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Identidade

“Porque é que numa cidade em que vemos gente de tantas cores, é tão estranho ter actores negros num palco?”

Zia Soares é a directora artística do Teatro Griot, que encenou “Os Negros”, de Jean Genet. Uma peça que levanta questões sobre o lugar de fala dos negros numa cidade multicultural como Lisboa.
actriz negra
Zia Soares. Foto por Sofias Berberan

A peça Os Negros, do dramaturgo francês Jean Genet, recentemente encenada em Lisboa pela companhia de actores Teatro Griot, lança para a esfera pública questões sobre a colonização, o racismo e o lugar de fala dos não brancos na sociedade portuguesa.

Genet, escritor branco, concebeu-a como uma peça de teatro para ser levada a cena por actores negros, para uma audiência de brancos. A peça esteve no Teatro Municipal de São Luiz, na capital portuguesa, entre 6 e 15 de Outubro, e deu o mote à conferência "Lugar de Fala", que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a 9 do mesmo mês, onde se discutiram as propostas de Genet. O dramaturgo francês escreveu a obra há mais de 50 anos, para uma companhia francesa também chamada Griot.

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Conversámos com a directora artística do Teatro Griot, Zia Soares, no pólo cultural das Gaivotas em Lisboa, onde está sediada a companhia. Num final de tarde de Outono com calor de Verão, Zia falou sobre racismo, arte e o teatro que está por fazer.


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VICE: Porquê a encenação de Os Negros, de Jean Genet?

Zia Soares: Primeiro, porque já temos vindo a trabalhar com o Rogério de Carvalho [encenador da peça] há alguns anos e este espectáculo sempre esteve presente, porque o Rogério já o encenou três vezes. A primeira foi em Lisboa, nos anos 80, com o Teatro do Século e foi só com actores brancos e, em Portugal, voltou a encenar o texto no Teatro Nacional do Porto, mas com actores negros.

De repente, de alguma forma, pareceu-nos interessante fazermos este texto. Queríamos fazer Genet, mas até estávamos a considerar outras obras dele, só que quem conhece o Rogério sabe que ele regressa várias vezes aos mesmos textos, aos mesmos autores. Depois, havia também a vontade do co-produtor do São Luís que fosse este texto em particular e encenado pelo Rogério… portanto, o texto foi-se impondo naturalmente.

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"Os Negros". Foto por Estelle Valente. Cortesia Teatro Griot

Esta é uma peça escrita por Genet (nos anos 50) para um grupo de teatro também chamado Griot, como a vossa companhia, mas em França. Que actualidade tem este texto agora e no contexto português, sobretudo pelas questões que estão a ser discutidas neste momento, como a situação dos negros e afro-descendentes no País?

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Na verdade, neste texto o que para mim é realmente interessante é a estrutura em que o drama se desenrola. Temos três patamares diferentes e as personagens relacionam-se conforme o patamar onde estão. E, depois, perceber quem é que domina o quê e quando é que domina e porque é que domina. Acho que é esse realmente o ponto interessante e actual deste espectáculo.

Obviamente que depois há uma questão que é óbvia que é a questão dos negros e dos brancos, ou a questão dos brancos e dos negros e o que é isto de ser branco e o que é isto de ser negro. São duas questões que podemos colocar ainda hoje e que, eventualmente, ainda hoje não vão ter resposta. A mim o que me parece contundente é que há um conceito de "negro" que é muito mais abrangente do que a cor da pele das pessoas. Não sei se quem foi ver o espectáculo conseguiu ter esta leitura possível, mas essa é para mim a leitura que importa. Estes negros que são dominados têm uma determinada condição, porque alguém os domina, alguém detém o poder, alguém determina as suas escolhas, as suas vontades e a sua vida.

Tocar num espetáculo como este, hoje em dia em Lisboa, em Portugal, em que se coloca no mesmo palco, num palco municipal da capital do País, 13 actores que são negros, acaba por ser uma afirmação por si só. Estas pessoas existem, estas pessoas também podem estar neste palco, estas pessoas também são actores. É possível isto acontecer, mas porque é que não acontece…

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"Os Negros". Foto por Sofia Berberan e Mário César. Cortesia Teatro Griot

Mais vezes?

Mais vezes. Ou seja, porque é que ainda é uma interrogação? Quando decidimos fazer isto com 13 actores negros, ao princípio demos muitas voltas para perceber se o elenco seria realmente todo negro ou não e devo dizer que tivemos muitas resistências da parte dos próprios elementos do Griot em ter um elenco todo negro. Acabámos, no entanto, por ceder àquilo que era a vontade do autor (Genet) e aquilo que era a vontade do encenador nesta altura.

Assim que decidimos e que isto começou, toda a gente nos perguntava, invariavelmente, mas porque é que vão fazer este espectáculo só com actores negros? Uns diziam: "Acho terrível. Vocês assim só estão a potenciar ainda mais as questões do racismo. Deviam fazer um elenco misto". E eu no princípio achava aquilo muito estranho. Porque é que toda a gente perguntava isto? No entanto, ao mesmo tempo pensava que o estranho era que nunca ninguém perguntasse o contrário! Quando se vai a uma sala de teatro as pessoas sentam-se e vêem um elenco de actores todos brancos e nunca ouvi ninguém perguntar "Eh pá, porque é que esta companhia fez este espetáculo só com actores brancos? Porque é que não fez também com actores não brancos?".

