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Opinião

Por favor, não chafurdem nos legados de Kurt e de Amy

Nirvana em digressão? Amy Winehouse num holograma? Estas possibilidades corroem a memória de dois artistas marcantes.
Kurt Cobain e Amy Winehouse
(À esq.) Foto de Kurt Cobain por Charles Peterson, originalmente publicada aqui. (À dir.) Foto de Amy Winehouse por Blake Wood, originalmente publicada aqui.

A vida concede-nos diversos prazeres. Se elaborasse as cinquenta melhores coisas que experienciei até à data, incluiria certamente um espectáculo de música - individual ou um festival. Foram uns quantos com a grandiosidade necessária para atingir o Olimpo (em Portugal ou no estrangeiro), que o difícil é escolher.

Deixando de parte a lista pessoal, o sentimento de comunhão com o artista e as outras almas no recinto é impagável. Aí chegado, a loucura de ter gasto uma fortuna num bilhete ou a viagem longínqua e atribulada para chegar ao destino, fica para trás. Nada é comparável quando estamos no meio dos "nossos" deuses. É a beleza da liturgia sonora. Por ser especial assistir ao concerto de alguém que tanto admiramos, fiquei estupefacto quando soube da possibilidade de os Nirvana regressarem e de uma futura digressão de Amy Winehouse via holograma, em 2019. Os dois nomes que fazem parte do "Clube 27" ao lado, entre outros, de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Brian Jones, deviam ser mais respeitados. Fosse eu dado a hashtags, criaria uma a dizer #NãoChafurdemNosLegadosDeKurt&Amy.

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Experiências catárticas sim, catástrofes fofinhas não

Sempre achei um tanto ou quanto grotesco, ver bandas seguirem em frente sem o carismático vocalista. Em alguns casos, admito ser discutível considerar-se um flop (veja-se quando Axl Rose se juntou aos AC/DC em Lisboa), só que a maior parte dos substitutos parece o André Almeida quando tomou o lugar de Nélson Semedo no Benfica. Até pode suar as estopinhas e surpreender (como na época passada), mas jamais atingirá o patamar desejado.

INXS, Queen, Stone Temple Pilots, Alice in Chains ou os The Doors, são formações que continuaram com outro rosto quando o seu inconfundível vocalista faleceu - alguns deles demoraram muitos anos a optar por esse caminho. Os resultados são irrisórios e, na verdade, mais valia terem ficado quietos. O mesmo pode vir a acontecer com um dos símbolos do grunge. A propósito de dois acontecimentos realizados nas últimas semanas (como o final de uma actuação dos Foo Fighters), elementos dos Nirvana reuniram-se para interpretar meia dúzia de temas, entre os quais, "Smells Like Teen Spirit" - ver o teledisco acima. Os rumores de uma digressão reapareceram e houve quem sugerisse Shaun Morgan, dos Seethers, para frontman. Ora, prestar pontuais homenagens é absolutamente diferente de "calcorrear" a estrada durante meses. Não há necessidade de vulgarizar a obra de Kurt Cobain (1967-1994).

Na mesma linha de orientação (para bem pior, diga-se), fala-se da forte hipótese de termos Amy Winehouse (1983-2011) numa tour daqui a dez meses. Amy, salvo seja. As notícias vindas de Terras de Sua Majestade, referem que a cantora será representada por um holograma acompanhada de uma banda de suporte, sendo a voz retirada dos seus discos. A empresa BASE Hologram, que actualmente dá "vida" à soprano Maria Callas e ao compositor Roy Orbison - ver vídeo abaixo -, deverá ser a responsável por este "feito" controverso. Desta vez, a protagonista não estará somente à frente do microfone e o público terá a chance de vê-la a dançar e a movimentar-se em palco (sou só eu ou isto tem muito de twilight zone?).

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O pai da autora do álbum Back to Black (2006), Mitch Winehouse, regozija-se com o conceito e com a expectativa de angariar fundos para a Fundação que apoia jovens com problemas relacionados com drogas e álcool (a instituição tem o nome da filha). A intenção pode ser boa, só que haveria certamente outras maneiras de prestar tributo e obter apoio financeiro para a causa. A meu ver, o ridículo holograma - tecnologia que pode ter piada numa canção ou outra - devia ser trocado por artistas de carne e osso a fazer versões. Gente que a vê como uma grande referência e/ou que se inspirou no seu repertório soul e r&b.

Kurt Cobain e Amy Winehouse (ver o clip de "Rehab" abaixo) merecem ser fervorosamente lembrados, se bem que o dinheiro seja aparentemente o verdadeiro motivo para a realização de determinados eventos. Ainda assim, a cultura da trivialidade deve ter limites e há ideias que simplesmente deviam ficar no papel. As pessoas precisam de experiências catárticas, não de catástrofes fofinhas.


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