Como Childish Gambino se tornou a voz dos nerds negros

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Como Childish Gambino se tornou a voz dos nerds negros

Com ‘Awaken My Love’, o rapper mostrou que você pode ir de esquisitão a ganhador de prêmios em cinco anos.

Childish Gambino evoluiu muito. O homem que nasceu como Donald Glover deixou de ser um forasteiro nerd no mundo do rap para se tornar vencedor do Golden Globe, ao passo em que o mundo se abriu para o seu talento. Nem todos nós conseguiríamos fazer o salto de rapper ridicularizado a mestre do funk (fato que se confirma com o novo disco Awaken, My Love!) por meio de uma série de comédia absurda de TV – uma das melhores de 2016. Mas ele já tinha um impacto mais pessoal em seus fãs anos antes.

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Volta rapidinho pra 2011. Eu tinha 19 anos e estava à beira da maturidade, ainda não me sentia 100% confortável comigo mesmo quando surgiu o interesse por Glover. Ouvindo rap e estudando numa escola só para garotos na zona sudeste de Londres dominada por meus colegas negros me levava para uma certa direção, antes de me tornar para outra quando entrei em um preparatório predominantemente branco. Lá, camisetas quadriculadas, jeans apertadinhos e croppeds eram a regra. Me contorcia para me encaixar em cada ambiente, dando um grau na negritude na escola para ser aceito pela maioria e diminuindo-a de forma a não intimidar meus colegas brancos no preparatório. Earl Sweatshirt resumiu tudo em "Chum", de 2013, citando ser "negro demais pros brancos e branco demais pros negros".

Mas 2011 também foi o ano em que Glover lançou seu disco de estreia, Camp. Ao ouví-lo, seus vocais denotavam o mesmo tipo de angústia social. Ele também cresceu em um mundo onde sofria por ser um pouco diferente. Ele não era o jovem negro tradicional cujo estereótipo foi cimentado ao longo de décadas de cultura pop norte-americana, rimando e cantando com uma cadência que talvez nem tenha sido considerada "de macho". Ele fazia referências a séries como Freaks and Geeks e Firefly, além de flertar com o EDM. Glover mesmo tinha noção disso, afirmando numa entrevista em 2011 que "por um tempo a música era preta ou branca, mas agora tem gente como Tyler, the Creator com um puta impacto. Assim como eu, ele é um negro de classe média que se vestia como um integrante do Good Charlotte e era xingado de bichona. Já me atacaram simplesmente porque eu tinha um skate."

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Nem todo mundo gostou do disco. Talvez você lembre que Camp conseguiu uma nota de 1.6 na Pitchfork, numa resenha bizarra que acusava Glover de usar "temas pesados como raça, masculinidade, relacionamentos, moral nas ruas e 'hip-hop de verdade' como artifícios para construir uma falsa persona de deslocado". Mas eles não ouviam a mesma história que eu. A esquisitice de Glover era vista muitas vezes como fraqueza ou inépcia em articular uma mensagem coerente, já uma grande publicação independente refutar sua persona multifacetada parecia rejeição a tudo que é negro e fora do comum.

Ele não deu a mínima, porém, lançando Because the Internet em 2013 — um disco estranho, belo e cinemático que mostrava algumas mudanças. Glover soava fortalecido, mas a angústia ainda gritava. Era uma alma esquisitinha, passando de uma identidade a outra na vida e em seus álbuns, pois estava óbvio que sofria. Da mesma forma, como acontece com tantos que crescem com interesses fora do esperado pelos outros, continuei tentando manter o equilíbrio entre "muito negro" e "não negro o suficiente".

Numa conversa com o Noisey em 2013, Glover parecia viver um de seus piores momentos: "Tentei me matar. Estava todo fodido… Não sentia como se soubesse o que estava fazendo. Não vivia de acordo com meus padrões e sim dos outros, e simplesmente cheguei num ponto que disse 'Não vejo razão nisso'". As pessoas sempre se prenderam aos desajustados da música no passado, agarrando-se às suas idiossincrasias em busca de algum conforto. Basta ver como os fãs sofreram por David Bowie e Prince no ano passado; como idolatraram e deram nova forma à estética punk dos Sex Pistols, Slits e Ramones; como ainda correm pra ver Madonna, Springsteen e Iggy Pop, para entender que gravitamos na órbita de quem vira nossas expectativas de cabeça pra baixo. O "artista torturado" virou um clichê, pois em algum momento aquilo tinha raízes na realidade. Artistas em luta consigo mesmos atraíam as pessoas.

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Lidar com tudo isso só fazia de Glover mais forte, sua música tornando-se um pano de fundo de onde poderia projetar o caos de sua mente. Dá pra ouvir isso na íntegra no fluxo de "II. Earth: The Oldest Computer (the Last Night)" e também em "II. Zealots of Stockholm [Free Information]", ambas faixas de Because the Internet. Foi meio uma epifania quando percebi que ser diferente do que esperam de você não é algo ruim. A crítica também se ligou disso, elogiando a dedicação de Glover à causa do disco, ainda que o acusassem de tentar demais se destacar. Ele não estava tentando — sua tendência natural em ser diferente vinha do fato de que ele era mesmo diferente.

Glover seguiu na miúda pelos próximos anos, cuidadosamente criando aquilo que se tornaria a série Atlanta. O programa reimagina os limites da televisão negra americana — bem-acompanhado por outros títulos como Insecure e Black-ish — mostrando os estereótipos com os quais Glover teve que lutar enquanto projetava uma realidade alternativa. No geral, o personagem de Glover, Earn Marks, fica no limiar do sucesso e a sociedade do hip-hop antes de se tornar agente de seu primo rapper Paper Boi — e isso nem começa a descrever os artifícios cômicos, viradas bizarras e surrealismo que permeiam a trama.

Então voltamos para o presente e o disco sem rap de Glover lançado em dezembro de 2016, Awaken, My Love!. Ao escrever para o Noisey, Israel Daramola descreveu o disco da seguinte forma: "parece mais um despertar. Seu uso de instrumentação estilo Funkadelic e Sly Stone, o estilo de cantar de Bootsy e agudinhos a la Prince estão a serviço do amor, esperança e claro, temores de trazer uma nova vida ao mundo" – uma alusão ao novo papel de Glover, o de pai. O moleque alienado de Camp cresceu de forma a subverter as várias definições de negritude através de sua música, escapando das críticas mais uma vez. Ele mudava de forma, novamente.

E cá estou eu, aos 25 anos de idade, capaz de dizer que Glover me deu autonomia para que eu possa ser eu mesmo, sem remorso algum. Como é o caso com todas as identidades criada por nossas culturas, há níveis de negritude. E se você bota fé na imagem hiper-masculinizada dos negros que o rap projeta, ou na de um moleque alternativo que não é tudo isso, fato é que a evolução de Glover deu voz para os nerds negros que sentiam que deviam dar o braço a torcer para serem aceitos. Mas quando você aprende a deixar esses conceitos de lado, pega no tranco a mesma jornada pela qual Glover passou. Você silencia as vozes que falam para você ser desse ou daquele jeito. Você aprende a ser você.

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