Nunca vi estas questões serem colocadas. E de repente aqui era uma questão transversal a muita gente. Ficava calada, porque não tinha resposta para aquilo. Não vale a pena estar a dizer que o Genet escreveu para 13 negros, porque nós já fizemos outros espectáculos que foram escritos para actores brancos e, enfim, para homens e foram ditos por mulheres e isso não tinha relevância nenhuma. A pergunta tem que ser devolvida. Porque é que isto é ainda tão estranho? Porque é que numa cidade em que circulamos e vemos gente de tantas cores, é tão estranho ter só actores negros num palco?

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"Os Negros". Foto por Estelle Valente. Cortesia Teatro Griot

Ou seja, perceberam pelas escolhas que fizeram que essa questão ainda paira na sociedade portuguesa? Hoje, em Portugal, e em Lisboa em particular, as questões da descolonização e do racismo continuam vivas? Achas que a falta de representatividade de pessoas não brancas nos media e em lugares de poder ajudam a que ainda se coloquem estas interrogações?

A falta de representatividade em vários sectores da vida portuguesa por pessoas não brancas é evidente. Desde a política à educação. Eu tive uma única professora negra ao longo dos meus anos de estudante. Os meus filhos, um tem 16 outra tem 12, nunca tiveram um único professor que não fosse branco, portanto, naturalmente que isso acaba por ser uma questão.

Quando não te consegues rever em sítios fundamentais da sociedade em que vives, torna-se muito complicado, pois começas a acreditar que todos esses sítios não são para ti, que te são vedados. Vou procurar sítios onde eu possa ter cumplicidades, onde possa ter afectividades de pele. Porque isso é real, não é uma coisa subjectiva, é evidente. É que as pessoas às vezes pensam que esta é uma questão subjectiva que não é uma coisa concreta. É concreto.

De qualquer maneira, vocês não se assumem como uma companhia de teatro exclusivamente "negra".

Não, de todo. Nós somos uma companhia de actores, ponto final, parágrafo. Fim de conversa. Nunca iremos ser uma companhia de actores negros. Quem vai ver perceberá que a Zia tem esta cor e o cabelo não sei o quê. Eu tenho que colocar todas as características que nós temos na nossa apresentação? Não. Vão ver os espetáculos e logo verão quem são os actores.

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Agora, é indiscutível que somos uma companhia de actores. Depois, tudo o resto vem connosco, com tudo o que temos, com a nossa cor, com a nossa voz, com a nossa história, com a nossa memória, como com qualquer actor no Mundo. Somos actores e escolhemos um sítio para dizer coisas que é o palco e, dentro da nossa programação, existem coisas que se prendem com o facto de descendermos de africanos e de termos nascido em África.

Quando vos fazem este tipo de perguntas sentem que, de alguma forma, estão a desestabilizar as concepções que as pessoas (não negras) têm do que é o vosso trabalho?

Não é só dos não negros, os próprios negros fazem-nos estas perguntas. E, às vezes, são os nossos amigos negros que acham que nós deveríamos reivindicar muito mais a situação de sermos actores negros e tal e tal… Portanto, ouvimos isto de muitos sítios e de muitos lados. Acho que desorganizámos um bocadinho o mundo destas pessoas que querem colocar tudo em gavetinhas certinhas e bem arrumadas. Não temos nada disso. As nossas gavetas são todas desarrumadas e não há nenhuma que esteja fechada. Estão todas abertas e em aberto.

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"Os Negros". Foto por Estelle Valente. Cortesia Teatro Griot

Achas que a arte pode cumprir esse papel de fazer as pessoas pensarem de outras formas sobre a sociedade?

A arte deve, pode e tem que ter esse papel. Para isso era muito importante o Governo pensar seriamente sobre o papel da arte, o papel da cultura, no crescimento das pessoas e do País. É vergonhoso que estejamos num sítio em que a cultura ainda é relegada para o acessório. Em que não tem dentro do orçamento uma participação real. O orçamento é ridículo. Anda-se a lutar para ter um por cento. Continua-se com a mentalidade que os artistas têm determinados devaneios e que podem pensar sobre isto e sobre aquilo. É tudo muito mais concreto e participativo. Faz parte daquilo que as pessoas são e pode construir-se muita coisa e pensar muita coisa através da arte.

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Espero que este espectáculo tenha contribuído para algumas discussões que são fundamentais. Por isso é que, a par do espectáculo, existiu a conferência "Lugar de Fala" (em co-organização com a Associação Djass e o Centro de Estudos Comparatísticos da Faculdade de Letras), que ainda vai agora viajar por alguns sítios.

De que forma é que o Griot pode ser um lugar para novos actores e actrizes desenvolverem o seu trabalho. Em Os Negros estavam uma série de novos actores e actrizes…

Isso foi uma das boas surpresas deste elenco, porque, realmente, são muitos actores e muitos dos que nós queríamos. Abrimos audições para alguns papéis e apareceram extraordinárias surpresas. Há uma miúda muito jovem, com 22 anos - a Binete Undonque. que fazia a "Virtude" - que saiu agora do TEC (Teatro Experimental de Cascais). Acabou o curso este ano e, curiosamente, na altura em que nos estava a faltar uma das actrizes para a personagem que ela acabou por fazer, tínhamos recebido o curriculum dela, assim do nada, dois dias antes. Veio fazer a audição e ficámos tipo "o que é que é isto, de onde é que esta miúda veio"…

Havia actores muito jovens, mas também havia outras gerações. E haver gente tão jovem com tanta capacidade de trabalho, com tanta qualidade artística… Acho que, para eles, terá sido uma experiência extraordinária… saíres da escola e ires para o São Luiz com o Rogério de Carvalho… Quer dizer, não há muita gente que se possa gabar de estrear desta forma. Ficamos muito contentes por o Teatro Griot ser um espaço que acolhe pessoas, independentemente de onde venham.


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