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Crimes

A realidade brutal de ser um delator na cadeia

Parece simples, mas já vi caras dentro da prisão que se chamam de “caçadores de ratos” pegarem o rato errado.
RI
ilustração por Ryan Inzana
MS
Traduzido por Marina Schnoor

“X9 acorda com a boca cheia de formiga.”

Essa é a regra número um do Código do Detento, a lendária lei de honra entre ladrões. Quando entrei no sistema prisional, achei que evitar ser um dedo-duro seria fácil. Não pode ser tão difícil assim não trair seus amigos, certo?

Um dia, um amigo meu chamado Koby atacou o Chris, um homem de meia idade com um bigodinho de Hitler, por mudar o canal da televisão sem consultar o pessoal que comandava a área. Quando Koby voltou do Buraco – a solitária – os guardas tinham mudado o Chris para outro bloco.

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“Aquele puto me entregou”, Koby reclamou. Ele estava pálido depois de meses sem ver a luz do sol. Suspirei involuntariamente. Ele me olhou com raiva.



“É verdade, mas achei que dedurar era quando fazíamos alguma coisa juntos e um de nós contava para os carcereiros”, eu disse. “Quer dizer, você estava perseguindo o cara desde que ele chegou aqui. Você esperava mesmo que ele fosse leal a você? Depois de quebrar os dentes dele?”

“Não, você entendeu tudo errado”, disse Koby. “Dedurar é quando você informa alguém. Ponto. Se faz alguém se foder, você está dedurando.” Os outros homens da cela comum concordaram com a cabeça, eu só dei de ombros. Seria fácil não foder com ninguém, e o rótulo de X9 seguiria o Chris pelo resto de sua sentença.

Eu morava num bloco de celas onde vinho caseiro praticamente saía das torneiras. Quase todo mundo bebia, incluindo um cara com um cabelo preto de Einstein, um ex-xerife. Como a cadeia era comandada por seus antigos colegas, ele conversava abertamente conosco. Um dia ele fez uma piada aleatória sobre nosso bloco ser uma gigantesca cela de bêbados. Naquela noite, os guardas invadiram o bloco e acharam nosso estoque clandestino de vinho.

Na manhã seguinte, ouvi dois caras discutindo em voz alta enquanto olhavam para o Einstein, que evitava fazer contato visual.

Cara 1: “Alguém devia arrebentar esse tira por nos dedurar.”

Cara 2: “Mas ele é polícia. O que você esperava? Estamos dando mole dividindo as bebidas com ele.”

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Cara 1: “Foda-se. Ele está aqui com a gente, ele é um detento como a gente. Deveríamos nos unir. Ele violou o Código. Ele precisa apanhar.”

Eles ficaram rodando lâmpada sobre esse assunto por uma hora, até que o Cara 1 finalmente convenceu o Cara 2 a arrebentar o policial desgraçado. Mas já vi caras como o 1, que se chamam de “caçadores de ratos”, pegarem o rato errado.

Em uma ocasião, dois homens brigaram numa cela enquanto um terceiro bloqueava a porta como vigia. Ele ficava olhando entre a cabine do guarda e a cela.

Cabine do guarda. Cela. Cabine do guarda. Cela.

De repente, um grupo de guardas cheios de adrenalina chegou chutando uma porta lateral e entrou na cela.

Enquanto eles algemavam os briguentos sem camisa, um carcereiro falou sobre o ombro com o 3. “Caralho, cara, eu estava na cabine”, ele disse. “Se você não ficasse olhando de um lado para o outro assim, eu não saberia. Da próxima vez não pareça tão suspeito, porra.” O bloco caiu no silêncio enquanto o 3 ficava cada vez mais vermelho.

“Caralho, você acabou dedurando os caras, moleque”, uma voz disse depois que os guardas saíram. “Me lembre de nunca te deixar de guarda.”

O 3 marchou até essa voz e deu um tapão na cara dele. “Você não vai sujar meu nome, seu puto”, ele disse. “Não fiz nada de errado. Se você vê um X9, você arrebenta o X9.”

O cara da voz recusou o desafio do 3, se desculpando, e o rótulo de dedo-duro caiu do 3 como um bandaid molhado.

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As lições iam se acumulando. Fazer um cara ser pego sem querer podia render uma surra e um estigma. Sua reputação – sua “face” – é seu ingresso para a inclusão. Isso determina como as pessoas vão te tratar, sejam os carcereiros, enfermeiros, capelães ou prisioneiros. Sua face é sua credibilidade. Poucas coisas aqui fazem um homem brigar ou sujar seu nome mais rápido que um rótulo ácido de dedo-duro. Um acusado de ser X9 pode evitar isso desafiando e batendo em quem o acusou, e esse cara pode acabar com o rótulo se não manter sua acusação.

