockstar é mostrar que eles são imprevisíveis, humanos e donos da própria vida. No entanto, as mulheres permanecem as mesmas. Nem posso dizer que são parte do cenário, porque este também evolui. Já as mulheres ganharam no máximo mais definição, roupas melhores e poucas falas a mais. A misoginia no GTA, no entanto, é algo fixo e consistente o que impede da franquia ser realmente genial.

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