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Música

Discos que parecem peças de arte

Boa música e características únicas.

Um mercado competitivo aumenta a qualidade do produto assim como a oferta. Não será necessário ouvi-lo da boca de um economista, em discurso na SIC Notícias, para acreditar. Basta por exemplo passar algum tempo nas principais lojas (online ou não) para entender que o disco é um objecto cada vez mais capaz de satisfazer o fetiche de quem o compra. Se há qualquer coisa de disparatado na compra de um disco, só porque brilha no escuro ou inclui folhas secas apanhadas pelo seu autor, o mesmo não se pode dizer sobre qualquer aquisição que junte boa música e características únicas. Quando assim acontece, ficamos com uma peça de arte perfeitamente funcional e nisso poucas outras se podem comparar ao disco. As quatro rodelas seguintes são objectos bem trabalhados e coleccionáveis que encaixam no perfil traçado até aqui.

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Ohrwert / Marco Supernak / Oliver Deutschmann

Art Zero 01

Deviam existir subsídios especiais para as editoras que fazem por defender a herança musical do lugar onde operam. Provavelmente isso até é possível na Alemanha, onde o dinheiro rola mais abundantemente no sentido de políticas de primeiro mundo. Nesse caso, podemos até suspeitar que o papel da Art Zero na techno típica de Colónia é co-financiado pelo estado alemão. Por agora, as certezas remetem para um vinil vistoso e transparente, em que o centro das duas faces foi pintado individualmente com acrílico e tinta respectivamente. A Art Zero não faz a coisa por menos e logo na sua estreia quis mostrar que veio a jogo para marcar a diferença. Mas se o objecto é de categoria garantida, a música no seu interior não destoa disso: no lado A, temos duas malhas de Ohrwert, que honram a dupla Burger / Ink (precisamente de Colónia) com uma techno que permanece em trânsito e a caminho de um tempo em que a trance mandava no mundo. Por esta altura o facto de Ohrwert ser um produtor em estado de graça já não devia ser segredo para ninguém. O lado B por sua vez fica reservado a uma boa surpresa chamada Marco Supernak e aos prazeres mais

deep

que Oliver Deutschmann nos traz com “Sorrow”.

VÁRIOS

Tax Haven

Iberian Records

A primeira questão que nos ocorre ao escutarmos

Tax Haven 3

é mais ou menos esta: “Porque é que não somos todos amigos e fazemos isto mais vezes?”. É uma reacção natural, quando em mãos temos um disco que reúne boa malta de ambos os países da Península Ibérica (e não só), sem hierarquias evidentes ou vontade de fazer intercâmbio cultural a martelo. A missão de

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 Tax Heaven 3

, que levou à reactivação da Iberian Records, passa essencialmente por mostrar que nós e

nuestros hermanos

 (demasiadas vezes de costas voltadas criativamente) estamos à altura do campeonato mundial de

bass music

. Podemos nem ter a mesma guita dos outros, mas aqui está um vinil de 12 polegadas (com capa serigrafada e um design endinheirado) que parece ter sido fabricado no mesmo sítio de onde saem as notas de 500 euros.

Adequadamente, as quatro malhas incluídas soam a um milhão de dólares e pertencem a qualquer

mixtape

 ou

set

de música para estoirar dinheiro (ao lado de “Pour it up”, da Rihanna). Apontando directamente ao lado A, temos, logo ao abrir, “Acid8”, com Bass Clef nos comandos de um ritmo 4/4 que é sedução e magia de velha escola em partes iguais. Logo depois entram os hiperactivos Photonz (incapazes de falhar nesta altura) com uma “The Fire Sower”, que soa a um naco de

bass music

 de Los Angeles que nunca chegou a ser utilizado num filme de caça ao homem. Além destas, existem outras tantas para escutar (a versão digital tem oito faixas em vez de quatro). Estamos rendidos. Com apenas 9 cópias ainda disponíveis (quando isto foi escrito), é bem provável que

Tax Haven 3

 se torne rapidamente num objecto mítico.

<a href="http://iberianrecords.bandcamp.com/album/v-a-tax-haven-3-deluxe-edition" data-cke-saved-href="http://iberianrecords.bandcamp.com/album/v-a-tax-haven-3-deluxe-edition">V/A - Tax Haven 3 (Deluxe Edition) by Bass Clef, Photonz, Cauto and Niño</a>

TIAGO

Emotional Poverty

Noisendo

São necessários bons argumentos artísticos para criar um vinil distinto, mas é preciso um par de tomates verdadeiramente heróicos para chegar a um CD-r que tenha a pinta e o carisma do vinil. Tal proeza pertence a um Márcio Matos que há já vários anos vem-nos habituando a uma estética que se diverte com a barbarização de ícones e bustos, ao mesmo tempo que cria uma noção de que nada é demasiado sagrado. Ultimamente, nas capas da sua própria label Noisendo e na Príncipe, Márcio Matos tem explorado variantes personalizadas do estêncil. Muitas vezes esses parecem sinalizar um território de gangue (com a hostilidade e vaidade que há nisso) de um modo muito semelhante ao de um animal pintado nas paredes de um bairro fodido da América do Sul. Não sobram também dúvidas de que este código visual do Márcio encaixa perfeitamente na música inquieta e inflamável que se esconde atrás destas capas.

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Por exemplo, o bicho pintado à mão na frente de

Emotional Poverty

 parece que nos vai dar uma dentada capaz de provocar uma febre altíssima. A temperatura das malhas incluídas no CD por sua vez não fica muito aquém do calor delirante que alguém pode apanhar na selva. O Tiago que assina é afinal o incansável Tiago Miranda e dele podemos apenas esperar que ataque de surra e com movimentos imprevisíveis (como o bicho da capa talvez). Desta vez Tiago produziu um disco com qualquer coisa de manifesto, que pega em todo o tipo de loops (Burt Bacharach, chaval) para expor o lado mais vicioso desse recurso tão essencial para a música de dança. Tiago Miranda faz essa exposição deixando a nu uma boa parte das imperfeições destes temas, mas também é verdade que as memórias aqui repescadas (será um ZX Spectrum na primeira faixa?) dificilmente voltariam intactas ao presente.

Emotional Poverty

 funciona muito melhor com este aspecto acidentado do que aconteceria se fosse polido. É um CD-r imponente na minha colecção.

MAX LODERBAUER

Collodium

Svakt

Collodium

surge por último, no menu, como uma grande perna de leitão servida depois de um banquete. Para que fiquem com os estômagos bem preparados, podemos adiantar que se trata de uma composição de 18 minutos e 18 segundos, que ocupa por completo uma só face do terceiro lançamento da Svakt (catálogo suíço exclusivamente dedicado a vinis com apenas uma longa peça). Em “Collodium”, Max Loderbauer (membro do adorado

Moritz Von Oswald Trio) aproveita a experiência de muitos anos para contar uma espécie de fábula sónica sobre a ligação entre os pioneiros da electrónica (Stockhausen, Xenakis) e a techno mais complexa da Alemanha (o seu país). Nesse storytelling abstracto, feito de ritmos e sintetizadores empoeirados, “Collodium” dispõe de tempo paras transições que oscilam entre o sereno e o tempestivo, com abertas para alguns momentos em que o ruído continuo predomina sobre tudo (como se fosse uma caneta preta que riscou um pedaço da história). Sem ser um objecto especialmente fácil, Collodium promete muitas revelações a médio e longo prazo.