Era um pouco confuso, mas achei que tinha entendido: não coloque outras pessoas em situações delicadas, mesmo sem querer, e não acuse ninguém de dedurar a menos que esteja pronto para ser o juiz, o júri e o executor. Essa cartilha semi-moral ficou comigo enquanto eu me ajustava à vida no corredor da morte.

“Aqui a gente mesmo se policia.”

Esse é um lema do corredor da morte. Como as taxas de crime do corredor da morte são mais baixas que no resto da prisão, os guardas nos dão espaço para respirar. Somos unidos e mantemos a paz. Somos uma comunidade. Vivemos segundo as regras. Temos um Código. Mas como qualquer sistema moral feito pelo homem, esse código tem falhas. O elemento corrupto é inerente à sua natureza paradoxal.

“A sargento tá vindo!”, gritaram vários homens, incluindo Lil' Mike, um cara condenado por uma carreira de crimes, com um rosto angelical e um cabelo branco perfeitamente penteado.

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Os guardas estavam monitorando dois amantes que viviam entrando na cela um do outro escondidos. Dessa vez, a sargento de serviço chegou a tempo de pegá-los ainda vestidos. Ela deu a eles um último aviso: da próxima vez eles iam para a solitária. Depois que a sargento saiu, o Amante mais masculino do casal ficou puto.

“Por que você não falou que ela estava chegando?”, ele gritou com Lil' Mike, com o dedo enfiado na cara dele.

“Eu falei!”, disse Lil' Mike. “Todo mundo gritou! Não é minha culpa se você não ouviu.” Ele olhou para os outros, que estavam discretamente desaparecendo nas próprias celas. Lil' Mike era velho e fraco. O Amante era trinta anos mais novo e atlético, com punhos calejados que ele adorava usar.

“Eu falei, porra!”, continuou Lil' Mike. “Você estava distraído e não ouviu. E mesmo assim, nem era minha obrigação. Vocês deviam ter um vigia ou algo –”

Com isso o Amante perdeu a cabeça, socando Lil' Mike e se desviando fácil dos golpes desesperados dele.

Alguns dias depois, os guardas algemaram o Amante e o colocaram na solitária enquanto “investigavam” o incidente. Alguém tinha mandado um bilhete anônimo para o diretor. Lil' Mike disse que tinha se machucado caindo no banheiro, usando uma bengala para corroborar sua história.

“Eles estão culpando o Danny, o namorado do Lil' Mike”, um amigo me disse na fila da cantina. “Ele está estranho desde a briga, mas isso não prova nada.”

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Quando o Amante voltou da solitária, ele tentou escalpelar o Danny com um estilete improvisado. Os guardas testemunharam o ataque, e ele voltou direto para o Buraco.

Danny se recusou a usar curativos. Ele olhava na cara de todo mundo, exibindo os pontos tortos na linha do cabelo como um sinal de protesto que gritava: “É isso que é união pra vocês?” Aquela cicatriz vermelha na testa dele foi um ponto sem volta para mim.

“A gente mesmo se policia”, ecoava na minha cabeça. Joguei esse pensamento longe como uma maçã bichada. Fiquei nauseado. Se não ajudar alguém a se safar é dedurar, como evitar algo assim?

O incidente do escalpelamento incentivou uma conversa que já acontecia. O consenso é “Cuide da sua própria vida”. É conveniente mas contraditório: Como a gente se policia se todo mundo está cuidando da própria vida? Não era surpresa essa epidemia de bilhetes anônimo – que outro recurso tínhamos?

Apesar dos nomes falsos, e do fato que nenhuma punição vai acontecer, este texto é subversivo. Estou falando da autoridade no comando: o Código do Detento. Os caras mais velhos dizem: “Este lugar vai explodir. Coisas assim não aconteciam no meu tempo”. Duvido da pureza dessa indignação. Ouvi muitas histórias de terror sobre os velhos tempos, de estupros brutais, roubos, servidão obrigada e traições mortais. Suspeito que a consternação deles vem do medo de ser o próximo. Eles precisam que a nova geração os projeta.

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Talvez um dia o Código tenha conseguido lidar com os elementos selvagens da prisão, mas alguns homens usam isso como arma para manter sua influência. Ele fornece uma posição superior para predar os fracos, para justificar quase qualquer coisa. As regras sobre dedurar e cuidar da própria vida são instrumentos numa filosofia primitiva de sobrevivência: O mais forte está sempre certo, os fracos não têm vez.


George T. Wilkerson, 37 anos, está no corredor da morte da Prisão Central de Raleigh, Carolina do Norte, onde aguarda a execução por duas acusações de assassinato em primeiro grau, das quais foi considerado culpado em 2006.

Matéria publicada em colaboração com o Marshall Project. Assine a newsletter deles.

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