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Música

Um conto sobre como a indústria da música ativamente cria e alimenta doenças mentais

O jornalista de metal John Doran conta como uma resenha de uma demo acabou se tornando motivo para vingança, distúrbios mentais, ameaças de morte e um livro.
Foto de Maria Jefferis

A indústria musical é como um boteco dentro de uma cervejaria que ajuda a criar e manter doenças mentais na cabeça de seus clientes; tudo isso atrelado a uma sinuca, projetada para atrair quem já sofre destes males.

Levam-se as garrafas vazias, limpam-se as mesas; secam-se as poças de cerveja derramada; remove-se toda a sujeira do chão e lixa-se todo o envernizado de forma que sobre só madeira quase que como nova. Não importa o quão fundo você vá, você sempre se deparará com crenças (pouco úteis) profundamente enraizadas sobre loucura e criatividade, depressão e profundidade, ira e autenticidade, e assim por diante.

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(Foto de Faye Blaylock. Cota de malha e espadas por Rob Miller)

Existem diversos motivos para que as coisas sigam neste estado, mas o fator de amplificação mais sério é uma tolerância ao abuso de bebida e drogas entre adultos que não se encontra em outros estilos de vida. A cultura em torno da produção musical no Reino Unido pode dar a sensação de estar lotada de almas frágeis, e não é raro encontrar gente por aí passando por episódios psicóticos, o que por vezes tem consequências trágicas.

Mas — deixando as regras básicas de lado — creio que é importante reconhecer que isto nem sempre deve ser encarado negativamente. Há espaço para alguns prosperarem (criativa, emocional e financeiramente) de uma forma que simplesmente não seria possível caso resolvessem ser professores ou motoristas de ônibus.

Em 2004, no comecinho da minha carreira como jornalista musical, enquanto trabalhava para a excelente revista Metal Hammer, entrevistei Sid Wilson, DJ do Slipknot. Saí daquela experiência bastante afetado após perceber quão torta estava sua percepção da realidade. Era algo com o qual eu mesmo tinha alguma intimidade, tendo passado por um colapso nervoso na universidade, meses antes de ser expulso do meu curso, em 1991. No papel de alcoólatra e usuário pesado de drogas, passei os anos seguintes sofrendo intermitentemente com alucinações terríveis, surtos e distorções perturbadoras em minha percepção da realidade durante breves períodos de abstinência. Mas com Sid era algo completamente diferente.

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Bem no começo da entrevista já percebi que algo não estava certo. Ele pegou cinco colheres de chá de açúcar e usou um pequeno misturador de madeira para nivelar a superfície de cada uma antes de colocá-las, vagarosamente, em seu café. Então mexia cada medida de açúcar cinco vezes em sentido horário e mais cinco vezes no sentido anti-horário, contando os movimentos em voz alta enquanto os realizava. Por mais que estivéssemos em um local fechado e estivesse quente, ele usava uma bandana na cabeça e mais dois chapéus. De acordo com Sid, isso ajudava a controlar o fluxo de informação entrando na sua cabeça "vindo de casa".

O músico afirmou ser um alienígena enviado da constelação de Órion para ajudar a salvar a humanidade e preparar as pessoas da Terra para uma guerra intergaláctica, como se fosse uma versão extraterrena do retorno de Cristo. "Creio ser de Órion", disse, "mas estou orgulhoso em estar aqui na Terra realizando esta missão".

Ele conversou comigo por três horas sobre suas crenças, uma mistura de arrebatamento, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Blade Runner, A Reconquista e o Apocalipse de São João. De fato, Sid e eu conversamos por tanto tempo que alguém teve que ir buscá-lo porque a banda faria um show e estavam esperando ele. Não foi exatamente uma surpresa receber a informação de que Sid, quando era um traficante no ensino médio, ingeriu uma folha inteira com 75 doses de LSD em uma noite. No dia seguinte, Sid me ligou pedindo desculpas por não ter me mostrado a tatuagem que havia lhe revelado seu propósito. Era o World Trade Center em chamas, desenho que afirma ter tatuado em agosto de 2001.

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Foram anos antes de eu perceber que — ao menos após a experiência formadora com o LSD — as coisas deram bem certo pro Sid sim, levando em conta todos os acontecimentos. Ele certamente vive em um dos meios mais simpáticos à sua visão de vida. Em suma: ele não queria e nem precisava da minha compaixão.

Mas e os músicos que não tem um contrato bacana com gravadoras ou fama internacional? O que acontece com gente como *Sauron V, desconhecido músico independente de black metal de *Great Yarmouth, bem na periferia dessa cultura? O que acontece com gente como ele quando embaça tudo e novas informações chegam mais rápido do que eles poderiam controlar?

