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"Os artistas não criaram essa performance, quem criou foi a ditadura"

Álvaro Figueiredo, curador da exposição fechada na Casa França-Brasil no último domingo (13), acredita que os artistas brasileiros estarão cada vez mais suscetíveis à censura.
Performance do grupo És Uma Maluca
Performance do grupo És Uma Maluca. Foto via Facebook

Em depoimento à Comissão da Verdade em 2014, a cineasta Lúcia Murat relatou um tipo de tortura até então desconhecido por grande parte da sociedade brasileira. "[Eles] gritavam, me xingavam, me puseram de novo no pau de arara. Mais espancamento, mais choque, mais água e dessa vez entraram as baratas", disse a ex-integrante da luta armada contra a ditadura militar sobre os policiais que a torturaram. "Puseram baratas passeando pelo meu corpo, colocaram uma barata na minha vagina. Hoje parece loucura, mas um dos torturadores, de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes e através do barbante ele conseguia manipular as baratas pelo meu corpo."

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Só tivemos a oportunidade de conhecer o relato de Lúcia 43 anos depois de sua prisão. A prática de tortura, que aconteceu diversas vezes durante a ditadura, foi inspiração para que o escritor carioca Rodrigo Santos escrevesse o conto Baratária, sobre uma mulher que já tinha um trauma profundo em relação a baratas e, durante a ditadura, é torturada por militares que colocam os insetos em sua vagina. O texto faz parte da exposição Literatura Exposta, em que obras literárias eram interpretadas por coletivos ou artistas plásticas na forma de performances, pinturas, esculturas ou instalações expostas na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro.

Baratária foi interpretada pelo coletivo carioca És Uma Maluca, que idealizou uma instalação e uma performance baseadas no conto de Santos. Mas, no último domingo (13), dia em que a performance seria realizada para o público, o curador Álvaro Figueiredo foi surpreendido por um documento que comunicava o fechamento da exposição antes do combinado. A razão era uma aparente quebra de contrato, que não era especificada, e o documento havia sido assinado pelo governador do Rio, Wilson Witzel.

Em entrevista à VICE, Figueiredo, que curou a exposição junto ao escritor, roteirista e produtor cultural Julio Ludemir, contou que em nenhum momento lhes foram pedidas especificações sobre o conteúdo dos trabalhos que seriam apresentados. "A única questão que existia em relação à exposição era o fato de ela ter sido montada em um espaço tombado do Estado. A preocupação do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] desde o início era em relação ao que seria colocado lá, de modo a não prejudicar o espaço físico. No documento que mandei à produtora do evento, não tem nenhuma descrição de conteúdo de trabalho, apenas descrições técnicas", fala.

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Antes da exposição ser fechada oficialmente, uma das obras, também feita pelo coletivo És Uma Maluca e inspirada por Baratária, foi vetada parcialmente pela Casa França-Brasil. Uma instalação chamada A Voz do Ralo É a Voz de Deus, que consistia em baratas de plásticas saindo de um ralo de onde também saía a gravação de um discurso de Jair Bolsonaro, foi impedida de utilizar a voz do presidente. O ralo passou a ecoar, então, uma receita de bolo.

Já próximos à finissage do evento, foi pedido a Figueiredo que acontecesse uma performance ao final da exposição. Ele mandou o documento do coletivo que descrevia a performance à Casa França-Brasil, que deu um OK e pediu apenas que fosse colocada uma restrição de idade. No domingo, porém, o evento foi vetado por completo. Em entrevista ao Globo no domingo, Witzel alegou que a performance não estava originalmente no contrato, portanto, não poderia ser executada.

Na segunda-feira (14), o coletivo resolveu realizar a performance na rua, à frente da Casa. O áudio original de Bolsonaro, em que ele exaltava o coronel Brilhante Ustra, foi mantido e a artista, que originalmente se apresentaria nua, fez a performance vestida. Houve um ensaio de resistência por parte da polícia, mas uma advogada que estava presente interviu, explicando que no estado do Rio de Janeiro artistas de rua não precisam de autorização para se apresentar.

Figueiredo classifica o ato do governo carioca como censura e especula que a preocupação "descabida" com a nudez e a imagem chocante da performance tenham sido as razões para tal. "Eu acho engraçado porque a És Uma Maluca não criou essa performance, quem criou foi a ditadura, na época. Eles apenas introduziram aquilo que está no texto [de Santos], que também é baseado em fatos reais."

O caso não é isolado. Ao longo dos últimos anos, censuras como a da exposição Queermuseu e à performance do artista Wagner Schwartz no MAM em São Paulo têm deixado artistas e curadores em estado de alerta pela nova hegemonia cultural sendo imposta pela ascensão dos governos de extrema-direita no Brasil. E a tendência, segundo Figueiredo, é piorar. "Infelizmente, estamos suscetíveis [à censura]. O governo não voltou a se manifestar. A impressão é que vão continuar procurando pelo em ovo para restringir esse tipo de ação, ao menos em equipamentos do governo", fala.

"É muito triste quando o artista, que é quem tem o poder de se comunicar com o povo de maneira fácil, se omite ou prefere não se manifestar diante de alguma situação. A arte contemporânea, mais do que nunca, também tem esse papel."

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