Trecho do audiobook biográfico de John Doran, Jolly Lad

Mais ou menos na mesma época em que entrevistei Sid Wilson, uma das minhas tarefas frequentes na Metal Hammer era escrever a seção de demos. Certo dia, um CD-R com o nome *Marie Antoinette, escrito em fonte parecida com a do Slayer, me foi entregue pelo pessoal da revista. A música em si era inacreditavelmente básica. Em uma das faixas pude ouvir a letra "Você é uma desgraça para a porra da sua raça" e alguma outra coisa que parecia papo manjado de skinhead sobre matar "viado", o que rendeu uma avaliação com nota zero de dez.

Alguns meses depois, outro pacote chegou na redação pra mim. A Marie Antoinette havia lançado dois singles, um deles chamado "Why Don't You Stick This CD Up Your Arse John Doran, You Sarcastic Little Creep" [Por que você não enfia esse CD no rabo, John Doran, seu merdinha sarcástico?] e o outro com um título mais prosaico, "We Hate You John Doran" [Te odiamos, John Doran] , tudo acompanhado de uma fita C90 sinistrona. A fita era em partes biografia, em partes ameaça de morte, e para o meu desconforto, em partes sessão com o psiquiatra. A Marie Antoinette era uma banda de metal/punk de Great Yarmouth com um único integrante, Sauron V, que tocava guitarra e cantava. A fita continha a primeira de muitas ameaças de morte que ele me faria: "Sabe, eu ando bem deprimido desde que li sua resenha. Não fico tão mal assim desde que fui preso por agressão. Vou te encontrar e rachar tua cabeça. Vou te matar".

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Não lembro porque diabos resolvi avaliar os demais singles de Marie Antoinette, conferindo-lhes zeros, mas seja lá o que for que estava pensando, foi errado e queria mesmo não ter feito isso. A zoeira teve o efeito esperado e mais um tanto de CDs com singles e ameaças gravadas em fita cassete chegaram na redação algumas semanas após a publicação das novas resenhas. Queria avaliar o material, mas por sorte meu editor Jamie deu um jeito na idiotice toda e fui banido de mencionar a banda na revista.

A Metal Hammer não teve tanta sorte, porém. Sauron V botou na cabeça dele que eu trabalhava — ou até mesmo vivia — em seus escritórios, e começou a bombardeá-los com telefonemas ameaçadores; que, por sua vez, após alguns meses, sempre ocorriam às nove da manhã, e lotava a caixa de recados da revista falando o quanto me odiava, o quão genial sua banda era e tudo o que faria comigo.

As ameaças de morte pararam por um tempo, então recomendaram que a revista entrasse em contato com a polícia e tive que conversar com uns investigadores do Departamento de Investigações Criminais de Marylebone. Um deles pediu um resumo dos acontecimentos e minha opinião. Comecei: "Seja lá o que acontecer, de minha parte, não quero que este cara seja preso por minha causa. Independente do que há de errado com ele, a cadeia não funcionou antes e ouso dizer que não funcionará agora. Mas não quero esse peso nas minhas costas. O bicho obviamente tem problemas".

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O investigador me interrompeu. "Ah não. Não chega a tanto. Ele não é apto. Nunca chegará a um julgamento". Devo ter parecido confuso, então ele me explicou que um tempo depois de ter começado a resenhar as demos da Marie Antoinette na Metal Hammer, Sauron V tinha ido até a casa de seu vizinho e o atacado com uma espada de samurai ornamental, quebrando o braço dele em várias partes. Não era a primeira vez que ele era detido, e agora estava confinado indefinidamente em um hospital psiquiátrico.

"Bom, nesse caso, o que gostaria mesmo é que lhe fosse retirado o uso do telefone", disse ao investigador que, sob tais circunstâncias, concordou que esta certamente seria a melhor medida a ser tomada.

Foto de Maria Jefferis

Quando meu livro, Jolly Lad , saiu no ano passado, incluí estas histórias (e diversas outras) por duas razões em especial. A primeira é que eu mesmo não estava muito bem da cabeça e queria deixar isso bem claro. A segunda é minha crença (não tão original) de que os limites do que é considerado loucura são, até certo ponto, bem flexíveis, dependendo de fatores como classe social, gênero, dinheiro, profissão, geografia, tempo e raça, etc.

Porém, todas as minhas experiências na vida adulta aos poucos me levaram a crer que há uma grande área cinzenta, não levada em conta por nenhum dos lados, em que privilégios tem grande influência. E me parecia, com cada ano que passava, que mais e mais de nós acabávamos vivendo — ou sobrevivendo — nessa área cinza.

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Logo após a publicação do livro, em 1º de maio de 2015, saí numa turnê de divulgação com 31 datas ao longo da Inglaterra numa van com a banda de blackened noise rock norueguesa Arabrot. Tudo foi bem até chegarmos em Great Yarmouth. Após dolorosas 13 horas de carro, chegamos na única casa noturna dedicada ao metal da cidade, passamos o som e fomos pegar comida antes do show. Peguei uma cópia do catálogo de empresas locais pra folhear enquanto esperávamos o rango e dei uma olhada na agenda do mês do local em que tocaríamos. Em meio a um monte de bandas da região com nomes com Led Henge e Kurgen, havia menção a uma excelente banda de doom metal, o Moss. Daí notei, com leve irritação, que havíamos sido listados como John Doran e Arab Rot, como se eu liderasse alguma banda de NSBM favorável à English Defence League. E então, logo abaixo, marcada para a noite seguinte no mesmo local, vi o nome Marie Antoinette.

Às vezes — uma ou duas vezes em uma vida inteira, na minha experiência — acontecem coisas tão aterradoras, tão causadoras de ansiedade, que você chega num ponto de terror tão absurdo que ele é análogo à calmaria zen. Vi o resto da noite como se tivesse saído do meu corpo. Vi a mim mesmo se arrastar de volta à casa noturna para um palco em que um homem que havia me enviado diversas ameaças de morte deveria tocar em menos de 24 horas. Me vi agarrado ao catálogo que ele mesmo claramente havia lido, minhas mãos suando. Me vi observando o anúncio várias e várias vezes, como se, magicamente, meu nome fosse sumir do lado do de Marie Antoinette. Me vi perguntando ao dono da casa se Great Yarmouth abrigava duas bandas com aquele nome e me vi afundar um pouquinho quando a resposta foi negativa; que Sauron V havia há pouco formado uma nova versão da mesma banda ao sair do hospital, com adolescentes da região.

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Há uma etapa além do medo: um terror tão puro que transparece como serenidade. Era neste estágio em que estava quando subi com o Arabrot no palco naquela noite. Como estava literalmente acima e além de me importar, li o trecho do meu livro sobre Sauron V. "Não importa o que acontecer hoje", argumentei comigo mesmo, "ou vai terminar muito mal ou me dar algo para escrever sobre".

Ao passo em que os riffs pesarosos do Arabrot soavam pelo porão — enquanto preenchíamos o local com microfonia controlada e barulhos de máquinas — eu entoava contos sobre álcool, loucura, drogas e redenção. Pude sentir uma presença no ambiente, uma solidez desmedida nas sombras ao fundo, perto da máquina de cigarros, em que as poças de luz roxa davam lugar ao ônix impenetrável. Mas quando ligaram as luzes, não havia nada ali — ou foi coisa da minha cabeça ou tinham ido embora. Caímos fora em tempo recorde e metemos o pé na estrada imediatamente, apesar do Sly and the Family Drone, uma das minhas bandas favoritas ao vivo no mundo, ter tocado naquela noite e eu estava ansioso por vê-los.

Voamos baixo pela A47 como se estivéssemos em um foguete, ouvindo Slayer no talo, tagarelando feito criancinhas. Nos hospedamos em Travelodge perto de Leicester e dormimos antes das duas da manhã.

A turnê foi demais, uma das melhores experiências da minha vida, mas eu sabia que eu era não muito mais que um turista e logo seria hora de voltar para casa.

Como uma espécie de posfácio, preciso pedir desculpas para alguém, e este alguém é Sauron V — apesar daquilo que entendi como conteúdo odioso e violento. Recontei minha história com ele diversas vezes em mesas de bar desde nosso reencontro, mas foi necessário o processo penosamente repetitivo de se editar um livro e gravar um audiobook para que eu entendesse que a história não é nada engraçada. Não há nada de divertido em violência extrema, hospitais psiquiátricos, doenças mentais, obsessão, depressão e vingança; e me arrependo de minha posição de rir de tudo. Na improvável possibilidade de ele estar lendo isso, gostaria de ao menos oferecer minhas sinceras desculpas. O Arabrot e eu planejamos outra turnê inglesa para 2017 ou 2018, e talvez não seja mais que um devaneio ridículo, mas mesmo aqui de minha posição de homem de meia-idade, sinto que ainda há tempo de se resgatar algo criativo desta bagunça terrível quando voltarmos à Great Yarmouth. Sempre há tempo para todos consertarmos as coisas.

*Nomes e locais foram alterados.

A versão em audiobook da biografia de John Doran sobre sua recuperação do alcoolismo, uso de drogas e doença mental, Jolly Lad, baseada em sua coluna Menk para a VICE, já está disponível. Você pode adquirir uma cópia no Audible clicando aqui. O mesmo também pode ser comprado na Amazon e iTunes.

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